#SérieMulheres Em seio feminino o samba nasceu: as ancestrais e seu legado

Mês a mês mergulhando em diversos universos particulares que formam as complexas organizações que são as escolas de samba, o Carnavalize decidiu derrubar o protocolo social convencional de evidenciar mulheres apenas em março, quando comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Por isso, a partir de agosto, todas às segundas-feiras, nossos leitores acompanharão em nosso site um novo capítulo de uma série pensada para enaltecer, contar histórias, lembrar figuras e propor reflexões acerca do papel feminino no carnaval. 
Arte: Lucas Monteiro.
Por Talitha Dejesus
com colaboração de Luise Campos e Beatriz Freire
Eu nasci no Beco do Chapéu. Nós começávamos tocando o tamborete, os homens pegavam caixa de fósforo e as mulheres apareciam com o pandeiro e a viola, ah! Sambávamos até o dia amanhecer, porque não existia diferença entre homens e mulheres.
Dona Zelita de Saubara
Peço licença para louvar minhas ancestrais…
O mesmo samba que alegra nossas vidas hoje teve como primeiro palco os quilombos do Brasil. E pode-se dizer que se não fosse a presença das mulheres negras, ele não teria resistido, pois o papel delas foi essencial para sua sobrevivência no período pós-escravidão. Não há como negar que o samba ainda é um território hegemonicamente masculino e que as mulheres ocuparam por um longo tempo o lugar de objeto em suas letras e batuques, mas devemos lembrar que não começou assim…
Logo após a Abolição da Escravatura (1888) e da Proclamação da República no Brasil (1889), muitas pessoas pretas migraram para capital nacional daquela época – Rio de Janeiro – em busca de oportunidades de reconstruírem suas vidas como cidadãos livres. Nesse processo, desembarcaram por aqui as tias baianas que trouxeram em sua bagagem os fundamentos que deram origem ao samba que, em seus primórdios, eram festas e batuques que promoviam o fortalecimento de laços comunitários e redes de sociabilidade entre a população negra.
Num processo que podemos chamar de higienização social, o período pós-abolicionista marcou a forte perseguição a todas as manifestações culturais de raiz africana. Assim eram proibidas danças e crenças populares, como capoeira, candomblé e o samba, que foi associado como música de marginais. Já em 1830, no Código Criminal do Império, havia um capítulo que tratava “dos vadios e mendigos”, que previa pena de prisão para quem não tivesse “ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertida pelo juízo de paz, não tendo renda suficiente”. Em 1890, o Código Penal vinculou a esse dispositivo legal os praticantes de capoeira. 
Não é difícil imaginar, desta forma, que os homens negros eram os mais prejudicados por essas regras. Afinal, isso os afetava diretamente, já que dificilmente tinham oportunidades para obter trabalho formal, devido ao forte preconceito racial da época e impossibilidade de ingressar em instituições de ensino.
Nesse contexto, a importância das mulheres negras foi fundamental. Muitas das vezes, eram elas as responsáveis por manterem economicamente suas famílias, pois continuaram a trabalhar em serviços domésticos e ganharam as ruas vendendo seus quitutes. Além disso, construíram grandes quilombos de resistência, acolhendo sua comunidade em seus quintais. O mais famoso deles foi o de Tia Ciata, que além de grande anfitriã e cozinheira, também foi uma grande articuladora política.
A lendária Tia Ciata representada no desfile do Acadêmicos do Salgueiro em 2007. Foto: Wigder Frota
Hilária Batista de Almeida, nascida em Salvador no ano de 1854, chega ao Rio de Janeiro aos 22 anos trazendo seu talento para a liderança e sólidos conhecimentos religiosos – já feita no santo – e culinários. Veio morar junto à grande colônia baiana que se estabeleceu na cidade, especialmente na região central, junto com uma filha, que teve de uma relação com Norberto da Rocha Guimarães, conterrâneo que também veio para a capital, mas não teve contato com as duas depois disso. Viria a se casar com também baiano João Batista da Silva, com quem teve 15 filhos. O marido havia cursado a Escola da Medicina da Bahia – sem completar os estudos – e, no Rio de Janeiro, teve empregos estáveis, chegando a ser funcionário público. Por intermédio de sua esposa, alcança um posto de trabalho privilegiado no gabinete do chefe de polícia. Obra e graça de ninguém menos do que o Presidente da República à época, Wenceslau Brás. O político, segundo relata a história, teve uma ferida curada através dos conhecimentos sacerdotais de Ciata e passou a tê-la em alta conta.
Os festejos para os orixás na casa de Ciata de Oxum, na Praça Onze, eram memoráveis. A cerimônia religiosa era sucedida pelos batuques festivos – na verdade, as duas manifestações acabavam por se amalgamar – e chegavam a durar até três dias. Os participantes iam trabalhar e voltavam para a festa, que seguia viva, com a anfitriã sempre se preocupando em requentar as panelas para alimentar os sambistas. A comida, que alimenta corpo e alma, tem papel nobre e é tradição ancestral matriarcal que até hoje podemos vivenciar nas quadras das agremiações e em rodas de samba pelo Brasil.
Porém, se engana quem pensa que Ciata que se restringia a essa função: a tia baiana era partideira de primeira, respondendo aos refrões e cantando com autoridade. Inclusive, muito se fala da polêmica da gravação de “Pelo Telefone”, em 1916, como marco histórico, dando-se ênfase a distintos questionamentos do ponto de vista da precisão do fato, a começar pela data em que teria ocorrido. No entanto, de um deles pouco se fala: tia Ciata, como exímia compositora que era, reclamou a coautoria da canção junto a sambistas que foram consagrados pela história. As mulheres musicistas – que terão mais espaço em um dos próximos artigos desta série – podem, portanto, se sentir representadas pela matriarca do samba, embora pouco se fale dessa sua faceta.
Nesse momento, voltamos à fala de Dona Zelita de Saubara, sambadeira do Recôncavo Baiano, que abre nosso texto. Quando ela diz que “não havia diferença entre homens e mulheres”, fica claro que o papel da mulher também era o de protagonismo. Mas houve, historicamente, um processo de deslocamento da centralidade de seu papel, o que nos toca corrigir, jogando luz sobre a trajetória dessas pioneiras.
Ciata, portanto, foi líder, protetora, uma das primeiras organizadoras de agremiações carnavalescas (participou da criação de ranchos) e, graças a sua influência no meio político, contribuiu para o estabelecimento do samba como manifestação da cultura negra e popular no contexto de perseguição que sofriam as manifestações de origem africana. Ela, assim como tia Ester, tia Perciliana e tantas outras que entraram para a história como as matriarcas do samba com trajetórias de vida similares, tiveram papel fundamental para que pudéssemos chegar até aqui. 
A ala de baianas da Estação Primeira de Mangueira em 2018, homenageando as matriarcas tradicionais da Praça Onze. Foto: Valéria Del Cueto.
Não à toa, a valorização da ala das baianas nas agremiações é uma forma de homenagear a memória de todas essas tias baianas. A figura das matriarcas detentoras de todo o axé – a força essencial que forjou o samba e as agremiações carnavalescas, e por isso, também, as mulheres são o seio do desenvolvimento dessa rede de sociabilidade musicada – está diretamente associada à representação das mulheres escravizadas, denominadas “de ganho”, ou recém-alforriadas, que circulavam pelas ruas com seus fartos tabuleiros posicionados no topo da cabeça. Na maioria das vezes, eram filhas ou mães de santo cumprindo suas obrigações. Ficaram conhecidas também com as “baianas de acarajé”. 
A imagem da baiana sofre algumas alterações de acordo com a região e o contexto no qual está inserida. No Carnaval carioca, de pano da costa, torso, bata e saia rodada, ela foi incorporada e traduzida como expoente dos símbolos brasileiros, com todos os trejeitos e características que o termo “baiana” – dos mais variados significados – traz. Os desfiles das escolas de samba, para se mostrarem como fidedignos representantes da cultural popular, lançaram mão desta tradicional figura também para comunicar a mensagem de autenticidade dessa manifestação aos olhos do público e dos intelectuais modernistas. Vale lembrar que seu início coincide com os movimentos de busca por identidade brasileira no modernismo a qual o samba serviu, num sentido de ida e volta do ponto de vista da negociação para ser aceito pela sociedade. Saiba mais aqui.
Pintura da escritora Cecília Meireles sobre as baianas e o samba, publicado no seu livro “Batuque, samba e macumba” de 1933. 
Mas, curiosamente, quando os cortejos das escolas de samba deram largada no despontar da década de 1930, elas, na verdade, eram eles. Salete Lisboa, julgadora e jornalista, alerta para a presença unânime de homens que compunham as alas: tratava-se de uma estratégia de defesa do cortejo, quando giravam com navalhas nas barras das saias para que pudessem proteger quem estivesse na pista. A presença masculina foi proibida a partir de 1990 e chegou a reconsiderada em 2006, quando homens puderam integrar novamente as alas das baianas nas escolas dos grupos de acesso.
Com o crescimento da festa, a remodelação da concepção narrativa e visual de desfiles a partir da revolução salgueirense (saiba mais aqui) afetou também as grandes mães do samba, que foram funcionalizadas dentro do novo molde a serviço dos enredos. Assim, vestiam, para além de suas indumentárias, a função de representar um elemento da narrativa a ser contada, aglutinando suas personagens a uma segunda. Não por acaso, elas são segmento obrigatório de todos os desfiles, ainda que não estejam sobressaltadas em um quesito próprio.
Os tabuleiros, que antes iam na cabeça, hoje são servidos em pratos nas barraquinhas de comidas aos arredores de cada agremiação. Esta é uma ligação direta das mães ancestrais com o sagrado, quando estas iabás coordenam a feitura e o serviço do sabor entranhado de liturgias particulares. Tantos pontos permeiam as histórias dessas tias essenciais que giros de braços abertos com o rodar da saia podem até dizer por si só, mas exigem mergulho profundo para que possam revelar tudo que guardam.
Essa ideia da reunião e do acolhimento através da comida, como por exemplo, acontece também com a feijoada, nos possibilita uma grande rede de afeto. Historicamente, as mulheres negras tiveram muitas vezes a formação de suas famílias negadas, então é habitual laços afetivos serem formados nestes espaços de cultura. Quem não conhece uma tia baiana ou integrante da velha guarda que é figura cativa de uma escola de samba e acolhe a todos como se fossem seus filhos?
Com o passar do tempo, o papel das mulheres foi sendo ressignificado e elas passaram a ocupar outros espaços. Como reflexo da sociedade precisaram resistir a pressões machistas desenvolvidas por um sistema patriarcal. E a luta por protagonismo das mulheres, sobretudo as negras, se estende até os dias atuais. Aquelas que ocupam espaços que foram normatizados como sendo masculinos ao longo do tempo, mesmo que inicialmente tenha tido esse protagonismo, hoje são alvo de críticas e questionamentos.
Tia Vicentina da Portela foi uma dessas mulheres que reuniu ancestralidades e saberes da típica figura da baiana fazendo da sua feijoada um sucesso. Foto do Acervo Compositores Porteleneses.
E o samba, que sempre foi símbolo de resistência negra, foi colocando a mulher, negra principalmente, em um lugar menos acessível. A mulher negra sempre foi estigmatizada pela sociedade brasileira, visto o seu histórico de sofrimento social e desumanização. As manifestações culturais que têm origem dos ex-escravizados foram um meio encontrado por estas pessoas para conquistar um seu espaço na sociedade e uma busca por identidade coletiva. Porém, a partir do momento em que esses espaços passaram a ter mais visibilidade e financiamento, essas mesmas mulheres negras perdem seu prestígio. Mas, ainda, assim, o que vemos hoje são mulheres ocupando os mais diversos papéis e atuando no Carnaval de distintas formas. Seja como pastoras, baianas, passistas, madrinhas, carnavalescas, porta-estandartes, intérpretes ou até mesmo como operárias do samba, elas estão presentes na maior festa popular brasileira.
Maria Beatriz do Nascimento, historiadora e sambista, em seus estudos, comparava o território de uma escola de samba a um quilombo. Quilombo, por sua vez, uma palavra de origem bantu, significa fortaleza. Acredito que o legado das mulheres na história do samba é justamente esse: fortaleza! Que nós, mulheres do samba, possamos contar nossas verdadeiras narrativas, amenizando as dores diárias e celebrando as alegrias que o samba e o Carnaval nos proporcionam.
É certo o dito que preconiza que quem não sabe de onde vem, não sabe para onde vai. Que com isso, a gente não esqueça quem veio antes de nós e nos deixou tudo isso como herança e que possamos ocupar todos os espaços que quisermos dentro da Folia de Momo.  
Confira os demais textos da Série Mulheres, que investigam a história das escolas de brasileira pela ótica feminina. O passeio começa pelo seio feminino das ancestrais do samba, segue pelas líderes e fundadoras que fizeram história.  O terceiro capítulo passa pelas Rainhas do canto e da dança: a atuação das mulheres no universo musical, até chegar na Heroínas do barracão: a atuação feminina na construção artística do carnaval
Referências bibliográficas
MOURÃO ARAÚJO, Vania Maria. Yes, nós temos baianas: o processo de formação da imagem da baiana de escola de samba no Carnaval brasileiro. Revista Áquila, setembro de 2016. 
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1983.  
SANTANNA, Marilda (org.). As bambas do samba: mulher e poder na roda de samba. Salvador: EDUFBA, 2016.
https://noticiapreta.com.br/quando-as-baianas-eram-homens/
http://www.justificando.com/2016/08/09/sobre-a-vadiagem-e-o-preconceito-nosso-de-cada-dia/

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