Minha Identidade: a soberana de Nilópolis, um raio X da Beija-Flor

Por Beatriz Freire e Leonardo Antan

Somos definidos por nossas características individuais e por nossas peculiaridades, que nos tornam únicos no mundo. Com as escolas de samba, não é diferente. Desde a sua criação, trilharam caminhos que as configuraram e deram-nas particularidades que podemos observar atualmente. Por isso, o Carnavalize estreia a série que mostrará a construção da identidade de cada uma de nossas agremiações. Toda essa identidade é construída durante as histórias delas, não é algo fixo e imutável, mas em constante transformação. Afinal, o que constitui uma escola de samba? São seus desfiles, seus componentes – ou tudo isso junto?
Carnavalescos, presidentes, patronos, compositores, baianas, mestres de baterias, intérpretes, cada um dá sua personalidade e ajuda na formação de cada agremiação. Acreditando que nossas escolas de sambas são únicas e produtos da rica cultura nacional, vamos percorrer os caminhos e trilhos que a moldaram, dando sequência a essa série que propõe um raio-x da história de cada agremiação, definindo os fatores decisivos que a fizeram ganhar sua identidade própria. Depois de Imperatriz e Mocidade, viajaremos agora na terceira “irmã” que arrombou a festa das quatro grande na década de 70. Relembrando a trajetória vitoriosa da Deusa da Passarela. Vem aprender!

“A luz resplandeceu no caos / Anunciando um novo dia”

Foi em meio ao clima natalino que lá em Nilópolis nasceu um bloco que faria aniversário no mesmo dia que o menino Jesus. A Beija-Flor, antes de ser escola de samba, nasceu como o Bloco Associação Carnavalesca Beija-Flor, em 1948, a partir da reunião e vontade comum de sete amigos: Milton de Oliveira – o Negão da Cuíca, Hamilton Floriano, Edinho do Ferro Velho, Walter e Mário Silva, Helles Ferreira e José Fernandes. 
Ali, escolheram nome, as cores e o símbolo que daria vida à nova agremiação. Representativa em vários sentidos, o bloco teve Dona Eulália, mãe de Negão da Cuíca, como a única mulher fundadora, já que partiu dela a sugestão de “Beija-Flor”.  O homem responsável pelo passo adiante que conduziu a Beija-Flor à condição de agremiação, no entanto, não foi nenhum dos presentes da histórica reunião do final da década de 50. 
Compositor, frequentador dos batuques e figura popular nas agremiações, foi Cabana, batizado Silvestre David da Silva, que inscreveu, em 1953, o até então bloco na Confederação das Escolas de Samba. Em 1954, a estreante pelo segundo grupo apresentou o enredo “Caçador de Esmeralda”, que foi cantado, com toda a justiça, pelas palavras de Cabana, co-fundador e autor do primeiro samba do G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis, que conquistou seu primeiro título e a chance de brilhar no grupo principal no carnaval de 1955. A partir dali, o símbolo de um beija-flor seria o condutor de mensagens e o protagonista de inovações.
“Os famosos enredos chapa branca”
Sob a nuvem cinza dos anos de chumbo que pairava no céu do Brasil, o carnaval assumiu mais uma fez sua faceta de negociadora e serviu ao regime ditatorial, assim como na Era Vargas. A Beija-Flor apresentou, quase que, uma trilogia de enredos que mostravam os benefícios do governo naqueles quase dez anos passados do Golpe de 64.
O início do marcante capítulo veio no carnaval de 1973, em que Manuel Antônio Barroso era o carnavalesco, com o enredo “Educação para o Desenvolvimento” que contava as maravilhas da educação no Brasil, desde os jesuítas, exaltando a importância dos professores e rendendo louvores ao MOBRAL, movimento criado no seio da Ditadura, no ano do AI-5 e implementado mais tarde, que buscava erradicar num prazo de dez anos o analfabetismo do Brasil. 
No ano seguinte, ninguém menos que Rosa Magalhães, então iniciante, assinou os figurinos do enredo “Brasil Ano 2000”, um dos mais conhecidos da Beija-Flor deste período, que falava sobre os progressos do governo que conduziriam o Brasil a um país. O samba, inclusive, exaltava o petróleo (que sofrera com a crise, ironicamente) que jorrava desta terra e a Transamazônica, fruto das obras faraônicas medicianas, que hoje gera sofrimento e caos pela falta de pavimentação. Para finalizar a tríade, a escola, que novamente contara com Manuel Antônio Barroso, levou o enredo “O Grande Decênio”, em 1975, rendendo glórias aos dez anos da Ditadura Civil Militar. Explicitamente, era um recibo dos feitos do governo que torturava, matava e reprimia, mas que com toda sua autoridade queria fazer sua campanha. Assim, em mais uma troca entre escola de samba e poder público, a Beija-Flor buscanda algum prestígio nos desfiles, servindo de trampolim aos feitos dos generais.

“Na terra da encantaria, a arte do gênio João”

Foi em 1976, após esses seguidos enredos, que a história da Beija-Flor mudaria pra sempre com a chegada de um nome: Joãosinho Trinta. O carnavalesco genial vinha de um bicampeonato com o Salgueiro e trouxe para a azul e branco a sequência de inovações que promoveu na Academia. Carros espetaculares, fantasias suntuosas, enredos delirantes e muito luxo. A viagem começou com “Sonhar com rei dá leão” e transformou a inexpressiva agremiação numa nova potência do carnaval. As quatros que se revezavam no título há décadas foram deixadas para trás.

O desfile de 1976. 

E não bastou uma vitória. Foram três na sequência. Um inédito tricampeonato que mudaria os rumos da folia abrindo as portas para que novas agremiações pudessem brilhar. Depois de um delírio sobre o jogo do bicho, Joãosinho contaria a história da folia através dos sonhos de uma avó e a criação do mundo na tradição nagô, fechando cinco campeonatos seguidos desde o Salgueiro em 1974. Um feito que provavelmente nunca será repetido.

O inesquecível carnaval de 1989..

Durante dezessete carnavais, Joãosinho – com o auxílio de outros profissionais da criação como Viriato Ferreira – , se transformou no grande mago da história da folia, colocando seu nome e da agremiação nilopolitana na história da festa, ajudando a criar uma identidade luxuosa e imponente de ambos. Após o tri, foram mais dois títulos, em 80 e 83, que desembocariam no maior carnaval da trajetória dos dois, o revolucionário desfile que trouxe para a Sapucaí todo o lixo da sociedade e do Brasil de então, que terminava num grande chafariz que lava a Avenida e o país de seus problemas.

“O meu valor me faz brilhar”

Após a saída de Trinta em 1992, a Beija-Flor oscilaria entre boas posições nos carnavais assinados por Maria Augusta e Milton Cunha mas tudo mudaria em 1998. A então tradicional agremiação não era mais uma das mais baladas da festa, perdendo espaço para Mocidade e Imperatriz, sem ganhar um título há quinze anos. O ano marcou uma inovação comandada por Laíla que resolveu reunir vários profissionais ocupando a função de carnavalesco, descentralizando o processo criativo da escola.

O carnaval de 1998 sobre o Pará.

A comissão de carnaval já estrearia conquistando o título e seguiria numa trajetória vitoriosa que colocaria a Soberana de novo no patamar entre as grandes da festa. Hoje, vinte anos depois, foram oito títulos conquistados, transformando a escola na maior campeã da era Sambódromo. Na época em que a Imperatriz ditava as regras de um carnaval “tecnicamente perfeito”, a azul e branco daria sequência a esse jeito de desfilar, valorizando os quesitos. Após o título, seriam quatro vices seguidos até o novo campeonato, em 2003, que abriria um novo tri na história da escola. Uma soberania absoluta.

Desfile campeão de 2004 sobre Manaus.

Apesar da assinatura ser do grupo e vários profissionais atuarem nas diversas funções de um carnavalesco, alguns nomes em especial passaram pela Comissão deixando sua marca. Podemos dizer que até 2006, incluindo o inesquecível tri dos anos 2000, contaram com o talento de Cid Carvalho na criação de uma estética luxuosa e imponente. Depois, em 2007, Alexandre Louzada chegaria para trazer sua assinatura aos grandes carnavais nilopolitanos.

A esplendora África de 2007.

De um lado, a estética marcada pela opulência, formas grandiosas, luxo e fantasias carregadas trazidas por Joãosinho e redesenhadas pela Comissão. Na pista, um verdadeiro rolo compressor de uma comunidade que se criou em volta da escola, famosos pela garra e competência na hora de dizer no pé. A Beija-Flor é comprovação da máxima “time que está ganhando não se mexe”, mantendo uma equipe que cria identificação com a escola e pouco se muda ano após ano.

É o sorriso alegre do sambista, ao ecoar do som de um tambor

É por isso, que listar as grandes personalidades que ajudaram a moldar a personalidade da Beija-Flor é preciso começar falando não de uma pessoa, mas uma cidade inteira. Nilópolis se construiu para o Brasil através da sua escola, e vice-versa. O município da Baixada Fluminense se tornou completamente ligado a sua agremiação, a comunidade é uma verdadeira marca da personalidade da azul e branco. Essa identificação tão forte acabou por criar a sufixo “de Nilópolis”, que não faz parte oficialmente no nome da escola de samba.

A figura do patrono é tão importante para a história nilopolitana como algumas de suas co-irmãs. A família Abraão David, de origem libanesa, caiu no samba com a azul e branco. Os irmãos Nelson, Farid e Anísio estão profundamente ligados a trajetória e ao sucesso da agremiação. A primeira passagem deles pela escola foi ainda na década de 60, mas foi nos anos seguintes que se estabeleceriam, montando a equipe que deixou a agremiação famosa.

Em uma escola marcada por sua equipe, não podemos começar por outra pessoa senão Neguinho que ganhou exatamente de “da Beija-Flor”. Chegando ao solo sagrado em 1975, convidado por Cabana – e os feitos desta figura icônica só comprovam sua importância – depois de cantar por um tempo no Cordão da Bola Preta e na escola de samba Leão de Nova Iguaçu. Foi a pedido de Anísio, que Cabana o convidou para substituir o intérprete recém-falecido da agremiação, Bira Quininho, no carnaval de 1976. E assim se fez. Neguinho pisou em Nilópolis, e deixou o “da Vala” pelo “da Beija-Flor”, sagrando-se campeão da disputa de samba em seu primeiro ano na agremiação. “Sonhar com Rei dá Leão”, criado pelas mãos e voz de Neguinho, foi o início vitorioso de um casamento para a vida inteira.

Cria do morro do Salgueiro, foi na Academia do Samba que Laíla começou no carnaval, participando da década negra que marcou a história salgueirense. Na década de 70, foi figura importante na organização da escola para bicampeonato, com a mudança de João para Nilópolis, o sambista o acompanhou. Foram idas e vindas na agremiação, até a volta definitiva vinte anos atrás, se a Beija-Flor se tornou uma escola organizada, forte e defensora de quesitos, foi muito pelo talento e conhecimento da festa do diretor de carnaval.

A história de Selminha e Claudinho começa em 1992, pela Estácio de Sá, na campeã Paulicéia Desvairada, antes da chegada à agremiação azul e branca. Foi em 1995, porém, que os passos deste casal rumaram ao coração de Nilópolis.  Caminhando para o 23º ano defendendo o pavilhão da escola amada, Selminha e Claudinho são donos de um bailado impecável e prestigiado, além de inúmeros prêmios, notas máximas e respeito dos colegas e torcedores da agremiação.

Rainhas de bateria famosas também fizeram sua história na escola azul e branca, primeiro Soninha Capeta brilhou de 88 a 2002, com seu samba chamado de “liquidificador”, por sua velocidade impressionante. Depois, Raíssa era apenas uma menina de 12 anos quando foi coroada rainha da bateria da Beija-Flor, em 2003, para não sair até hoje. Crescendo diante o público da Sapucaí.

“Vem aprender na Beija-Flor

“Em nome da renovação do carnaval”, a Beija-Flor tem optado por novos caminhos dentro e fora da pista de desfiles. Em 2017, ousou ao trazer um desfile sobre Iracema sem alas, organizado por tribos, fantasias distintas, e atos teatralizados para contar o enredo. No caso, a inovação não deu tão certo para os jurados, que canetaram a ideia. O símbolo da escola também ganhou novo visual, e o beija-flor tradicional ganhou um novo desenho e uma flor com as cores que representam as atividades sociais da escola. 
O controverso desfile sem alas de 2017.
No comando, a divisão também se ilustra sob a figura de Gabriel David, herdeiro de Anísio e conselheiro da agremiação que timidamente vai mostrando um projeto de entendimento sobre o carnaval e para a escola muito diferentes de tudo que a Beija-Flor construiu até hoje. Para 2018, mais novidade: comissão de carnaval mantida, contando com o retorno de Cid Carvalho, inclusive, mas com a participação ativa e surpreendente de Marcelo Misailidis, coreógrafo da Comissão de Frente, que nesse carnaval é o idealizador do enredo, participou do processo da criação do desfile e acompanha de perto o processo das alegorias e demais detalhes do que a Beija prepara.
“Sou Beija-Flor e o meu tambor tem energia e vibração

A histórica apresentação de 2001, sobre a lendária Agotime.
O título de “Deusa da Passarela” já diz tudo, a soberania, o ar soberbo e o luxo consolidaram a Beija-Flor como a agremiação mais importante da festa dos últimos quarenta anos, não só pelas incontáveis vitórias mas pelas diversas revoluções que promoveu na festa. Com sua equipe consolidada e que carrega consigo a cara da agremiação, reuniu em torno de sim toda uma cidade que a faz a escola mais valente e sempre uma das mais aguardadas na Sapucaí.

Leia mais da coluna “Minha Identidade”, saiba mais sobre a história que formou a personalidade da Imperatriz e da Mocidade.

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