Após vencer o campeonato de 1985 com icônico enredo “Ziriguidum 2001 – O carnaval nas estrelas”, o carnavalesco Fernando Pinto despediu-se da Mocidade por algumas desavenças com a diretoria da verde e branca. Entretanto, após o fracasso da apresentação de 1986, com o estranho enredo “Bruxarias e histórias do arco da velha”, o artista tropicalista marcou seu reencontro com Padre Miguel. Para tentar alçar um voo de proporção ainda maior que a viagem sideral de outrora, Fernando criou um enredo ainda mais ousado e delirante. Nascia, assim, a metrópole retrô-futurista, símbolo do Tupi Power: a grande Tupinicópolis.
Fernando Pinto voltaria à temática indígena quatro anos após tê-la abordado de maneira pioneira, num grito de preservação ecológica em “Como Era Verde Meu Xingu”, e de maneira idílica em “Viagem Encantada Pindorama Adentro”, em 1973, no Império Serrano. Dessa vez, a ideia era ilustrar uma cidade comum, semelhante a qualquer outra brasileira, exceto fato de ser dominada por índios. Todos os elementos de uma grande metrópole foram representados nas alegorias e alas, aliando ícones da nossa cultura com a temática indígena. Assim, nascia a lendária cidade do terceiro milênio.
Com cocar na cabeça e patins nos pés, venha passear por esse mundo incrível a partir de agora, na descrição do desfile de ponta a ponta.
“Vejam quanta a alegria vem aí, é uma cidade a sorrir”
A ironia festiva que marcaria o desfile já dava o ar de sua graça na Comissão de Frente, em que enormes caciques de terno, óculos escuros e malas de couro saudavam o público. A junção de símbolos tão díspares, num misto de crítica social e celebração, pautariam um desfile dúbio e com forte herança do movimento tropicalista, que marcou a arte brasileira nos anos de 1960. O abre-alas marcaria uma grande inovação, apostando numa abertura monumental, já que cinco chassis diferentes formavam uma grande alegoria acoplada e que trazia a primeira visão geral da Taba de Pedra. Depois de inventar o acoplamento na inesquecível Nave Mãe, de 1985, o carnavalesco voltaria a investir na grandiosidade de seus carros.
Num processo narrativo simples mas cheio de camadas, a cidade indígena passava diante dos olhos do espectador numa série de fragmentos e imagens que parecem ilusórias e alucinógenas. Placas de trânsitos, operários, trabalhadores, caipiras e esportistas; tinha todo tipo de gente em Tupinicópolis. Nas alas, a aposta foi em grandes esplendores de fácil leitura para facilitar a comunicação de tamanha multiplicidade cultural. Era um limiar muito tropicalista, entre a crítica e celebração da sociedade capitalista e consumista, abrindo múltiplas camadas de interpretação.
“E a oca virou taba, a taba virou metrópole, eis aqui a grande Tupinicópolis”
Alguns dos maiores destaques do desfile seriam as divertidas marcas locais criadas por Fernando Pinto, abusando de sua irreverência, com nomes de elementos culturais indígenas associados a outras referências dos mais diversos tipos. Nesse processo de justaposição de significados, sugiram as mais inusitadas misturas, como o Supermercado Casas da Onça, em referência a Casas da Banha; o Shopping Boitatá, que representou uma das alegorias mais bonitas daquele desfile, repletos de eletrodomésticos, e produtos divertidos como o xampu Jurema Maracujá. Um grande chafariz de verdade chamava atenção no meio da alegria que apresentava o consumo agressivo e contraditório. Outra febre de consumo era a Farmácia Raoni, repleta de chás para diversas doenças e de várias pajelanças, foi representada em uma das várias alegorias. A ala dos tupiterapeutas, uma mistura de médico e pajé, veio na sequência.
Para fazer tantas compras, a cidade tinha sua própria moeda! No momento seguinte do desfile, o Banco Tupinicopolitano foi mostrado. A moeda vigente no Brasil, então, foi colocada lado a lado do Guarani usado na cidade futurista, onde 500 cruzados valeriam apenas uma unidade da moeda indígena, numa crítica a inflação que começava a assombrar os brasileiros.
A bateria se apresentou belamente vestida de fraques e cocares, com destaque, mais uma vez, para a inesquecível Monique Evans, representando Iracema II, como rainha dos ritmistas. Bira, Jorjão e Léo comandaram a Bateria Nota 10 (assim era chamada naquele tempo), que foi mais uma vez impecável, e Ney Vianna conduziu muito bem samba ao lado de David do Pandeiro. A roupa do grupo trazia uma peruca inspirada no visual cantora Tina Turner e da personagem Tina Pepper, vivida pela atriz Regina Casé na novela Cambalacho, em 1986. Mostrando como era grande o leque de referências de Fernando Pinto, vindo tanto do cinema quanto da televisão.
“Boate Saci, Shopping Boitatá, Chá do Raoni e Pó de Guaraná…”
Como boa cidade globalizada, Tupinicópolis também tinha seu lazer e muitas foram as alegorias que marcaram o divertimento no lugar. O primeiro a passar na avenida foi o Tupinambá Esporte Clube, que veio representado em verde e amarelo, com bandeiras e uma réplica da taça Jules Rimet, símbolo do futebol. As figuras das Olimpíadas e da miss de Tupinicópolis também foram criações de Fernando. Grandes letreiros luminosos tomaram conta da paisagem do desfile, como de filmes de ficção científica e que começavam a tomar conta das metrópoles, neles se via representado locais como o Cine Marajoara (em cartaz, Iracema II), o Teatro Jacuí, Motel Karajás, as Saunas Amazonas, Gambá Drink’s, Boate Karajás e do Hotel Pirarucu, todos representando a agitada vida noturna da cidade.
Os prazeres da noite de Tupinicópolis trouxeram, ainda, o carro da Discoteca do Saci, com uma pista de patinação quadriculada, efeitos de fumaça, utilizada por índios-punks de patins, óculos escuros e cabelos espetados. O carro tinha um cenário vazado com grandes pistas de danças num formato pouco usado no carnaval carioca. A estrutura modernosa e a imagem síntese de nativos patinando como punks foi um dos grandes marcos do desfile. Depois, a ala do cassino abriu passagem para o carro do luxuosíssimo Cassino Eldorado, com jogos de azar, roleta, dados, cartas e espetáculos com shows de revista. O carro do Bordel da Uiara, o mais procurado pelos endinheirados, veio repleto de índias de topless, rodando bolsinha, com perucas coloridas, meia arrastão, plumas, óculos escuros e uma piranha na cabeça. Outra imagem irônica e multi-cultural que deu o tom da apresentação.
“Até o lixo é o luxo quando é real, Tupi Cacique, poder geral”
Na sequência dos prazeres e do entretenimento, a força bélica e social da cidade desfile em alas e alegorias. A Prisão Jurupari trouxe prisioneiros com a inscrição 171 no uniforme. Nesse setor, esteve presente o casal de mestre-sala e porta-bandeira Roxinho e Irinéa, que acabou desfilando sem chapéu, o que foi levantado por Fernando Pamplona na transmissão da TV Manchete, fato que poderia custar pontos preciosos.
O pequeno setor que representava a força bélica do lugar começou com um grande letreiro apresentando a Tapioca dos Poderes, de onde surgiram as forças armadas de Tupinicópolis, representadas pelos carros do tatu guerreiro (exército), marreco bélico (marinha) e gaviavião (aeronáutica).
Uma das mais enigmáticas e emblemáticas alegorias do desfile surgiria logo depois. Um teclado de computador e uma tela com o busto de um Cacique representariam a soberania e sabedoria da cidade, programadores do grande cérebro tupiniquim (a Tupi informática). A ideia era mostrar que a grande força da cidade era, na verdade, um sistema operacional, ou seja, os computadores mandavam na cidade. Assim como a mais rebuscada das ficções científicas que faziam muito sucesso na década de 1980.
A ala seguinte trouxe a feijoada tupi na cabeça. Enquanto, as crianças passaram de garis com vassouras na mão. O último carro da escola, Tupilurb, o Lixo do Luxo, representando a limpeza da cidade, trouxe sucata de carros, tevês, geladeiras, escombros e uma réplica de pontos turísticos brasileiros de outrora, como o Cristo Redentor, Elevador Lacerda e Monumento aos Pracinhas; era o lixo do velho mundo. A última alegoria marcava um grande “plot-twist” da narrativa do desfile, mostrando que Tupinicópolis se passava séculos a frente do tempo atual. Na ficção inventada, os indígenas expulsavam os brancos do país e formaram seu próprio lugar. Era uma clara referência ao enredo do clássico filme “O Planeta dos Macacos”, de 1968.
“Minha cidade, minha vida, minha nação, que faz mais verde meu coração”
Se no aspecto plástico e narrativa, Fernando Pinto havia criado um obra-prima pouco vezes vista na história do carnaval. O quesito de samba-enredo foi um dos mais discutidos daquela apresentação. Tudo começou já em uma disputa acirrada. A obra vencedora desbancou o favoritismo da parceria de Tiãozinho Mocidade, que havia composto o hino campeão de 1985. Optou-se uma canção mais descritiva, que embora alegre e com boa leitura sobre o enredo, deixava a desejar em riqueza melódica. Na apuração disputada, a verde e branco perdeu para a Mangueira por um ponto, num resultado controverso e discutido até hoje. Alguns apontam o samba como fator preponderante.
O segundo lugar ajudou a fixar a apresentação na memória afetiva de torcedores independentes e amantes do carnaval em geral. Até porque, ele seria o último preparado totalmente em vida pelo genial carnavalesco de cabelos cacheados. Em novembro daquele ano, na preparação para o desfile, Fernando Pinto morreria num acidente de carro na Avenida Brasil, voltando da quadra da Mocidade. Para se ter ideia de como a apresentação marcou diferentes estilos e gerações de carnavalescos, ele seria o favorito de artistas como Rosa Magalhães, Jorge Silveira e Paulo Barros. Ganhando ainda diversas releituras e referências no carnaval, como em desfiles na Renascer de Jacarepaguá, em 2010, e na Mocidade Independente, em 2014.