A Morada da criação: a força feminina no renascer da Mocidade

Arte por Marlon Mello

Por Adriano Prexedes

Já são doze títulos conquistados, fazendo dela umas principais vitoriosas do carnaval paulistano. Sim, estamos falando da minha, da sua, da nossa Mocidade Alegre, a atual campeã do carnaval de São Paulo. Apesar de tantas vitórias, sua trajetória também teve seus altos e baixos, reinventando-se, contudo, através da força feminina. Vamos relembrar agora sua história e resgatar um seus mais importantes desfiles.


A história da Mocidade começa antes de sua fundação, neste caso, em 1950. Naquele ano, originários de Campos dos Goytacazes, os irmãos Juarez e Salvador da Cruz, acompanhados de amigos, brincavam o carnaval paulistano vestidos de mulher. Os foliões começavam a festa no sábado e só retornavam na quarta-feira. O grupo se popularizou e ganhou novos adeptos, como Carlos, irmão de Juarez e Salvador. O primeiro nome do coletivo foi “Bloco das Primeiras Mariposas Recuperadas do Bom Retiro”, uma alusão à revitalização dos transportes públicos e também ao fechamento dos bordéis da região, ainda na década de 1950. Até então, só era permitida a participação de homens no conjunto.

Os irmãos Juarez (esquerda) e Carlos Augusto da Cruz. Crédito: Dep. Cultural GRCES Mocidade Alegre.

Já em 1963, um dos componentes se recusou a sair travestido. Os integrantes, então, desfilaram vestidos de palhaços. Além disso, nesse mesmo ano, pela primeira vez uma mulher saía no bloco. Seu nome era Neide, a esposa de Salvador da Cruz. Foi também em 1963 que a entidade chamou a atenção de Evaristo da Costa, à época locutor da Rádio América, que descreveu os brincantes como “um bloco muito alegre, um bloco de sujos, como existem muitos no Rio de Janeiro”. Foi a partir desta fala que surgiu o novo nome do bloco: Mocidade Alegre.

Em 1964, um diretor do supermercado PegPag, onde Juarez trabalhava, convidou o bloco para animar uma festa. A partir dali começou uma parceria que possibilitou o crescimento da entidade, que no ano seguinte desfilou em Santos, à época o maior carnaval do estado. Em 1967, por iniciativa do jornalista Moraes Sarmento, ocorreu a oficialização da agremiação, que se tornou Grêmio Recreativo em 24 de setembro daquele ano. A ocasião também marcou a organização das escolas, blocos e cordões para a folia de 1968, que seria a primeira oficializada pela prefeitura. Foi naquele ano que o primeiro desfile oficial aconteceu, quando o então bloco ficou em 5º lugar no grupo 1-UESP com o tema “Festival indígena/índios do Brasil”. No ano seguinte, com “Na corte de Nero”, foi campeã do grupo de Blocos especiais. Com esta vitória, a entidade passou de bloco a escola de samba. Uma forte ajuda foi a influência de Dráusio da Cruz, importante nome do samba santista e fundador do Império do Samba (atualmente extinta), a qual se tornou a madrinha da vermelha e verde. O trânsito de sambistas pela Mocidade Alegre trouxe também a figura do portelense Candeia, que chegou a ser presidente de honra da ala dos compositores e atualmente dá nome ao troféu oferecido às parcerias vencedoras dos concursos de samba-enredo.

 Em 1970, com “Zumbi dos Palmares”, a agremiação foi a campeã do Grupo 2 (atual Acesso 1). Ainda naquele ano, foi inaugurada a primeira quadra na  Av. Casa Verde, no bairro do Limão. Foi nessa época que surgiu o apelido “Morada do Samba” (dado por um componente chamado Argeu), que ficaria eternizado no imaginário sambístico. A alcunha sintetiza o espírito receptivo da Mocidade, o qual foi consolidado em 1972 com a criação do “24 horas de samba”, evento que recebe outras escolas em comemoração ao seu aniversário. Logo em sua estreia na elite paulistana, em 1971, a Mocidade foi campeã com “São Paulo e seus carnavais” e emplacou um tricampeonato com “São Paulo, trabalho, seresta e samba” (1972) e “Odisseia de uma raça” (1973).

Fachada da primeira quadra da Mocidade Alegre. Crédito: Reprodução|Tv Globo

A rápida ascensão ajudou a direcionar o foco do público para as escolas de samba. Isso influenciou o surgimento de novas agremiações e também a conversão de cordões, como Camisa Verde e Branco e Vai-Vai em escolas. Os anos seguintes ao tricampeonato foram marcados por enredos de cunho histórico-cultural e temas sobre negritude, além de ótimos resultados, incluindo quatro terceiros lugares (1974, 1975, 1977, 1978), um quarto lugar (1976) e um vice-campeonato em 1979 com “Revolta dos Malês”. Todos estes desfiles tiveram a assinatura do carnavalesco Edson Machado, que também assinou “Embaixada de sonho e bamba – a festa do povo”, de 1980. Era um ano de dificuldades financeiras entre as escolas. Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Nenê e Mocidade Alegre eram apontadas como favoritas, segundo a edição de 17 de fevereiro de 1980 do Estado de São Paulo. A Mocidade vinha mordida pelo vice do ano anterior e seus componentes apostavam na empolgação para levar o troféu para casa.

Abertura do desfile da Mocidade Alegre em 1980. Crédito: Reprodução| Internet

O enredo fazia uma grande festa para as nobrezas africanas. O grande obstáculo foi a chuva que afetou a maioria das escolas, incluindo a Mocidade, que, contudo, não se deixou abater e fez um belo desfile, no qual o grande destaque foi o samba do trio Barbosa, Crispim e Praxedes. A obra foi fundamental para o sucesso da apresentação e caiu no gosto do público, sendo eternizada como um dos maiores samba-enredos do carnaval paulistano (“O arauto anunciou/  Abram as portas do palácio/ Que a Embaixada chegou”). Na apuração, após muita apreensão, o resultado foi dado e a verde e rubro se sagrou campeã da folia, o que foi visto pela imprensa como reparação de uma injustiça do ano anterior, quando a Morada perdeu o título para o Camisa Verde e Branco. O cortejo de 1980 marcou a última participação de Edson Machado como carnavalesco.

Recorte da primeira página da edição de 22/02/1980 da Estado de S. Paulo destacando a vitória da Mocidade Alegre. Crédito: Acervo Estadão

Para 1981, Pedro Pinotti assumiu o posto de carnavalesco e desenvolveu o enredo “Visungo canto de riqueza”, que versava sobre ao cânticos entoados por negros escravizados nas minas de diamantes em Minas Gerais. O resultado foi o vice-campeonato, atrás apenas do Vai-Vai. O samba, de autoria de Beto e Ademir, é um dos mais conhecidos da escola, tendo sido inserido na gravação do samba de 2013 como uma homenagem a Beto (“Bate bateia, pra lá e pra cá/ Se hoje não tem, amanhã terá”). Em 1982, com “Malungos Guerreiros Negros”, ficou com o 5º lugar. Este foi o último enredo “afro” da Mocidade em anos. A identificação com os temas de matriz afro-brasileira foi uma herança deixada pelo carnavalesco Edson Machado em sua passagem. O artista seguiu abordando essa temática após sua saída da Mocidade Alegre. Os enredos de 1981 e 1982 foram desenvolvidos com a supervisão da escritora Thereza Santos, que era a diretora cultural da entidade. O ano de 1983 marcou a estreia de Raul Diniz, que se tornaria um dos maiores nomes da folia paulistana. Com “Ilusão do Fantástico Eldorado”, ficou em 4º lugar. Raul também assinou o enredo de 1984, “Império das Artes – Missão artística francesa”, que resultou num 5º lugar.

Em 1985 e 1986, ficou em 7º e 4º lugar, respectivamente. No primeiro, falou sobre o comércio, as riquezas e os produtos nacionais exportados para o resto do mundo (“Aqui tudo plantando dá/ Vou exportando que um dia eu chego lá”). No segundo, cantou as tradições populares e os hábitos do povo brasileiro em tom otimista (“Na exposição/ Do folclore brasileiro/ Onde o nosso povo/ Vibra o ano inteiro”). 1987 e 1988 foram os anos de maior destaque da Mocidade Alegre na década após o título de 1980. A agremiação homenageou duas figuras importantíssimas para a cultura paulistana: em 87, a escola exaltou Moraes Sarmento, jornalista e radialista já aqui citado, que exerceu um importante papel no processo de oficialização da Mocidade Alegre e dos desfiles em São Paulo. Com beleza visual e muita animação, a Morada fez uma ótima exibição que contou com o homenageado no abre-alas ao lado de Inezita Barroso, com quem ele apresentou o programa “Viola, minha viola” na TV Cultura. Outro destaque foi o samba-enredo composto por Juselino e Roberto da Tijuca, em que a história de Sarmento era narrada em primeira pessoa (“Eu vejo a Mocidade me levar/ Vendo a passarela colorida/ Retratando minha vida/ Nesta festa popular”). Apesar da grande apresentação, a Mocidade ficou com o 3º lugar atrás de Vai-Vai e Rosas de Ouro.

Já em 1988, o homenageado foi o compositor e zoólogo Paulo Vanzolini, autor de clássicos da MPB como “Ronda” e “Volta por cima”, além de diretor do Museu de Zoologia da USP durante trinta anos. Um fato curioso é que Paulo utilizava parte dos lucros das músicas que compunha para financiar suas pesquisas em herpetologia (estudo de répteis e anfíbios) e biodiversidade. Também no amanhecer, a Mocidade fez uma apresentação bastante emocionante. Vanzolini, muito feliz e emocionado com a homenagem, transitou por toda a pista de desfiles. As alegorias e fantasias de Tito Arantes chamaram atenção pelas referências à carreira musical e científica de Paulo Vanzolini. A Morada saiu como favorita ao título e com a esperança de quebrar o jejum que já durava oito anos. Entretanto, uma questionável nota 7 para o samba-enredo de Roberto da Tijuca, Nenê Capitão e Wagner do Cavaco, impediu a concretização do sonho da vitória. Assim, a agremiação terminou com o vice-campeonato (“Que maravilha! O cientista e poeta/ Paulo Vanzolini no berço da poesia/ a Mocidade hoje traz”).

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Detalhe do desfile da Mocidade Alegre em 1988 e o homenageado, Paulo Vanzolini durante o cortejo. Crédito: Reprodução|Tv Globo

No ano seguinte, a água guiou o cortejo sobre as fontes e estâncias termais, também de Tito Arantes. O resultado foi o 5º lugar. Na folia de 1990, a agremiação investigou em seu cortejo a origem da espécie humana, tema que seria novamente citado anos depois. O desfile, o último assinado por Tito Arantes, rendeu um 6º lugar à Morada. A década de 1990 marcou a transição no comando da entidade, que passou de Juarez da Cruz para seu irmão Carlos em 1992. Foi uma fase não tão próspera da verde e vermelha em termos de resultados. O máximo atingido foi um terceiro lugar, nos anos de 1992, 1993, 1996 e 2000. Olhando para os enredos, podemos destacar: “A espada da liberdade”, de 1992, que prestou tributo ao Jornal O Estado de S. Paulo; “Essas Maravilhosas Mulheres Ousadas”, de 1998; e “Bahia… Um porto seguro”, de 1999. Nos dois últimos, a Morada contou com a presença ilustre de Neguinho da Beija-Flor no carro de som, entoados sambas bastante agradáveis. Porém, o cortejo de 1999 se junta aos de 1995 e 1997 no rol dos problemáticos, já que a escola enfrentou diversas dificuldades em seus quesitos. Além de todos os problemas, ainda houve o luto com a perda de seu presidente e fundador, Carlos, em 1998. A sucessão ficou por conta de sua filha Elaine, que teve a missão de reerguer a entidade, sendo a primeira mulher a assumir o cargo de máximo poder na escola.

Elaine Cristina Cruz Bichara (direita), presidente da Mocidade Alegre de 1998 a 2003. Crédito: Dep. Cultural GRCES Mocidade Alegre

No carnaval dos 500 anos, a Mocidade apresentou um desfile sobre o domínio da Holanda em alguns estados do Nordeste, que ficou conhecido como “Brasil holandês”. Com um samba vibrante da parceria de Biro-Biro, a agremiação se destacou. Para 2001, trazia um tema parecido com aquele abordado em 1990. Desta vez com o enredo “A lenda da lenda – do fascínio de Ophir ao mistério das Encantadas”, abordou a jornada dos primeiros habitantes do território brasileiro. O resultado foi um 7º lugar. Com uma perspectiva de reestruturação, a Mocidade obteve um patrocínio para 2002. Subsidiada por uma marca suíça de produtos alimentícios, a agremiação apresentou uma narrativa sobre o leite. Por conta do contrato com a emissora de TV, a agremiação teve de fazer alterações de última hora em seu desfile. A apresentação aquém da esperada fez a Morada amargar um 8º lugar (pior classificação da agremiação, repetida apenas no ano de 2019).

Chegamos então ao ano de 2003. Depois do fatídico desfile do ano anterior, a Mocidade vinha desacreditada pelos sambistas. O que se falava entre os foliões e componentes de outras agremiações era que a escola viria como candidata ao rebaixamento. As limitações financeiras enfrentadas pela agremiação também acabaram dando margem a esses boatos. O enredo daquele ano foi “Omi – Berço da civilização Iorubá”, de autoria e desenvolvimento do carnavalesco Nelson Ferreira. A narrativa tratava de um itan (conto) sobre a criação do Ayê (Terra) por divindades do panteão Iorubá, no qual os elementos centrais são a água (Omi) e a galinha d´angola, também chamada de adiê ou Etú, animal extremamente importante para as religiões de matriz africana. O enredo também exaltava a energia feminina envolvida no princípio da criação. Este foi o primeiro enredo “afro” da escola do Bairro do Limão em 21 anos.

A Mocidade Alegre foi a 5ª agremiação a desfilar na noite de sábado, 01 de março de 2003. A comunidade do Limão adentrou a pista do Sambódromo do Anhembi logo após a passagem do Camisa Verde e Branco, vice-campeão do ano anterior. Antes do início do desfile, um pequeno imprevisto: o Juizado de Menores tentou interferir no carro abre-alas, alegando que as crianças presentes deveriam estar acompanhadas de um adulto. A questão foi rapidamente resolvida e a Mocidade deu início a sua apresentação.

Assim, o contingente de 3500 componentes (número da TV Globo) começava a tomar a pista do Anhembi. Abrindo os caminhos, a comissão de frente representava Exu, o Orixá mensageiro – que deve sempre ser saudado primeiro –, baseado às portas do Orun (céu). Os integrantes, coreografados por André Almeida, vinham vestidos de vermelho e dourado portando grandes tridentes, fazendo coreografias com o uso desse adereço e em volta do instrumento, já que ele também era colocado em pé sobre o chão.

Comissão de Frente da Mocidade Alegre em 2003. Crédito: Reprodução|Tv Globo

Logo após a comissão vinha o carro abre-alas “Criação do mundo na tradição Nagô-Iorubá”, que sintetizava a parte principal da narrativa: Oduduá despeja sobre a superfície do planeta banhada por água um pó marrom que forma um montículo. Uma galinha d´angola é lançada e ao ciscar no montículo começa a espalhar a terra e dar origem aos continentes, possibilitando a fundação da cidade de Ilê Ifé, o berço da civilização Iorubá, onde Oduduá e os demais Orixás se estabeleceram.

Na alegoria predominava o marrom representando a terra, e na parte frontal haviam esculturas de Adiês. Ainda na parte frontal, estavam as crianças da comunidade, caracterizadas como a ave. A presença das crianças na abertura e no encerramento do cortejo era uma marca e uma superstição do carnavalesco. Neste carro ainda era possível visualizar um letreiro com o nome da agremiação na parte superior. Na parte central, vinha o segundo casal de mestre-sala e porta-bandeira, Érica e Maicon. Ambos representavam galinhas em referência ao animal que deu forma à superfície da Terra. Érica chamou atenção pelos seios à mostra, que eram, na verdade, prostéticos.

“Ciscando, Adiê faz a terra espalhar
Dando luz à nação Iorubá
Expressão de bondade infinita”

Carro abre-alas da Mocidade Alegre em 2003. Crédito: Reprodução| Tv Globo

Sucedendo o primeiro carro, vinha a ala “Saco da criação”. O objeto contendo os elementos para a criação foi dado inicialmente a Oxalá por Olodumaré (Deus supremo). Designado para criar a terra, Oxalá teria de fazer algumas oferendas, incluindo uma a Exu. Oxalá se recusou a cumprir a obrigação, e como castigo Exu lhe pregou uma peça e o embriagou. Ao adormecer, a divindade teve o saco da criação tomado por Oduduá, que ao relatar o caso a Olodumaré, acabou ficando com a tarefa de criar o mundo. A fantasia vinha em tons de marrom e branco, decorada com búzios e plumas brancas.

“Traído pela sua indiferença
Não cumpre a oferenda, sedenta Ilusão
Oduduá faz sua vingança
Tendo o poder em suas mãos”

A bateria Ritmo Puro vinha depois e representava os quatro elementos advindos da criação. Os ritmistas vinham com a indumentária em quatro cores diferentes: azul (água), marrom (terra), branco (ar) e amarelo (fogo). Na entrada do recuo, os integrantes do naipe de tamborins saíam da formação e realizavam uma coreografia em torno de Nani Moreira, histórica rainha de bateria da Mocidade que também representava a água, o elemento principal. Ainda houve um outro momento em que os demais integrantes se ajoelharam e levantaram com a passagem de Nani no meio da bateria. As coreografias da bateria de Mestre Sombra se tornaram um marco da agremiação nos anos 2000, proporcionando outros momentos históricos nos carnavais seguintes.

Atrás da bateria vinha uma ala de passo marcado acompanhada dos casais mirins de mestre-sala e porta-bandeira, que remetiam aos iniciados no Candomblé com as tradicionais pinturas que fazem referência à simbologia da galinha d’angola. A ala seguinte vinha com a mesma representação e dava lugar a segunda alegoria, “Criação dos seres humanos”. Nesta, novamente predominava o marrom, que representava o barro. Componentes vinham como os seres humanos criados a partir do barro e faziam uma coreografia. O elemento central dessa performance era Robério Theodoro, figura conhecida da Morada do Samba e Rei Momo da folia paulistana em 2009 e 2023. O carro tinha uma grande escultura de Oxalá. Não tendo cumprido as demandas designadas pelo Deus supremo, Oxalá fica encarregado de criar os seres que habitariam o planeta.

“E assim o milagre da vida se viu
Moldado em barro o homem surgiu”

Segundo carro da Mocidade Alegre em 2003. Crédito: Reprodução| Tv Globo

Após o carro, seguiram alas que falavam dos povos africanos e sua cultura. No meio destas estava o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira, Rubens e Adriana. Os dois estavam trajados em uma fantasia com plumas pretas e tons de dourado e marfim. Foi o primeiro ano de Adriana como primeira porta-bandeira da Morada. Para ela, o samba vem de família, já que é filha de Mercadoria (histórico diretor de carnaval) e Maria Gilsa (lendária porta-bandeira de São Paulo). Com um bailado fluido e gracioso, o casal fez uma ótima apresentação. As alas dos búzios e da morte vinha logo após e davam lugar ao terceiro carro.

Rubens e Adriana, 1º casal de mestre-sala e porta-bandeira da  Mocidade Alegre em 2003. Crédito: Reprodução| Tv Globo

“Nanã Buruku e a trajetória do homem sobre a Terra” era o nome da terceira alegoria, que abria a parte do desfile que exaltava as divindades ligadas à água. De origem simultânea à criação, Nanã é relacionada às águas densas, à lama e aos pântanos, sendo a senhora dos Ibás (aqueles vindos do barro), regente da vida e da morte. O carro trazia muitas composições vestidas nas cores de Nanã, roxo e branco. A escultura principal era de um esqueleto que representava a morte e ao fundo havia um destaque trajado como Omulu, um dos filhos de Nanã.

“Mistério, é o ciclo da vida a se desvendar
É Nanã Buruku dos Ibás
Governando em águas turvas”

Na sequência, estavam as alas dos povos Igbás e de elementos associados a Iemanjá. Entre eles, estavam as baianas da Mocidade que representavam as oferendas a deusa das águas salgadas. As damas da morada estavam com uma fantasia branca, pano da costa em azul brilhante e flores nas cabeças e nos ombros. Após, a ala “Mãe de todas as cabeças”, que dava espaço para a quarta alegoria, denominada “Iemanjá e a prosperidade no pensamento do homem”. O carro alegórico tinha uma grande escultura de Iemanjá negra, acurada com sua origem e contrapondo a imagem de Iemanjá branca presente no imaginário da sociedade. A cor e a decoração do carro remetiam a água do mar e a peixes, com as composições vinham vestidas de seres aquáticos.

“Chora, de suas lágrimas o rio-mar
Rainha negra Iemanjá, Odoyá!”

Terceiro (acima) e quarto (abaixo) carro da Mocidade Alegre em 2003. Crédito: Reprodução| Tv Globo

As alas seguintes faziam menção a elementos associados a Oxum, como as chuvas tropicais, a riqueza e a fertilidade. O 3º casal de mestre-sala e porta-bandeira, Robson e Daiane, remetiam à deusa das águas doces com fantasias em amarelo e dourado. Robson portava uma representação do abebê (espelho), artefato característico de Oxum. O quinto carro fazia tributo a ela e era centrado no princípio da fertilidade. A alegoria vinha em vermelho e dourado. As esculturas da dianteira traziam Oxum carregando e amamentando uma criança, enquanto as da traseira retratavam a divindade fazendo uso de seu espelho. O elemento central era um feto, representado por uma estrutura semelhante a uma placenta em vermelho e com iluminação interna, que simbolizava a consagração da vida.

“Oxum, Oxum, Oxum! Senhora da realidade
Da riqueza, do amor e da fertilidade
Ora yê yê!”

Atrás do quinto carro, havia alas que representavam de uma forma mais geral outros elementos da natureza advindos da criação, como os animais e as plantas. Encerrando a apresentação vinha o “Panteão dos deuses africanos”, o sexto carro, decorado em preto e branco e com as crianças à frente como pretendido pelo carnavalesco. Na parte central, nas plataformas giratórias haviam destaques que estavam vestidos como entidades do panteão Iorubá. Nos fundos, a representação de um chafariz em referência a água, reforçando sua importância como elemento central da criação e de ligação entre os Orixás.

“Senhor, oh, Senhor!
Aos seus pés
Repousam as águas
Acima de ti não há nada
Iluminai nossa Morada”

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Quinto (acima) e sexto (abaixo) carro da Mocidade Alegre em 2003. Crédito: Reprodução| Tv Globo

Como diz a letra do samba-enredo, a Mocidade deu um banho de fé, de cultura e de axé. Mesmo com todas as adversidades, a escola mostrou sua garra na avenida e deu um show, deixando o público presente em transe com sua apresentação arrebatadora. A parte visual fez uso de materiais mais simples, como a juta, mas que deram um belo efeito às fantasias e alegorias. A atuação da bateria e o belíssimo samba-enredo dos compositores Tico, Imperial, Silvio Negão, Silva Oliveira e Fábio Bonfim foi fundamental para o impacto causado nos espectadores. O refrão da obra parecia dar um recado para aqueles que desacreditaram da escola no pré-carnaval. A atuação do intérprete Daniel Collête também foi muito importante, não só no desfile, como também durante toda a preparação.

“Ôôô, é água amor, fundamental
É água pra vencer o mal
Taí o nosso carnaval”

Depois do desfile histórico, veio a apuração que deu o vice-campeonato para a Morada, o primeiro em 15 anos. A agremiação obteve 195,5 pontos, ficando apenas meio ponto (perdido no quesito fantasia) atrás dos Gaviões da Fiel. Tudo isso se concretizou graças à força e ao empenho de mulheres, que foram as protagonistas deste desfile. O trabalho incansável da presidente Elaine e de sua irmã, Solange, foi o alicerce para estruturar a Mocidade Alegre e recuperar o orgulho do componente. Também se destaca aqui o nome de Adriana Gomes, que aceitou o desafio de conduzir o primeiro pavilhão da agremiação, começando, a partir dali, a construir uma trajetória de glórias no samba paulistano.

A presidente Elaine já enfrentava problemas de saúde e veio a falecer no mesmo ano. Com isso, Solange assumiu a presidência e deu continuidade ao trabalho que foi iniciado no ciclo de 2003. Já no primeiro carnaval sob seu comando (2004), a Mocidade conseguiu um feito histórico, voltando a ser campeã depois de 24 anos de jejum. Solange não parou por aí: com uma escola reestruturada e uma comunidade apaixonada, a Morada do Samba ainda levou mais sete troféus de campeã (2007, 2009, 2012, 2013, 2014, 2023 e 2024) e mais cinco vice-campeonatos (2008, 2010, 2015, 2018 e 2022). Solange consolidou seu nome na antologia do samba brasileiro como uma das maiores figuras femininas e seu legado é reconhecido por outras escolas. Em 2022, a mandatária foi homenageada pela Sangue Jovem, escola de Santos, cidade que teve grande influência na formação da Mocidade Alegre. Em 2024, a presidente foi homenageada pela Unidos de Vila Santa Tereza, na Série Prata do carnaval carioca.

Solange Cruz, presidente da Mocidade Alegre desde 2003. Crédito: Reprodução| SASP

De um bloco formado apenas por homens a um símbolo de representatividade feminina no samba: a trajetória da Mocidade Alegre nos mostra que é possível se reinventar e alcançar voos mais altos, buscando sempre o melhor de si, mesmo quando aqueles no seu entorno não acreditam no seu potencial. Para isso é preciso lutar, pois “a vitória vem da luta, a luta vem da força, e a força, da união”.

Agradecimentos:
Edson Guidoni – Diretor de Carnaval do GRCES Mocidade Alegre
Fábio Parra – Diretor Cultural do GRCES Mocidade Alegre

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Uma resposta

  1. Que texto lindo!!!! Que viagem ao túnel do tempo, relembrar nossa história grandes lembranças das alegrias e dos choros obrigada pelo belo texto como diz o samba de mestre sombra nem mesmo quando Deus me levar eu vou te deixar minha morada ❤️ Bete Orsi

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