#Quilombo: a pretagogia das escolas de samba: processos educacionais que vêm da ancestralidade

Por Guilherme Niegro e Vivian Pereira
“Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte” Solano Trindade 

As três matriarcas. Autor: Osmar Filho

No senso comum, a escola tradicional ocidental é a única forma de se oferecer um ofício. Só por meio da educação institucionalizada, oferecida pela Estado, é que ocorre ou é compreendida a prática da educação. No caso da cosmovisão Bantu, a educação é algo ligado à coletividade da comunidade por intermédio da partilha de conhecimento. Assim, são gerados os ofícios para serem exercidos dentro e fora da comunidade; na diáspora, os quilombos eram organizados dessa forma, e no pós-abolição, com o surgimento das Escolas de Samba, esta cosmovisão permanece dentro destas sociedades.
Entende-se, com isso, a importância da ancestralidade e dos mais velhos dentro destes espaços nos quais conhecimento é compartilhado de forma geracional. Ressalva-se aqui que, mesmo com a espoliação branca dentro destes espaços – reflexo de nossa sociedade -, permanecem reexistindo dentro deles as tradições bantuísticas, principalmente de forma oral. “Uma variedade de raízes de palavras proto-Bantu revela as maneiras em que as sociedades compartilhavam conhecimento e educavam os jovens”, como diz o livro África Bantu. Ou seja, a divisão ocorre de forma oral e se reinventando tanto no continente africano quanto na diáspora do outro lado do Atlântico.
Foi o que o nosso ancestral Mestre Ismael Silva enxergou ao denominar o seu Quilombo de Escola de Samba, pois ali se ensinava o ofício de ser sambista e as artes nobres do samba; tocar, criar e sambar, de forma coletivizada. As movimentações surgem em um período no qual era negada aos negros e às negras a educação plena nos espaços de ensino tradicionais oferecidos pelo Estado, em um ensino euro-estadunidense cristão, focado na ideologia eugenista. Os Quilombos do Samba eram a reinterpretação das sociedades Bantu no século XX.
A obra “Escola de Samba: A árvore que esqueceu a Raiz”, de Cadeia e Isnard, versa sobre o conhecimento que veio de fora para dentro destes espaços, prejudicando o crescimento ou a continuidade destes ensinamentos, a partir da entrada e da dominação do fazer carnaval não só dos carnavalescos acadêmicos, como também dos brancos paternalistas que transformaram as Escolas de Samba em espaços de crescimento financeiro individual e de poder perante a comunidade, com ou sem a participação do Estado.  
No livro “Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile”, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti descreve as diferenças em dois grupos.
“Os sambistas tinham filiações comunitárias ao morro, à escola de samba, às suas expressões artísticas e aos seus antecedentes históricos: o samba de terreiro, o samba de partido-alto, o jongo, o samba de roda e o candomblé, ao passo que os carnavalescos mediavam as demandas econômicas e culturais do mundo ‘fora’ da comunidade: o turismo, os consumidores de classe média da zona sul, e a indústria fonográfica”.
A grande mãe. Autor: Osmar Filho
A denominação do “carnavalesco” individualiza o que era organizado de forma coletiva e, assim, faz perder o sentido de comunidade. Passa a ser para a comunidade, e não mais dentro do conceito de PRETAGOGIA, que é a partilha, a organização e o sentido de criação (feito de preto e preta para pretos/pretas e não-pretos/as). Não adianta termos uma enxurrada de enredos de temática afro/negra se os principais espaços de execução são ocupados por brancos e  sobretudo acadêmicos, sem ligação aos Quilombos do Samba, que passam a folclorizar e a enxergar essas histórias apenas como temáticas carnavalizadas.
A figura do carnavalesco acaba interferindo, também, na produção dos sambas-enredos. Os compositores tinham maior liberdade para comporem os sambas, trazendo a visão da comunidade sobre o enredo. As obras musicais retratavam aquela realidade. Porém, quando o que era coletivo (o processo de desenvolvimento e execução do enredo) fica centrado em uma única figura, o carnavalesco, a visão passa a ser dele, o enredo toma a personalidade dele. Como a maioria dos carnavalescos são homens brancos, o enredo fica embranquecido. O samba-enredo também fica com a cara que o carnavalesco quer, já que é a ideia do carnavalesco que acaba imperando nos samba enredo – agora, a tradução musicada de uma sinopse. Não bastando isso, depois das disputas, o samba campeão pode passar por modificações para se “adequarem” ao enredo proposto. E aí, retornamos à questão: não adianta ter enredos com temática afro/negra se quem executa é branco, se as ideias, os pensamentos sobre os enredos, são deles. 
Assim, o que temos hoje como samba-enredo é a ideia de apenas uma figura ou de um pequeno grupo de pessoas (majoritariamente brancas) que detém o poder intelectual nas escolas de samba. Ganha o samba que melhor traduz a ideia do(s) carnavalesco(s). Com isso, a composição de samba-enredo vira uma indústria, em que qualquer um que saiba musicar uma situação e que tenha capital econômico pode chegar. Esses acabam dominando tais espaços, sem que saibam em qual terreno estão pisando, sem saber dos fundamentos e tradições que fazem parte daquele lugar, deixando de lado quem chegou ali primeiro. E a comunidade acaba silenciada, o compositor local não tem vez, perdendo-se, dessa maneira, a ancestralidade, a tradição e oralidade. 
Escutar, falar, assimilar ideias e práticas e desempenhar ações coletivamente conferem sabedoria e fortalecem o senso de pertencimento, bem como a educação nos Quilombos do Samba (o ensino dos mais velhos/as como histórias orais, contos, mitos, canções, charadas e provérbios narrados nas conversas em forma de roda, de samba, do jongo, do maracatu e afins)!
Exemplo clássico dessa relação geracional é narrada pelo ancestral Tantinho da Mangueira no programa Ensaio (disponível aqui). Tantinho fala que sua família pertencia à Estação Primeira de Mangueira, e ele ingressa na ala da bateria entre seus 5 e 6 anos de vida. Aos 13 anos, é convidado pelo Mestre Cartola para integrar a ala de compositores da escola. No programa, ele conta que sem antes passar por um teste, todos e todas que quisessem integrar a Ala de Compositores tinham que passar pelo crivo do Professor Cartola. Esse processo vem se perdendo dentro das novas disputas de sambas-enredos, com a falta de identificação dos compositores com as Escolas, a partir dos escritórios do samba, que visam lucrar com as competições. 
Os membros mais velhos destes Quilombos têm a responsabilidade de corrigir, questionar aspectos das histórias, das letras ou da tradição oral que eles consideram que o “carnavalesco” ignore, esqueça, ou narre de forma incorreta. Nada é mais importante dentro de um Quilombo do Samba do que o respeito à opinião dos nossos e das nossas pessoas mais velhas, pois com elas está o conceito de educação quilombola que deu origem às escolas de samba.

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