Por Guilherme Niegro
Em nossos sete textos desta parceria com o Carnavalize, abordamos valores tradições africanos e afrodiásporicos que estão inseridos no dia a dia das Comunidades carnavalescas. Esses valores são marcas de memória, os quais o colonialismo não conseguiu apagar e tampouco conseguirá a elite branca, que teima em espoliar estas agremiações negras. Esta memória que falamos permanece a cada nascer de um corpo preto, tendo em vista que o corpo é o nosso sagrado; é a partir dele que manifestamos nosso contato com a energia/axé das manifestações da natureza, numa simbiose ontológica de troca mútua. E é a partir dela que se dá a circularidade em nossas cosmogonias.
Para nossa ancestre Azoilda Loretto Trindade, os Valores Civilizatórios são os exemplos máximo da Circularidade – “O terreiro tem o papel importantíssimo de resgatar a Mãe África, mesmo que através de uma nostalgia, de um lamento. E é esse território representado pelo círculo que vai reaparecer em várias atividades, de cunho religioso e também no espaço lúdico. Essa mesma roda está presente na capoeira, no jongo, no tambor de crioula, na gira da umbanda e no samba”.
Osmar Filho
Para nós, a “morte” só existe a partir do esquecimento. É com esse esquecimento que se deixa de existir um ancestral. Somos o contrário dessa lógica eurocêntrica de enxergar a “morte” como o fim. Em nossas cosmogonias, a “morte” é o novo começo, ou seja, o axé/energia se renova, e é a partir da oralidade que se permanece cultuando nossos ancestrais. Oralidade que a todo momento tentam nos ceifar, a partir de um olhar maior estética quase sempre acadêmica/eurocentrista.
Hampaté Bâ (2003, p. 23) nos ensina que “na África tradicional, o indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele é apenas um prolongamento”, ao que Munanga (1984, p. 70) complementa: “a morte não tem um caráter trágico na África, pois há apenas o desaparecimento de um ser cuja realidade última é inteiramente relativa às entidades preexistentes […] A morte não é uma ruptura, é uma mudança de vida”.
Para esta ancestralidade continuar existindo, devemos estar sempre olhando para aqueles e para aquelas que estiveram antes de nós, que circularam pelas grandes centros, que foram marginalizados, que tiveram que anular uma identidade para que hoje possamos exaltar estes homens negros e estas mulheres negras que deram suas vidas pelo samba, pelo terreiro e para as escolas de samba.
Para os povos africanos e para nós africanos em diáspora, a circularidade está em tudo. Na manifestação do axé, ao se encontrar com o corpo, surgem novas formas para esta energia, que por consequência se dá em manifestações culturais que ligam ENERGIA + CORPO, resultando no Quilombo, na Umbigada, na Capoeira, no Maracatu, no Samba, na Batucada, no Jongo, no Urbano e no Rural, nos Cucumbis e nas Escolas e em toda união entre ENERGIA + CORPO.
Os povos negros sempre louvaram aos seus ancestrais e orixás com o corpo: cantando, dançando, batucando. É o princípio da corporeidade que parte da ideia de Princípio e na Espiritualidade temos Exu: o início de toda comunicação e de todo movimento.
A Terra gira em torno de si e do Sol e nós giramos com ela. Através desse movimento estabelecemos comunicação e entramos em harmonia com todo o Universo. Assim, ao girar as porta-bandeiras e baianas se harmonizam com o Universo, evocam as forças ancestrais, os princípios de quem deu origem à sua Escola de Samba, e ao gerar o movimento no ar, recolhe e espalha o axé para toda a comunidade. Corpo individual e corpo coletivo do Quilombo Escola de Samba, em equilíbrio com a natureza.
A dança, o giro, é ao mesmo tempo arte e reza. Arte porque tem o poder de encantar e expressa o sentimento de um povo. É uma reza porque carrega toda ancestralidade da comunidade.
O Batuque da bateria é a voz do tronco do imbondeiro (Baobá), árvore sagrada. Nela foram talhados os primeiros instrumentos ainda no continente Mãe. Para os Sobas, o embondeiro já nasce velho, nasceu com o mundo e, portanto, são os mais sábios pela experiência. Esta madeira, ao se encontrar com o couro outrora de animal, hoje sintético, dá a liga e a sintonia enérgica desta comunicação que corta o ar e penetra nossos corpos nos dando o ritmo e o axé!
Nossos corpos são QUILOMBOS, nossas raízes são Quilombolas, somo seres do Axé, da Força Vital, da Palavra, do Ritmo, do Princípio, manifestamos tudo isso através do Samba, nossa maior expressão de Comunicação de nossa Comunidade. Fazemos Circular nossa memória sem saber, pois o Samba não se explica, ele se samba!
“Porque mesmo que queimem a escrita
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade.”
NEGO BISPO (2020)