por Beatriz Freire e Leonardo Antan
Uma das principais vocações das escolas de samba é contar histórias. Nos primeiros desfiles, entraram em cena a pompa histórica de enredos que contavam os casos oficiais, louvando grandes efemérides. Sempre negociadoras, as agremiações levavam temas bem ao sabor do governo populista de Vargas e outros presidentes. Entretanto, ao longo da história, as escolas souberam surpreender e contar novas versões da história oficial – seja apresentando novos heróis e personagens, até então esquecidos, seja trazendo fatos e causos que poucos conheciam.
Nesse sentido, nossa viagem por esse 7×1 propõe uma lista de enredos que trouxeram novas visões das História brasileira dita oficial, subvertendo-as pelo caráter inovador ou crítico. Afinal, nem tudo confirma que Isabel foi mesmo a nossa heroína e que Tiradentes foi o homem que representou integralmente nossos ideais.
Salgueiro 1963 – “Xica da Silva”
“Onde viveu a Xica que manda, deslumbrando a sociedade…”
A inesquecível ala da “Corte da Xica da Silva” dançando o minueto coreografado por Mercedes Batista. |
Depois de revelar Zumbi dos Palmares em 1960, o Salgueiro de Pamplona e Arlindo três anos depois colocou nas páginas da História mais um ícone da nossa cultura negra. Contra à vontade de Pamplona, que estava viajando, Arlindo desenvolveu um desfile inesquecível. Ao tratar, pela primeira vez, de uma mulher, negra e ex-escrava como personagem central de um enredo, uma vez que apenas a História oficial e branca ainda era a fonte da qual os temas carnavalescos bebiam até então, a Academia fez história. O desfile ficou marcado pela estética inovadora de Arlindo Rodrigues, contando com a primeira ala de passo-marcado do Carnaval, a famosa ala do minueto, comandada por Mercedes Baptista. No fim das contas, a Presidente Vargas foi o palco do segundo campeonato da história da agremiação, colocando, nas paginas da história brasileira, Xica da Silva, que depois ficou nacionalmente através de música, filme e novela.
Mocidade 1980 – “Tropicália Maravilha”
“Baila no ar a poesia, a Mocidade irradia sua magia neste Carnaval…”
A “Brasiléia Desvaírada” encerrou o desfile de Fernando Pinto (Foto: Luiz Pinto) |
Se em 1967 a Tropicália propôs uma celebração dos ícones nacionais de maneira irônica, o carnavalesco herdeiro dessa vertente artística do carnaval revisitaria o movimento em 1980, com sua “Tropicália Maravilha”. O enredo, de autoria do genial Fernando Pinto, recontaria a história do Brasil de maneira subversiva e não com uma noção ufanista ao sabor do regime militar, como afirmou em entrevista ao jornal O Globo na época: “É a nossa concepção da História do Brasil, da descoberta até agora. Só que uma concepção crítica, brincando, como quem não quer nada”. O enredo passeou por quadros bem humorados como “Ser ou não ser tupi até morrer” e “Oropa, França e Bahia” com referências ao movimento modernista, terminando em “Brasiléia Desvairada” que celebrava o momento histórico atual de maneira irônica clamando pela “Anistia” no último carro.
Imperatriz 1988 – “Conta outra que essa foi boa”
“De 71 com a realeza, me mandou uma princesa que fingiu me libertar...”
Alegoria que ironiza a colonização de Luiz Fernando Reis |
Rei da crítica carnavalesca nas escolas de samba, Luiz Fernando Reis fez história na Caprichosos de Pilares nos anos 80, idealizando enredos afinados com o momento político social e reivindicando um caráter mais debochado. Foi, entretanto, na sua primeira parada após a azul e branco que ele fez sua narrativa mais subversiva em relação à História brasileira. A Imperatriz em 1988 fazia um panorama sobre a piada e dedicava seu segundo setor aos principais eventos históricos nacionais, afirmando “A história oficial é uma piada”. No desfile, vieram uma caravela de Cabral e uma Isabel que se transformava numa favela, questionando a abolição cem anos antes. Apesar da boa intenção, com uma chuva que prejudicou as fantasias e a falta de animação dos componentes que não compraram a briga do enredo, a Imperatriz fez um desfile que não fazia jus à sua identidade e terminou na última posição.
Portela 1989 – “Achado não é roubado”
“Ninguém sabe, ninguém viu. Eu queria é saber, saber, quem descobriu o meu Brasil…”
No período da redemocratização, entre o apelo pelas “Diretas já” e os ventos da nova democracia, marcou-se o único período histórico, no qual as agremiações mergulharam profundamente na crítica política. Capitaneados por Caprichosos e São Clemente, as narrativas contestadoras se consolidaram e foram se espalhando até por escolas que nunca tiveram essas características. Uma delas foi a majestosa Portela, uma das principais a apoiarem Vargas décadas antes. A águia de Madureira, num desfile pouco lembrado na sua história, contestou o Descobrimento do Brasil num delicioso samba de 1989. Com assinatura de Sylvio Cunha, o carnavalesco contestou a invasão portuguesa como pioneira e afirmou que outros povos também estiveram por aqui, como vikings, assírios, chineses, entre outros. Esquecido no tempo, o desfile antecedeu uma das apresentações mais subversivas da história…
Beija-Flor 1989 – “Ratos e urubus larguem minha fantasia”
“Sou na vida um mendigo, na folia eu sou rei…”
O final do desfile antológico lava literalmente a Sapucaí. |
No raiar de um novo dia, após a Águia de Madureira, quando ninguém esperava, centenas de mendigos invadiram a Sapucaí. Se subverter é a ordem, impossível esquecer Joãosinho Trinta, que já chegou na folia transformando o reino de França no Maranhão em 1974. Guiado pelo inesquecível Cristo Mendigo, censurado pela Igreja, a apresentação memorável fez uma crítica política, religiosa e social ao Brasil. Apesar do lixo, a escola apresentou muito luxo ao passear por diversos setores da nossa sociedade mostrando as mazelas das política, da igreja e até do sexo. No final, a Beija-Flor lavou a Sapucaí com um grande chafariz, trazendo Joãosinho vestido de gari literalmente limpando a avenida de tanta sujeira.
São Clemente 2004 – “Boi voador sobre o Recife: o cordel da galhofa nacional”
“A São Clemente faz a gente acreditar que no brasil o que é sério é carnaval...”
Olha a crítica! Em 2004, em meio a um cenário político tenso no mundo dos ministros e dos demais engravatados, a escola da Zona Sul carioca partiu do século XVII para contar a trajetória da galhofa no Brasil, tendo como base o boi que voou sobre o Recife holandês de Maurício de Nassau, que construiu uma ponte e cobrou pedágio para recuperar os investimentos. Com uma narrativa delirante bem ao estilo de Milton Cunha, o enredo se mostrou subversivo ao olhar para a história brasileira não de forma engrandecedora e louvável muito menos contemplativa, mas procurando um olhar irreverente, criando pontes entre o passado e o que acontecia à época, que vê os desvios da trajetória política – e por que não também do caráter?! – da nação. O desfile assinado por Milton Cunha acabou rebaixado, mas se fixou na memória dos foliões e nos mostrou que até hoje, no Brasil, acreditamos que o que é sério é mesmo o carnaval.
Unidos de Padre Miguel 2016 – “O quinto dos infernos”
“Desde os tempos de Cabral, Meu Brasil cara de pau virou galhofa colonial..”
E já que o Brasil vai mal das pernas desde o início da colonização, não teve tema melhor para a Unidos de Padre Miguel levar à Avenida em 2016 do que uma sátira que mostrava como o nosso país chegou até o que conhecíamos naquele momento. O carnavalesco Edson Pereira se propôs a contar com o enredo “O Quinto dos Infernos” os capítulos marcantes que precederam o famoso “jeitinho brasileiro”, o que daqui foi tirado para bancar a metrópole enquanto éramos colônia. A solução pra tudo isso foi brincar carnaval na Avenida ironizando figuras clássicos como D.João VI e Cabral, debochando e até rebatizando o lema da Inconfidência Mineira, como dizia o último verso do samba, de “liberdade ainda que folia”.
Entre negociação e crítica, é lindo ver a pluralidades de estilos na pista. Não há história certa a ser contada, muito menos receita, então quanto mais versões e visões tivemos da História brasileira nos sambas e enredos das donas da folia, melhor.
É por isso, que é com felicidade que a gente comemora pra 2018 a volta das narrativas críticas em boas partes das agremiações do grupo especial. Muito além das narrativas oficiais, é necessário levar ao grande público novas formas de pensar ao público no grande divã do Brasil, a Marquês de Sapucaí.