descanso e uma diminuição de ritmo, nossa produção de conteúdo retorna com um
quadro que estávamos super ansiosos para fazer: a #SérieDécada! A segunda
década desse século, iniciada em 2011 e finalizada no carnaval que acabou de
terminar em 2020, trouxe muitas reviravoltas e transformações para a folia! Para traçar um panorama de tudo que aconteceu nestes últimos anos, tem texto
novo todas as segundas, quartas e sextas-feiras.
ou seja, terças, quintas e sábados – um podcast especial será lançado com
nossos comentários em áudio sobre os desfiles, os bastidores das escolhas, e as
nossas divergências de opiniões!
leitoras e aos leitores, como também aos integrantes do Carnavalize de forma
unânime, cada categoria também contará com menções honrosas que por pouquíssimo
não entraram na lista principal. (A gente lembra sempre que a lista é escrita SEM ordem hierárquica, disposta de forma livre, e não em forma de ranking.)
deles, que é, desde os primeiros desfiles, submetido a julgamento: o
samba-enredo. Mostra-se, portanto, não só o peso histórico do gênero que nomeia
e caracteriza as escolas, mas explicita a importância quantitativa intrínseca
dos sambas em relação ao espetáculo geral apresentado. Por outro lado, é inegável dizer que o gênero samba-enredo teve sua importância relegada com a supremacia do visual durante bons anos. Esse cenário certamente se relativizou nos últimos anos, quando grandes obras começaram a romper as convenções estabelecidas e intensificar sua comunicação com o grande público. Prova disso foi a dificuldade que nossa equipe teve para entrar em um consenso e listar os
10 melhores sambas e as menções honrosas desta década pelo grande número de
inspiradas obras – fato que não talvez não se repetisse em recortes temporais anteriores.
pela replicação do sucesso salgueirense com o explosivo samba de 1993, o gênero
samba-enredo enfrentou uma grave “crise estética” do início dos anos 90 até os
primeiros anos desse nosso recorte, como definem Alberto Mussa e Luiz Antonio
Simas no livro “Samba de enredo: história
e arte”. Nessa monotonia criativa, sobraram sambas estruturalmente idênticos e faltaram
composições que pudessem furar a bolha carnavalesca e se posicionarem como grandes
obras do gênero. Tais características foram subvertidas notoriamente nos últimos anos, o que colocou em discussão não só o estilo das obras, mas todo o seu processo de feitura. Não faltaram debates sobre os prós e contras dos formatos das disputas de samba, o surgimento das encomendas como uma espécie de salvação das agremiações e muito outros pormenores que vêm sendo discutidos ao longo dos últimos anos. Como a missão desse panorama é grande e trabalhosa, vamos cortar o papo e partir já para a lista que falará de tudo isso por si mesma, pois o
primeiro integrante pode ser considerado, sem dúvidas, o divisor de águas e a virada de
chave desse panorama.
Confira um panorama mais detalhado sobre as transformações do gênero na última década neste ensaio da Série Sambas.
Toninho Nascimento e Naldo
concordar também que foi quem deu sobrevida e colocou a Portela nos trilhos
para que pudesse voltar a ser a escola competitiva como registra os áureos momentos de sua história. Seguindo a cartilha, o carnavalesco recém-contratado Paulo Menezes apresentou
uma elogiadíssima sinopse à época e inflou as expectativas para a safra da
Majestade do Samba. Querendo esquecer a turbulência administrativa dos últimos
carnavais, essas expectativas não precisaram esperar por muito tempo para serem
concretizadas. Nas primeiras audições da safra, já havia um samba que se
despontava como franco favorito desde o início da disputa e o qual foi coroado como um fenômeno da internet, introduzindo nesta conversa um importante mecanismo de divulgação e consolidação de favoritismo durante o período das disputas de samba.
inovadora diante do cenário citado na introdução da lista, o samba contava com três
refrães e também um fio condutor que, além de cumprir sua função de forma
majestosa ao contar o enredo, era genuinamente portelense: Clara Nunes. Tiro e
queda! Mesmo que com certa apreensão pelos compositores e pelos fãs da obra por
não saberem se a escola optaria por essa quebra ao padrão dos sambas da época, a
parceria felizmente se sagrou campeã. Com um pré-carnaval longe do Portelão,
que passava por uma reforma, os ensaios de rua da escola causavam grande euforia. Com essa energia, a Portela fez um
desfile com garra e com total destaque ao seu chão, cantando, com emoção e a
plenos pulmões, o melhor samba daquele ano – uma composição à altura das maiores da safra
da azul e branco de Madureira, e como há tempo não se via por lá. A Portela terminou aquele carnaval em 6º lugar, com muitos méritos à qualidade da obra, e afastou de vez a triste memória do incêndio
que assolou a agremiação, além de Grande Rio e União da Ilha, no carnaval precedente.
Angola
Diniz, Leonel e Artur das Ferragens
O reforço de peso que chegou à ala de compositores da Vila naquele ano, Arlindo Cruz. Foto: Rodrigues/Riotur |
carnaval de 1988 da escola, em uma busca satisfatória de evocar sua comunidade e inflamar
o chão da terra de Noel. Outro ponto inventivo da parceria foi propor um falso
refrão delicioso, “Reina ginga ê matamba (…)”. Além disso, finalizando
os recursos criativos da parceria, os compositores ousaram ao adicionar um contracanto
na segunda do samba, iniciado em “Pelos terreiros (Dança, jongo e capoeira)”
e finalizado por “A nossa Vila (Agradece com carinho)”, que teve um
ótimo funcionamento no desfile, embora arriscado por agregar complexidade a
fluidez da harmonia. Se não podemos dizer que esse samba coroou o campeonato da
Vila Isabel em 2012, ficando ali no bairro vizinho com a Unidos da Tijuca, pode-se afirmar que, ao menos,
ele figura instintivamente as memórias dos sambistas ao relembrar os expoentes do gênero.
Diniz, Leonel e Tunico da Vila
pé na porta quando o quesito foi fazer samba bom. Dessa vez, com duas
modificações na parceria que vencera no ano anterior, saíram Artur das
Ferragens e Evandro Bocão e entraram ninguém menos do que Martinho e Tunico da
Vila. Traduzindo o enredo da professora Rosa Magalhães, a obra musical é de uma sutileza ímpar e a forma poética como foi composta
evidencia a narrativa proposta perfeitamente. Prova disso é a capacidade de nos transportar à rotina e ao cotidiano dos homens do campo. Estruturalmente, a obra não apresenta invenções tão marcadas quanto no ano anterior, mas prima por uma
combinação poderosa de letra e melodia excepcionais, reafirmando todo o lirismo possível
contido no enredo.
os verbos “plantar/colher”. Se elencar as passagens melódicas inspiradíssimas desse samba ou, até
mesmo, citar os brilhantes versos dele é chover no molhado, também é indispensável citar
a força que ele adquiriu pela internet. Ao viralizar, sendo assistido e ouvido
milhares de vezes no pré-carnaval, figura ainda hoje como um dos mais vídeos mais assistidos do gênero. Toda a repercussão ratifica a grandiosidade dessa obra que não
só foi a trilha sonora do campeonato incontestável da Vila Isabel, mas também é
o primeiro dessa lista que conseguiu a proeza de furar a bolha do carnaval e se
manter ativo após a festa de Momo no imaginário popular. Vale comentar também a
força desta canção ao colaborar criativamente e propiciar mudanças no enredo
original da professora Rosa Magalhães. A carnavalesca, em algumas entrevistas naquele
pré-carnaval, confirmou a mudança em sua ideia inicial, alinhando o desenvolvimento do tema com
figuras construídas pelo samba.
Russo
Com a manutenção do sistema de encomendas, e a ratificação do sucesso dessa fórmula, a Renascer aparece pela segunda vez na nossa lista e se consolida como uma das eminentes escolas de sambaços na década. Dessa vez, o samba também é assinado por um dos intérpretes da escola à época: Diego Nicolau. Ao descrever o fictício encontro entre dois guerreiros negros que se encontravam nas trincheiras da mesma causa social, a escritora e catadora de papel Carolina Maria de Jesus e o almirante negro João Cândido, o samba dispensou a sinopse, não divulgada pela escola, e expôs o enredo de forma poética, lírica e ímpar. A parceria optou por iniciar a letra na primeira pessoa, e a escritora dirige-se de forma comovente e poética ao mestre-sala dos mares com esta emocionante sucessão: “Eu fiz dos versos a fortaleza pra morar/Sou a filha da miséria/Você nasceu pra guerrear”.
Os intérpretes da Renascer, Evandro Malandro e Diego Nicolau, que é um dos compositores do samba. Foto: Gabriel Santos/Riotur |
escola de melodias pesadas e letras densas de outrora, registrando sua importância. A composição possui ousadias que podiam muito bem não terem funcionado, como um refrão de impressionantes oito linhas e a repetição da palavra “amor” em um mesmo verso. O que poderia soar como pobreza estética, no entanto, ganhou uma cadência melódica envolvente, que ajudou na imprescindível
função em não deixar a letra se arrastar. Além disso, em relação ao teor criativo, a parceria optou por um
refrão do meio com quatro repetições do mesmo verso (“Pega no amerê,
areté, anamá”), outra solução ousada que teve adesão maciça dos fãs do
gênero e se tornou uma das marcas características da composição. Ainda bem que arte não precisa seguir regras!
samba da parceria de Claudemir, Ronaldo Barcellos, Maurição, Bruno Ribas, Fábio
Alemão, Wilson Tatá, Alan Vinicius e Betinho Santos como um dos melhores da
década. Diferentemente da ideia inicial proposta pela comissão de carnaval nilopolitana, a parceria foi para outro lado narrativo e abordou termos, episódios e
figuras marcantes do livro Iracema, o enredo da Beija-Flor. Os compositores contrabalancearam positivamente a sinopse da escola
daquele ano – a qual, por sua vez, tinha um viés mais lúdico e não abordava elementos das linhas
de José de Alencar. A melodia que se tornou um
pouco mais cadenciada para atender ao estilo do consagrado Neguinho não foi um fator negativo, como alguns esperavam, mas sim um dos pontos altos da apresentação. O andamento do samba na pista se harmonizou de forma satisfatória com o também ousado visual apresentado pela
agremiação.
Você
Glória, J. Giovanni, Denilson do Rozário, Carlinhos da Chácara, Alex Saraiça e
M. Meiners
campeã da Viradouro em 2016, volta à nossa lista em outra composição marcante e que, dessa vez, contou a presença de seu amigo e consagrado músico-compositor Altay Veloso. Com uma ótima sinopse, assinado pelo jornalista
e escritor Fábio Fabato, o grupo de compositores apresentou uma eminente obra, que cativava
desde a primeira audição o ouvinte de forma rápida e instintiva. A linha melódica fugia ao lugar comum, repetindo a
equação do ótimo samba também da Mocidade do ano anterior. A letra elencava e situava
juntos símbolos e imagens da Índia e do Brasil, ao mesmo tempo que evocava capítulos
e passagens da história da própria Estrela Independente. O único porém dessa
composição foi o verso “Deite e Holi”, trocadilho com o festival indiano. Após críticas, a passagem foi
trocada a tempo e não comprometeu a primazia dessa obra durante o desfile.
Brincadeira à parte, faz-se necessário a citação dos versos “Do sal à doce
liberdade/Há tempo ainda! /Desobedecer pra pacificar/Como um dia fez a Índia!”
em uma poética alusão à Marcha do Sal indiana de 1930 e brincando com a sinestesia
de uma dualidade de sensações, “Do sal à doce liberdade”. Encaminhando-nos para o
fim, vê-se como todo o samba em questão é pensado de forma gradativa até chegar ao clímax do refrão principal, traçando um paralelo entre Nova Déli e Brasil
com uma linda imagem entre o céu indiano e o brasileiro: “Bendita seja a
Santíssima Trindade!/Em Nova Délhi ou no céu tupiniquim/Ronca na pele do tambor
da eternidade/O amor da Mocidade sem início, meio e fim!”. Emocionante, o samba fez a Estrela assinar sua importância no quesito musical na década comentada.
Zezé e Aníbal
mais tiveram repercussão fora da bolha do carnaval nesse passado recente – seja
pelo posicionamento pertinente do enredo em relação ao contexto social no qual vivemos, seja pela exuberância poética e pela força melódica presentes nessa
composição. Como mais um dos sambas encomendados dessa lista, podemos ratificar
a importância e a necessidade da discussão dos caminhos a serem seguidos pela
festa no que tange ao gênero que a embala. Além das pratas da casa
Jurandir, Zezé e Anibal, a parceria contou com os nomes de peso de Cláudio
Russo e Moacyr Luz, e apresenta desde os primeiros versos todo o esforço dos
autores para nos entregar algo à ura do tema pedido. E conseguiram fazê-lo em toda composição.
dramáticos que enriqueceram a narrativa exposta e protagonizaram ainda mais o
teor poético da obra. Abordando o aspecto criativo do samba, destaca-se a sucessão
de dois refrães (de meio) de quatro versos pujantes, os quais denotam a força de sua
letra, propondo novas soluções estruturais. Chegando ao refrão principal, a
parceria retoma um trecho do título do enredo e encabeça de forma cirúrgica
a mensagem que sintetiza o cheque feito pelo carnavalesco e pela escola em
relação às sequelas contemporâneas da abolição da escravidão brasileira: “Liberte
o cativeiro social!”. Esse primor
embalou o melhor desfile da trajetória do Paraíso do Tuiuti e levou a escola à
melhor posição de sua história, o vice-campeonato do Grupo Especial carioca
daquele ano.
Márcio Bola, Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo
das pessoas não é príncipe, princesa ou rainha. A maioria são os ‘heróis de
barracões’”. Dessa forma, a letrista e compositora do samba da Mangueira de
2019, Manu da Cuíca, define um dos principais trunfos desse samba antológico: o
autorreconhecimento. Ao abordar heróis à margem da oficialidade que não estão nos retratos tradicionais, a composição assinada por uma parceria considerada azarona
da disputa foi ganhando corpo desde o primeiro minuto após o áudio do samba ter
sido vazado na rede de mensagens WhatsApp. Tendo como grande aliada a internet,
os compositores viram o nascimento de fãs que se sentiam representados por
aquele discurso pertinente ao enredo e pelos retratos do cotidiano expostos nas
lacunas sociais apontadas pela proposta do carnavalesco, cirurgicamente
sintetizadas no samba. Na disputa, o samba contou com uma repercussão orgânica e de contorno monumental, contando com uma torcida de peso formada por comentaristas de carnaval, artistas fora da bolha e políticos. O percurso
foi trilhado até que a zebra fosse consagrada o samba da Estação Primeira para
o carnaval de 2019.
percorreu. Como fazia a justa e pertinente menção à Marielle Franco, vereadora do
Rio de Janeiro brutalmente assassinada, ele captou atenção e furou a bolha
carnavalesca antes do desfile ocorrer. Por isso, gerou não só um maior
interesse popular pelo desfile da Mangueira, como também certa curiosidade e prévio
conhecimento do samba de uma forma intensa como há tempo não se via. Com a sua melodia valente, a
letra é precisa ao citar heróis da história “alternativa” brasileira. A adesão popular, predominantemente carente ao samba-enredo, encontrou nessa obra o combo perfeito para
exponenciar ainda mais o protagonismo da verde e rosa como uma das principais instituições
culturais desse país, além de ratificar essa década como um marco da oxigenação
do gênero samba-enredo. Tirou toda a poeira dos porões!
No debate de obras que propuseram novas estruturas e formatos em letra e melodia, não pode ficar de fora também toda a discussão em torno dos processos de escolhas das obras musicais. Da principal delas, a encomenda é assunto já conhecido, visto que mesma criticada, gerou três obras presentes na lista. Fato é que em 2020 muitas escolas propuseram novas formas de disputa aliadas nesse debate. O que não falta é assunto para muito debate!
É notório, de qualquer forma, a bela renovação do gênero e a quantidade de obras cheias de qualidade. Exatamente por isso, como dez era um número pequeno, separamos uma outra seleção de menções honrosas com mais outras dez obras que por pouco não figuraram entre os escolhidos finais.
Mocidade 2017: As Mil e Uma Noites de uma ‘Mocidade’ prá lá de Marrakesh