Texto: Leonardo Bruno
Como será o amanhã? Quando a minha alegria atravessar o mar e ancorar novamente em quadras e avenidas cidade adentro, algo terá mudado para sempre na relação dos sambistas com seus símbolos mais benquistos. Alguns de nossos elixires de felicidade estarão lá, intocados, castos e salvaguardados: o arrepio no corpo quando toca a bateria; a energia que move nossos pés rumo ao passo sincopado; a batida forte do coração ao avistar águias, coroas, estrelas, tigres, pavões e leões imponentes; e o cerrar de olhos, acompanhado de sorriso largo, que acompanha letras e melodias de nossa preferência. Sim, virá o dia do reencontro com tudo isso. E estaremos todos juntos, balde no chão, copo na mão, chapéu da Velha Guarda na cabeça, sem hora pra chegar em casa. Mas uma peça desse quebra-cabeças promete não se encaixar da mesma forma quando a sirene do fim da pandemia tocar. Ou vocês acham realmente que, num futuro próximo, nós voltaremos a beijar os pavilhões com a mesma desenvoltura que exibíamos antes?
É, meus amigos, essa fratura exposta dolorida se avizinha para o povo do samba no mundo (imaginemos, ele há de vir) pós-pandemia. A volta às quadras será inevitável – em breve poderemos retomar espaços como os ensaios técnicos, as ruas do bairro, o Baródromo, a Cidade do Samba. Mas será razoável voltar a colocar a boca num pedaço de pano, um a um, em fila? Esfregando a bandeira na testa em oração? Colando os lábios de forma demorada? Alguns apenas simulando o beijo, mas aproximando o rosto com a mão na frente, nariz exposto, amor pela agremiação benzido em forma de perdigotos? Não, esse episódio relicário, infelizmente, será coisa do passado. É com pesar que decreto o fim dessa cerimônia mística-esotérica-sobrenatural-cósmica-apoteótica: beijar bandeira, nunca mais!
Quem já foi a uma quadra de escola de samba sabe como é, e não estranhou nenhum dos cinco adjetivos usados na frase anterior – eu poderia até ter usado expressões Milton-cúnhicas, como bafônica e divinérrima, que não estaria exagerando. Quando a porta-bandeira coloca o pavilhão na cintura, parece que a respiração da quadra fica em suspenso. A plateia se prepara para o momento mágico, o auge da noite, o espocar de fogos no réveillon, a transformação de água em vinho, o apito final do juiz na decisão de campeonato. O pavilhão, erguido, se torna o centro das atenções em qualquer terreiro. Afinal, a bandeira é usada como símbolo da agremiação porque pode ser vista de qualquer lugar, de longe, está acima de todos os componentes, tem visibilidade garantida. Não é à toa que o brasão da escola está estampado ali. De onde você estiver, pode até não enxergar sua detentora, a porta-bandeira, ou seu defensor, o mestre-sala; mas o pavilhão está sempre à vista, soberano e altaneiro.
E aí começa o show. Conforme as dançarinas rodopiam com seus estandartes, é o mundo que gira à nossa volta. Entramos em estado de entorpecimento involuntário, mesmo sem álcool circulando no sangue, simplesmente pelo fato de participarmos daquele transe coletivo. E elas seguem desenhando sua melhor obra, algumas mais delicadas, outras incisivas, umas com mais ginga, outras com carisma transbordante, o estilo não importa, a hipnose é efeito colateral inevitável quando se avista a dança do casal ancestral.
Em determinado momento, porta-bandeira e mestre-sala param lado a lado. Estendem o pavilhão – mais esticado do que o couro do tamborim. Olham para os componentes. É chegado o clímax da noite. Eles, dois únicos seres abençoados com o privilégio de portar aquele manto, vão conceder a alguns poucos escolhidos, pobres mortais, a honraria de poder beijar o pavilhão. Dentre as centenas ou milhares de componentes presentes ao ensaio, apenas meia dúzia terá essa primazia. Nesta hora, vendo aquelas duas figuras se aproximarem, não existe no mundo comenda mais nobre – nem ser escolhido “Sir” pela Rainha da Inglaterra, muito menos figurar entre os mais influentes na lista da revista “Time”. Qualquer um de nós que faça parte daquela roda, tendo a possibilidade da escolha, optaria por receber a distinção de repousar os lábios no pavilhão. E aí se concretiza o gesto mais sublime já inventado na história do carnaval. Cheio de signos, significados, significantes, ritual puro, liturgia máxima da seita do deus Momo.
O cantor e compositor Chico Buarque beija a bandeira verde e rosa. Foto: Reprodução/Notícias UOL |
Aquele leve toque, de duração infinitesimal, parece durar uma eternidade – quando beijam suas bandeiras, portelenses se transportam para o hepta dos anos 40, mangueirenses reencontram Cartola, independentes regem ao lado de Mestre André e salgueirenses dançam o minueto. É revoar de borboletas, é tocar de sinos, é soco no estômago. Naquela noite, entramos para o rol dos escolhidos. Eleitos pela sua agremiação, nomeados pelo seu pavilhão. Carregamos aquela medalha no peito, aquele carimbo no rosto, até a hora de sair da quadra. Vamos dormir aconchegados, abençoados, iluminados, cobertos pelo divino manto. Alegria maior não há.
Pois essa alegria, meus caros, está com os dias contados. Mesmo que a pandemia abrande, mesmo que o corona vá embora, quem há de voltar aos velhos hábitos em que salivas coletivas são despejadas sem preocupação no mesmo recipiente – ainda que um tão nobre quanto o estandarte? Já imaginávamos que, depois de tudo isso, nunca mais seríamos os mesmos. Mas perder o encontro com essa luz divinal que emana de um estandarte… para isso não estávamos preparados. Já cansei de perguntar quando vou voltar a uma quadra livremente; já estamos exaustos de querer saber quando será o próximo carnaval. Mas, verdadeiramente, a questão que mais ocupa meus pensamentos é: quando vou poder voltar a beijar meu pavilhão novamente?
Leonardo Bruno é jornalista, escritor e roteirista. É autor de três livros: “Zeca Pagodinho – Deixa o samba me levar” (Editora Sonora), “Cartas para Noel – Histórias da Vila Isabel” e “Explode, coração – Histórias do Salgueiro” (ambos da Verso Brasil Editora). Durante 18 anos foi repórter, editor e gerente de negócios do jornal “Extra”. Integra também o júri do Estandarte de Ouro há alguns carnavais.