#Padroeiros: a vocação devotiva imperial de Madureira
Depois de passear pelos carnavais da última década e também pelos baluartes da história das quatro matriarcas do carnaval carioca, chegamos ao sincrético ápice de uma escola de samba quando o assunto é louvação: seu padroeiro. Poucos são os elementos aos quais são ofertados tanta devoção e respeito como os santos e orixás que regem e protegem uma agremiação. Por isso, lançaremos quatro textos que passearão pelas histórias desses seres divinos e por alguns pontos dessa relação litúrgica, sintetizando perfeitamente o binômio sacro-profano que é o carnaval.
Seja pela levada do ponto de chamada do orixá que influencia a batida da bateria, seja pela emoção que toma conta ao cantar o samba-exaltação à agremiação e ao padroeiro no esquenta, a série está no ar. É nossa missão sempre relembrar que existe algo muito além daquilo que circula entre o céu, a terra e o sagrado solo da quadra de uma escola de samba, ou a Marquês de Sapucaí. Vamos conhecer mais dos Padroeiros – toda quarta de julho, aqui no Carnavalize. Excepcionalmente na terceira semana, neste sábado!
Como já diria a música do grande imperiano Arlindo Cruz, haja lugar para abrigar mitos e seres de luz como Madureira. O bairro, que fica ali próximo a Oswaldo Cruz, Cascadura, Vaz Lobo e Irajá, abriga nada menos do que dois dos maiores organismos socioculturais de nosso país: o Menino de 47, Império Serrano, e a Majestade do Samba, Portela. Diferente do primeiro texto dessa série (sobre a relação direta entre o Paraíso do Tuiuti e seu padroeiro, São Sebastião, o santo-rei) e do segundo texto (sobre a influência do toque do orixá padroeiro, Oxóssi, na construção da identidade da bateria independente), nas linhas de hoje, vamos misturar um pouco das duas coisas e passear por acontecimentos, símbolos e histórias que ligaram e ainda conectam a comunidade da Serrinha ao santo e ao orixá responsáveis por zelar e guiar o caminho da agremiação.
O Império Serrano foi fundado em 23 de março de 1947, data que dá origem à carinhosa forma com que o chamam – “Menino de 47”. A escola surge de uma ruptura à hegemonia pautada no autoritarismo de anos, comandada unilateralmente pelo presidente da Prazeres da Serrinha, Alfredo Costa. Assim como aqueles que nascem nessa data e são regidos pelo primeiro signo do zodíaco, a ariana agremiação não curtia a ideia de se limitar pelas amarras de uma administração unilateral, hierarquicamente familiar e que polia qualquer tentativa de mudança. Nessa levada dissonante, um grupo de bambas, encabeçado por nomes da mais alta estirpe imperial, como Tia Eulálila – quem era a dona da casa que serviu de local demarcatório na fundação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano -, Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola, Sebastião de Oliveira (“Molequinho”) e tantos outros sambistas da Serrinha. Nessa reunião, ficou definido, além do nome e da fundação das escolas, as cores verde e branco – representando respectivamente esperança e paz.
A ideia desse texto não é estabelecer uma conversa tão profunda sobre a história e os caminhos que proporcionaram a criação do Império Serrano. Para isso, deixamos como indicação o livro, de Rachel e Suetônio Valença, “Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba”. Na obra, os autores fazem uma profunda viagem e detalham todos os capítulos dessa longa e grandiosa trajetória da escola. Pensamos, porém, ser impossível estabelecer uma relação entre a agremiação e seu padroeiro, São Jorge, sem previamente contextualizar historicamente a ligação.
Com a fundação consolidada, a escola se preparava pro primeiro desfile, com o enredo “Homenagem a Antônio Castro Alves” para o carnaval de 1948. Devido à proximidade geográfica e às influências de sambistas da escola vizinha, estava tudo certo para o recém-formado Império Serrano receber as bênçãos de sua quase futura madrinha, Portela. O sucesso do primeiro desfile imperial foi tanto, elevando a escola ao primeiro lugar já em sua estreia, que os bambas de Madureira e Oswaldo Cruz se recusaram a dar a bênção para a nova (mas já campeã) agremiação. Assista ao relato de Tia Maria do Jongo, uma das fundadoras da escola, contando majestosamente essa e outras histórias sobre a fundação do Império no vídeo abaixo!
Após a recusa da maior campeã do carnaval, o Império nunca foi batizado de fato. Embora não seja algo convencional no universo “hierárquico” das escolas, a Serrinha “pagã”, como disse tia Maria no vídeo, nunca encarou isso como um problema. A comunidade serrana pegou esse fator pra si e fez questão de estreitar os laços e canalizar toda a sua devoção (e gratidão) ao santo. São Jorge é o único patrono que a escola tem até hoje, cuja imagem foi oferecida à agremiação por duas das mais antigas alas do Império Serrano, logo após sua fundação – Amigos da Onça e Estado Maior. Desde esse momento de consolidação, o guerreiro da Capadócia jamais deixou de lado aqueles que confiam a sorte à sua lança e lá já se vão mais de 70 carnavais regendo, protegendo e matando os dragões que ousem surgir nos trilhos imperiais. Passearemos por alguns acontecimentos que fazem questão de ratificar essa relação íntima entre escola e seu padroeiro!
Brasileiro, carioca, sambista, Jorge é um de nós. Apesar de ter origem na atual Turquia, São Jorge se tornou o mais brasileiro de todos os santos, movimentando todos os anos uma legião de fieis nas alvoradas, procissões e nos rituais dentro de muitos terreiros – cruzado nas macumbas como Ogum. E pelas bandas de Madureira não é diferente! Religiosamente, todo 23 de abril se inicia com uma enxurrada de fogos, prenunciando um longo dia de devoção. Sem dúvidas, a carreata do Império em homenagem a São Jorge assume uma posição de destaque no calendário anual do bairro. O evento, que foi impedido de tomar as ruas pelas medidas de contenção à pandemia do COVID-19, completaria esse ano sua 50º edição. O percurso trilhado pela imagem, que sai da quadra localizada nas proximidades ao Mercadão de Madureira, é coisa seríssima e começa nas primeiras horas do dia. O primeiro destino, a Igreja de São Jorge no bairro de Quintino, é acompanhado por centenas de motos, carros e fiéis até que o santo esteja dentro do templo religioso. De lá, parte para o Clube da Esquina, em Engenho de Dentro.
Durante a viagem, passar por dentro de diversos bairros da zona norte carioca. O terceiro ponto de parada é a tenda espírita Caminheiros da Verdade. Esse é o momento de maior duração do percurso, já que passes são ofertados pelos médiuns presentes durante toda a procissão a quem quiser chegar e receber a purificação enérgica dos caboclos em transe. Rumando à penúltima localização, a imagem do santo guerreiro ainda faz uma parada em Ramos a tempo de saudar a coirmã Imperatriz Leopoldinense e a Swing da Leopoldina, sua bateria. Voltando pra casa, a carreata segue até ao Morro da Serrinha, no qual costumeiramente é recebida por samba, feijoada e muita festa.
Recapitulando, a procissão sai de Madureira, da quadra do Império, passa por Quintino (Igreja de São Jorge), para em Engenho de Dentro (Clube da Esquina e Caminheiros da Verdade), flerta com Ramos (Imperatriz) e volta para terminar o cortejo, embebida no berço fértil da fé e nos braços da comunidade que viu o Menino de 47 nascer. Só percorrendo toda essa história dá pra entender o porquê de tanta comoção no canto e do marejar de olhos dos componentes do Império Serrano a cada vez que evocam o santo na avenida.
O caso mais explícito de homenagem imperiana ao seu padroeiro foi no carnaval de 2006. Com o enredo “O Império do Divino”, assinado por Paulo Menezes, o componente verde e branco ganhou um lema que sintetiza cirurgicamente a relação entre escola e santo. Mesmo que o tema apresentado pela escola não fosse diretamente direcionado a São Jorge, mas uma abordagem aos mais diversos festejos religiosos do país, a parceria responsável pelo samba-enredo e o carnavalesco fizeram questão de dar todo um toque especial, sabendo da intimidade entre o protegido e o protetor. O grupo composto por Arlindo Cruz, Maurição, Carlos Sena, Aluísio Machado e Elmo Caetano foram os responsáveis pelo refrão inexorável daquele ano:
O meu Império é raiz, herança E tem magia pra sambar o ano inteiro Imperiano de fé não cansa Confia na lança do Santo Guerreiro E faz a festa porque Deus é brasileiro
Ô se confia! Fato curioso é que o refrão apresentado ao carnavalesco na troca de figurinhas do artista visual com a parceria, continha o seguinte verso: “Imperiano de fé não cai, balança”. Sendo rejeitado instintivamente pelo carnavalesco por passar uma ideia de fragilidade conflitante à proposta temática, abriu-se espaço ao verso imortalizado no imaginário carnavalesco. Ô, sorte! Serve até hoje como um mantra pros bambas do Império Serrano, simbolizando a fé inabalável dos que seguem a coroa imperial.
Outra aparição marcante e carregada de simbologia do padroeiro ocorreu no carnaval de 2015. Nesse episódio, a escola buscava a ascensão ao Grupo Especial, que só viria dois anos após, e desfilou com o enredo “Poema Aos Peregrinos de fé”, assinado por Severo Luzardo. A bateria da escola, Sinfônica Imperial, veio representando os devotos do santo em procissão. Seguindo a cultura da oralidade do samba e a característica da influência dos toques de orixás nas baterias, reza a lenda pelas vozes dos mais sábios do Império que a bateria bate em homenagem a Ogum. Dessa maneira, dá-se carga semântica ainda maior à fantasia, personificando o cruzamento do santo-orixá, presente mais forte do que qualquer outro nesse binômio guerreiro na crença popular.
Com essa última aparição, encerramos relembrando que nós já reunimos cinco vezes em que São Jorge e Ogum foram evocados nas avenidas Brasil afora, confira aqui. É sempre tempo de fortificar os laços de fé dos milhares de guerreiros brasileiros que matam diariamente seus dragões e olham sempre pra cima, confiando na lança e na proteção do santo – e do orixá – guerreiro. Salve Jorge, patacori Ogum!
Referências bibliográficas: o livro “Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba”, de Rachel e Suetônio Valença, lançado pela Editora Record, e o artigo “Caminhos de Ogum: Florindo as ruas, festejando São Jorge e Ocupando a Cidade”, de Ana Paula Alves Ribeiro
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