Prólogo
No princípio era o verbo. E os verbos e as gírias estavam com o povo, era o povo, que descia o morro para transformar a rua em palco. Artistas de uma opulenta ópera popular chamada escola de samba, regida por um maestro/profeta que banhou de luxo a miséria e escancarou aflições escondidas em folhas de jornal.
Pelas mãos do profeta João esfarrapados ganharam ar de nobreza e protagonismo. Suas visões misturaram paraísos e infernos. Opostos que se atraem e se reinventam.
O evangelho segundo o João do povo teve suas primeiras páginas escritas na Academia do Samba e pregou que a regra é ousar. Seus delírios etéreos gozavam de intensa liberdade, não cabendo em si ou em julgamentos outros. Sem proibição ou pecado — abolir o não, purgar os preconceitos. A arte é para fazer sonhar, riqueza que não cabe em uma caixa ou que possa estar encarcerada nos porões de mentes tacanhas.
As epístolas deixadas ainda conduzem o reino do carnaval. Quem aprendeu em suas escrituras sabe bem que a alforria é soberana e que o encantamento e as inquietações provocadas pela criação e manifestação artística são elementos fundamentais de sanidade, capazes de provar que a fantasia é uma grande realidade.
João 30:90
Sinopse
O misterioso pórtico ergue-se da página em branco do universo. Por detrás de suas portas maciças, cuidadosamente entalhadas por nobre criador, a mais sublime obra de arte: as faces de um novo mundo. Superfície coberta por jardins que atravessam o horizonte, contorno sem fim. Paraíso protegido, íntegro. Em uma exuberância desmedida brotam árvores, folhas e flores de suntuoso encantamento. Os frutos ostentam tenra suculência, despertam apetite inesgotável. Até onde os olhos alcançam tudo é deslumbrante.
Frondosa e exótica, a natureza se impõe guardiã da sabedoria. O paraíso, ao contrário do que relatam os livros, se expande em tons de vermelho, em ricas cores vivas, fortes e sedutoras, que tingem a terra e o céu.
Entre barro e costela levantam-se as primeiras criaturas. Imagem e semelhança divina, testemunhas únicas a experienciar a excelência do Éden, os mistérios guardados no paraíso original. Adão e Eva, nativos afortunados, são retrato do bom selvagem, carregam em si a pureza em estado bruto, a inocência cercada de curiosidade. Cada descoberta é magnífica: tudo é estranho e familiar. No paraíso, o real e o fantástico se frequentam, o vento fresco tem perfume de liberdade. Os corpos dançam fluidos, percorrem o ambiente livres para as ilusões.
Vagueiam pelos campos sem contar que em sua sombra espia-lhes a ira. Furtiva criatura a invadir sorrateira a calmaria do Éden. Dissimulada aos olhos e nas palavras, transfigura verdades e mentiras, destila veneno poderoso e ludibria talentosa a pureza nativa. Sedutora serpente de língua afiada, faz florescer na mínima censura a mais tenra tentação. De tantas árvores e tantos frutos, somente aquela, proibida, há de revelar os segredos da vida, de preencher a ignorância com sabedoria.
No afã por intensidade, em uma mordida, o vermelho perde a cor, a exuberância míngua. No perigo maior do paraíso, a perda. Fruto da desobediência, agora pecado original. O pórtico se fecha e o Éden esvanece. Paraíso perdido, herança primeira da humanidade, expatriada da perfeição por ser facilmente corrompida.
O ser humano é filho da queda, desorientado pela condenação aos limites mundanos. Aqui na Terra, jardim dos exilados, o inferno são os outros. A cada juízo, uma condenação. Tudo é perversão e pecado. Tudo é proibido. Grandes olhos vigiam a vida dos outros e sentenciam à margem quem desafia os “costumes”: exclusão, apagamento. A obediência anda incorporada na culpa.
Quem há de ter pecado maior?
Uma luta de vaidades se manifesta e entre a inveja e a ira os homens se afrontam. Onde antes dava valor, hoje boto preço. Vendo barato minha dignidade, pois meu paraíso são meus bens. Notícias de tempos corrompidos, dos prazeres da carne, da gula devastadora e da preguiça moral. Relatos de períodos obscuros e frios.
A esperança renasce na fé, na ponta da espada, duelo do bem contra o mal. Na luta diária contra as cabeças de um dragão insaciável pelo sofrimento. Com a batalha armada, põe-se entre nós a cavalgada do fim dos tempos. É ensurdecedor o som do galope austero dos cavaleiros do apocalipse se misturando nas ruas, despertando dores e espalhando terror. Vendem a paz que não queremos, propagam o conflito. Devastam, destroem, espalham a escassez e a fome. E nessa irradiação do caos, a morte é a verdade anunciada.
A velha barca para o inferno tem uma nova diretriz: a redenção vem para os renegados. Os crucificados, os doloridos: uma multidão marginalizada aos olhos dos homens. Seus demônios caíram por terra.
Louvados sejam os excluídos!
Louvados sejam os rejeitados!
A compaixão lhes aguarda no novo Éden. Reluz em tons fortes de vermelho, renasce de amores e sonhos. Portas abertas a quem tem fome e sede de infinito. Entrem e sejam tomados pelo êxtase de um paraíso em festa, efusivo como uma interminável noite de carnaval. Lugar de desejos e das individualidades. Caldeirão de diversidade. Paraíso dos devaneios, da liberdade democrática das ruas, da comunhão entre todos, onde a fantasia se mistura com a realidade. O que era aparente ilusão hoje alimenta os olhos, preenche do corpo à alma: a fartura, a união, o respeito. Ouse imaginar um paraíso “carnevale”, salgueirense, em que a celebração é a fonte da vida eterna. No lugar das trombetas, tambores da Furiosa dão as boas vindas e pedem passagem para toda a gente.
Ainda que a mesma história fosse contada setenta vezes ou ilustrada por trinta mãos talentosas, seria difícil fantasiar esse lugar de reencontro com a liberdade, onde o pecado não mora mais ao lado, pois o sagrado e o profano se misturam, são tão mundanos quanto divinos, fontes de um mesmo criador. Apenas abra os olhos e flutue pelos encantos e delírios do novo paraíso vermelho, pulsante como a Academia do Samba, viva de desejos e prazeres.
Autoria do Enredo: Edson Pereira
Pesquisa e Desenvolvimento: Edson Pereira, Ruan Rocha, Lucas Abelha, Victor Brito e Departamento Cultural.
Roteiro: Edson Pereira e Ruan Rocha