Por Leonardo Antan
Dia dois de fevereiro, dia da rainha. Dos terreiros à figura sincrética religiosa, a deusa das águas salgadas suplantou barreiras no imaginário brasileiro. Fruto da miscigenação e do sincretismo, a rainha do mar se tornou uma figura religiosa brasileira ecumênica, celebrada pelos mais diferentes povos. Seja jogando suas rosas no dia 31, seja participando das procissões no dia 2, todos já saudaram a ela. E no carnaval, festa sincrética por natureza, a mítica orixá já rendeu não só pelos sambas, mas alegorias inesquecíveis. E entre versos e imagens, listamos representações marcantes da sereia.
“Yerê, yerê de abê ocutá em louvor à rainha do mar Iemanjá, Iemanjá”
Como sabemos, não foi sempre que a cultura negra esteve presente no enredo das escolas de samba, apesar da formação identitária negra, as agremiações, sempre negociadoras,, cantavam a história oficial branca em seus desfiles. Por isso, foi apenas em 1966 que o nome de um orixá apareceu num samba-enredo pela primeira vez, e a honrada foi exatamente a rainha dos mares. E logo por duas escolas, a São Clemente e mais marcantemente no samba do Império Serrano, com “Glórias e Graças da Bahia”.
Depois, foi em 1969 que a orixá entrou de vez no imaginário carnavalesco. No que podemos chamar de a primeira grande alegoria das escolas de samba, reverenciada e lembrada até hoje. O cenário era a grande revolução salgueirense liderada por Pamplona e Arlindo, o enredo “Bahia de todos os deuses”. Já passava do meio-dia e o ânimo da escola não era dos melhores, diz a lenda que a escultura sairia no fim do cortejo e, como forma de melhorar a apresentação, decidiram trazer a bela sereia para a frente.
Com cerca de três metros de largura e dois de altura, a alegoria, concebida por Arlindo Rodrigues e realizada por Joãosinho Trinta, introduzia o uso do espelho no carnaval. Conforme ela foi passando pela concentração, seu brilho à luz da manhã foi levantando os desanimados componentes. O impacto foi tanto que coroou um desfile campeão da lendária década negra salgueirense. Dizem, ainda, que o brilho era tanto que a tecnologia fotográfica da época não era o suficiente e, por isso, os registros da alegoria não são dos melhores.
Em 1971, o Império da Tijuca seguiria a tendência lançada pelo Salgueiro anos antes, cantando o enredo “O Misticismo da África ao Brasil”, a agremiação representou a divindade afro-brasileira num belo carro alegórico.
Império da Tijuca em 1971 (Foto: O Globo) |
Anos depois, em 1976, a Unidos de Lucas nos brindaria com outro dos seus sambas inesquecíveis. O belíssimo “Mar Baiano em Noite de Gala” contaria os festejos baianos dando ênfase ao dia 2 de fevereiro. O enredo foi assinado por Max Lopes, então iniciante na agremiação. Ouça:
No mesmo ano, o Império Serrano, comandado pelo carnavalesco Fernando Pinto, apresentaria uma samba-enredo que se tornaria clássico ao falar da deusa. “A lenda das sereias, rainhas do mar” abordava diversas entidades aquáticas, dando destaque a Iemanjá. O enredo seria reeditado em 2009, por Márcia Lage, dando nova forma à rainha do mar. O samba viraria clássico da MPB na voz de vários intérpretes, como Marisa Monte.
O desfile do Império Serrano de 1976. |
Em 1982, a Serrinha voltaria a prestar homenagem à rainha dos mares. O enredo “Bumbum paticumbum prugurundum” sobre a história das escolas de samba até ali eternizaria uma homenagem a Iemanjá salgueirense de 1969, lembrada no clássico verso “Iemanjá enriquecendo o visual”. A divindade apareceu redesenhada por Lícia Lacerda e Rosa Magalhães, herdeiras do mestre Pamplona, no último título Império Serrano.
Desfile Imperiano de 1982. (Foto: O Globo) |
Passados nove anos, outra homenagem marcante veio no enredo sobre as águas da Mocidade Independente de Padre Miguel, em 1991. O carnaval “Chué, chuá, as águas vão rolar”, de Renato Lage e Lilian Rabello, fazia uma citação aos orixás ligados ao elemento natural e não faltou uma belíssima alegoria com espelhos e elementos clássicos ligado à deusa das águas salgadas.
Famosa por algumas apresentações afro marcantes, a Beija-Flor já trouxe belas Iemanjás para a Sapucaí. Uma das mais simbólicas, foi a inovação na representação da deusa afro-brasileira, sem seus espelhos e cabelos compridos característicos. No enredo de 2007, a comissão de carnaval liderada por Alexandre Louzada optou por não trazer a imagem clássica de um navio negreiro marcando a vinda dos negros escravizados para o Brasil. Numa visão lúdica, o carro alegórico os trazias carregados no braço da divindade afro-brasileira, que ganhou uma representação estilizada.
(Foto: Widger Frota) |
Anos mais tarde, em 2011, quando homenageou Roberto Carlos, a azul e branco nilopolitana trouxe a versão mais conhecida de deusa numa alegoria que lembrava os cruzeiros marítimos do cantor brasileiro.
Com dois enredos exaltando a Bahia em 2012, não faltaram lindas sereias no desfile das escolas de samba daquele ano. Tanto a Portela, com seu samba arrasta-quarteirão sobre as festas baianas, lembrou a divindade na letra da sua música: “No mar, procissão dos navegantes, eu também sou almirante de Nossa Senhora Iemajá”. Como também, a entidade apareceu numa representação prateada na segunda alegoria da agremiação de Madureira. Logo na sequência do desfile, a Imperatriz prestou tributo ao escritor Jorge Amado e trouxe a deusa das águas logo em seu abre-alas, no carnaval assinado por Max Lopez.
Segundo carro do desfile portelense de 2012. |
Na terra da garoa, as águas já rolaram várias vezes. Uma história curiosa envolvendo a orixá é o desfile emblemático da Rosas de Ouro em 2005, com o seu “Mar de Rosas”. O belo samba da escola cantava “Iemanjá, abre os caminhos minha escola vai passar”, mas a divindade só apareceu representada no fim do cortejo da azul e rosa. O que acabou não trazendo muita sorte, já que logo na sequência desfilou o Império de Casa Verde, que acabou campeão daquele carnaval, enquanto a Roseira amargou o sétimo lugar.
Outras representações marcantes sobre o tema na folia paulista vieram da Águia de Ouro em 2014, que cantou o centenário do cantor e compositor Dorival Caymmi. Famoso por suas canções envolvendo o mar, uma grande deusa afro-brasileira veio abrindo os caminhos do ótimo desfile da agremiação. Anos depois, em 2016, a Tucuruvi cantando as festas de fé, sob a assinatura de Wagner Santos, também representou os festejos em louvação a famosa entidade.
A imponente Iemanjá da Águia de ouro em 2014. |
Fechando essa lista extensa, a Mangueira louvou a orixá duas vezes nos últimos anos. Primeiro em 2014, quando tratou das grandes festas brasileiras, a louvação a Iemanjá ganhou sua própria alegoria no desfile assinado pelo professora Rosa Magalhães.
E mais recentemente, no último carnaval, mais uma vez a dona das águas salgadas ganhou uma marcante representação na apresentação da verde e rosa. Com o enredo “Só com a ajuda do santo”, o carnavalesco Leandro Vieira dedicou a alegoria do setor que abordava o sincretismo para exaltar a rainha. De aspecto simples, a escultura da vinha num barco em meio as águas e composições que lembravam a cantora Clara Nunes, com cestos de flores e efeitos de água, numa alegoria basicamente pintada.
Foi só em 2019 que Iemanjá ganhou finalmente um enredo totalmente dedicada a ela e seus festejos, apresentando pela Renascer de Jacarepaguá na Série A. “Dois de fevereiro no Rio Vermelho”, da dupla Alexandre Rangel e Raphael Torres, que se transformou num belíssimo samba composto por Cláudio Russo, Moacyr Luz e Diego Nicolau. A letra evocava não só a divindade e seus festejos, mas mergulhava no imaginário de Salvador e seus pontos mais famosos, além de uma citação a obra de Jorge Amado.
O belo e animado desfile contou com diversas representações da deusa em suas alegorias, tanto as versões embranquecidas quanto as negras, mostrando a complexidade da formação dos cultos a rainha e seu aspecto sincrético. Não deixando de permear o imaginário baiano que a envolve.
O abre-alas trouxe uma Iemanjá com feições negras, apostando numa pintura prateada. A alegoria simbolizava a diáspora africana de maneira poética, afinal, foi a vinda dos escravizados que popularizou em terras brasileiras o culto a divindade, que seria fundida tanto as santas católicas como divindades indígenas, como a Iara.
A terceira alegoria criada pelos Alexandre Rangel e Raphael Torres reproduzia o museu Casa de Iemanjá, localizado na praia do Rio Vermelho. O espaço abriga um centro sincrético em devoção a deusa, além de assistir a todo dia 2 de fevereiro a procissão em homenagem à Rainha que atravessa o mar da costa soteropolitana. Na escultura principal da alegoria, uma Iemanjá embranquecida foi representada como uma sereia e espelho, mostrando o sincretismo com Iara. Na frente da alegoria, dois foliões lembravam o escritor Jorge Amado e a sua personagem Gabriela. A casa do baiano fica no bairro que dava título ao enredo.
Por fim, uma enorme embarcação simbolizando o cortejo marítimo em homenagem à rainha norteou a proposta da última alegoria, que trouxe dessa vez uma representação mais clássica da divindade, corando uma bela apresentação da Renascer que terminou em sétimo lugar.
Hoje e sempre, salve a rainha do mar! Odoiá!