10 vezes que a Rosa foi a deusa barroca do carnaval

por Leonardo Antan e Beatriz Freire

Uma deusa, uma louca, um feiticeira. Amada não só por imperianos, estacianos, salgueirenses, gresilenses, vilistas, clementianos, mangueirenses e, agora, portelenses. Ao longo de mais de 35 anos de carreira assinando desfiles e mais de 40 vivendo o mundo da folia, Rosa Magalhães traçou uma trajetória única. Figura feminina rara (infelizmente) entre os carnavalescos, se colocou dentro da linhagem por Fernando Pamplona, que a trouxe da faculdade de Belas Artes da UFRJ para os desfiles.

De lá pra cá, Rosa vem fixando como a grande artista da festa através de um estilo clássico mas ao mesmo tempo contemporâneo em sua linguagem. Ao mesmo tempo que seu rótulo de barroca e rococó são usados em tom genérico, a obra da professora se aproxima de fatos dos processos conceituais e estéticos desse movimento artístico, que já se tornou uma forma de pensar o mundo na atualidade. A opulência, as formas curvas, o exagero e o excesso de informação; tudo isso com uma visão particular do Brasil, com afinidades com o movimento romântico, fazem da Rosa uma artista complexa e querida. 

1 – “Ligo pra livraria e mando trazerem todos os livros sobre aquele assunto”

Como boa artista, Rosa tem uma curiosidade aguçada de pesquisadora, explorando muito bem seus enredos em abordagens diferenciadas e muito bem embasadas. Ela não mede esforços quando o assunto é pesquisar minuciosa e detalhadamente todas as possibilidades para o melhor desenvolvimento possível de seus desfiles. De consultas bibliotecárias a relatos pessoais, conversas com especialistas, palestras, viagens e documentos raros, Rosa só leva pra Avenida um enredo a partir de um excelente material que garanta o bom entendimento da história a ser contada, tarefa cumprida sempre com sucesso. Talvez seja por isso que suas histórias, por menos conhecidas que sejam, garantam uma leitura objetiva do público presente.

2 – Múltiplas referências artísticas

      

Toda essa pesquisa resulta numa riqueza de informações que é muito bem administrada pela professora em seus carnavais. Formada pela Escola de Belas Artes e criada numa família de intelectuais, ela faz questão de carregar consigo toda sua bagagem artística adquirida através de todos esses anos. Nas fotos, vemos à direita um figurino do pintor Pablo Picasso para uma ópera e, na esquerda, a fantasia de Rosa para  desfile da União da Ilha, em 2010. Em seus desfiles, é perceptível a presença de inúmeras referências artísticas de diversos universos diferentes, tanto na arte chamada “erudita”, inspiradas nos azulejos de Adriana Varejão ou nas pinturas de Picasso, quanto aos elementos da cultura dita “popular”, o folclore, o próprio samba e ainda signos da cultura de massa e de entretenimento. Nesse caldeirão, Tarsila do Amaral, Goya e Gaudí convivem com palhaços, super-homens, Chacrinhas e Quixotes. Assim, Rosa faz de seus desfiles verdadeiras galerias de arte com inúmeras referências dos mais distintos meios, mas sempre sem perder sua identidade e a originalidade de sua assinatura.

3 – Uma delirante confusão fabulística


Detalhe da alegoria de 2005
Um do marcos da produção de Rosa Magalhães são seus maravilhosos enredos que já renderam milhões de prêmios no quesito. A construção da narrativa da Rosa é uma das mais complexas e bem estruturadas da nossa historia carnavalesca, mas ao mesmo tempo dotada de grande simplicidade. Ao contrário do que se pensa, as sinopses da carnavalesca são sempre curtas e tratam os assuntos de maneira bem superficial, com uma narrativa super simplificada. Um das principais características do trabalho da professora é a mistura de elementos, tudo isso se dá através de relações muitos simples e objetivas. Ao contar sobre seus causos, ela quase sempre opta por um tom de fábula, de suspensão da realidade, criando assim um tom distante mais que diz para os espectadores de maneira muito clara e nada hermética. 

4 – Jegues escondidos na História

Alegoria de 1995 (Fonte: Blog Ouro de Tolo)

A deusa barroca também surpreende com enredos que trazem ao público, por diversas vezes, histórias reais e pouco conhecidas, mesmo que os personagens sejam figuras importantes, desde um rei francês a um carnavalesco tido como revolucionário. A já dita curiosidade de Rosa é fundamental na busca por narrativas ainda não contadas, com abordagens diferenciadas acerca de determinados assuntos; mais do que colírio para os olhos e exemplo do apuro estético e sabedoria, é uma verdadeira aula, e a professora faz jus ao apelido, exercendo com maestria o papel educativo que as escolas de samba desempenham com seus desfiles. Rosa articula elementos da História oficial, histórias pessoais e micro-histórias além de causos e pequenos relatos, juntando todos sem hierarquias. 


5 – Um pouco de Brasil nessa mistura

Alegoria de 1994  (Fonte: Tantas Carnavais)

Em todo esse processo de criação dos enredos, um aspecto que se fortalece nos carnavais de Rosa é mesclar referências e histórias estrangeiras com elementos tipicamente brasileiros. Com uma extensa bagagem cultural, não é difícil para a carnavalesca achar um ponto de interseção entre histórias separadas por milhares de quilômetros, fazendo da Sapucaí um ponto de suspensão do tempo e do espaço, promovendo um encontro entre elas. A visualização dessa mistura fica muito clara em desfiles em que pega, por exemplo, contos do dinamarquês Hans Christian Andersen, em 2005 na Imperatriz, e mistura com personagens de Monteiro Lobato; ou mesmo quando une Miguel de Cervantes a Ziraldo, como em 2010, na União da Ilha. Ou ainda, ao unir Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas com a história real de Giuseppe Garibaldi, em 2006. Fato é que a querida professora não poupa esforços para dar sempre um tempero brasileiro bem especial e exaltar as diversas riquezas de nossa terra em seus trabalhos.

6 – No encontro, a origem da nação

Imperatriz Leopoldinense – 2000 (Fonte: Wigder Frota)

O elemento da brasilidade é fundamental no imaginário de Rosa, tanto quanto na presença visual desses elementos quanto no sentindo amplo. O pensar na formação mestiça do povo brasileiro é uma de suas marcas, refletindo sobre a nossa construção enquanto nação. O índio é figura central, ao mesmo tempo que figura como ideal romântico, do bom selvagem e dono da terra, também é articulado dentro de sua contribuição para a formação brasileira: “a construção de um conceito de identidade brasileira passa pela valorização das tribos e comunidades tradicionais”, disse a mestre em uma entrevista. Esse ideal romântico e uma visão positivista da formação do povo brasileiro através do mito da mestiçagem cordial estabelece Rosa num limite e um olhar tradicional da História Oficial.

7 – A corte e os índios

Croqui de Rosa Magalhães – Ala das baianas, Imperatriz Leopoldinense 2002 (Fonte: livro Inverso das Origens)

Além dos aspectos literários, toda esse pensamento sobre o nosso país e seus signos reflete também nos quesitos plásticos. No quesito das fantasias, muito além da opulência, do luxo, o uso de plumas e esses clichês do senso comum, Rosa em seus desfiles construiu fases diferentes da sua carreira. Na Imperatriz, sua face mais luxuosa foi mostrada, a mestra abusou das roupas típicas das cortes europeias, mas não pura e simplesmente nobre. Em vários desfiles como 92, 94, 96 e 99, a artista mistura essas peças do vestuário europeu de diferentes períodos com símbolos tropicais referidos no enredo, como a indumentária indígena, frutas, aves e outros signos tropicais. Num processo tropicalista de celebração irônica. Na São Clemente, Rosa mostrou um perfil mais simples, mas com o mesmo brilhantismo e o trabalho de cor que só ela tem, os figurinos de poucos elementos ganhavam destaque pela composição total das alas. 

8 – Caixotinhos e Anjinhos Barrocos

Imperatriz Leopoldinense – 2008
Muito além das fantasias, as alegorias da deusa barroca se construíram como um capítulo a parte de sua criação artística. Pontuadas injustamente esse ano, ela sempre optou por uma volumetria singela contra o crescimento exagerado das alegorias. Os populares caixotinhos da Rosa são, na verdade, escolhas estéticas muito claras. São alegorias pensadas como cenários teatrais, construídas como uma caixa cênica de um palco, com suas laterais e visuais frontais. Um cena cuidadosamente pensada na seu caráter composicional. Como já citados, são diferentes elementos retirados das mais diversas referências de cultura distintas. São grandes fragmentos que se unem dando uma unicidade visual opulento mais bem elaborada e se destacando na sutileza.

9 – Leques, sombrinhas e savanas

Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense – 1994 (Fonte: Página Tantos Carnavais)

Apesar de ser uma parte independente do total controle e criação de Rosa, os enredos da professora dão base aos coreógrafos para excelentes comissões de frente. Sua troca com os profissionais resultam em trabalhos memoráveis. Fábio de Mello, sem dúvidas, foi um dos grandes nomes que fizeram uma comissão de frente a altura do excelente trabalho de Rosa; são inesquecíveis os leques do desfile de 1994, os guarda-sóis de 1995, o piano de 1997 num enredo sobre Chiquinha Gonzaga, a caravela humana de 2000 e o bicho papão de 2002. Recentemente, as comissões da Vila Isabel em anos que Rosa assinou os desfiles da escola também chamaram atenção do público: em 2012, Marcelo Misailidis fez uma verdadeira savana africana, com a presença de feras e animais que lá vivem, e a formação de um rinoceronte gigante. Em 2013, o elemento alegórico era um caixote, e sobre ele os bailarinos da comissão de frente traziam uma verdadeira quadrilha de festa junina e o surgimento da vida a partir da terra, também planejada por Misailidis.

10 – Visão do paraíso

Imperatriz Leopoldinense – 2001 (Fonte: Wigder Frota)

Toda essa junção, entre alegorias, fantasias, comissão e enredo através dessas diferentes associações e dos mais diferentes universos, vai gerar um visual único dos desfile da professora. Ao mesmo tempo em que ela reforça a construção do censo comum de um carnaval opulento e luxuoso, definindo por Arlindo Rodrigues e depois reverberado por Joãosinho Trinta, Rosa Magalhães coloca em jogo elementos muito próprios e suas preferências estéticas. Muito além de um visual opulento, o referencial teórico dos enredos da artista ajudam a entender sua formação estética, desse jeito ela elabora cenas barrocas na estética e na temática. O barroco dessa fábula que Rosa costura habilmente, resultado de uma de formas, imagens e cores. Frutos da “mestiçagem”, das diversas influências da cultura popular no cotidiano do país; exemplificado no fervilhamento elaborado por cores, crinolinas e bom humor. Uma verdadeira aula. 
Comissão de Frente, Imperatriz Leopoldinense – 1997

Não por acaso, Rosa merece e honra todos os apelidos que recebe. Seja professora, mestra ou nossa deusa barroca, a carnavalesca foi grande nome dos carnavais dos anos 90 e ainda é responsável pelo brilho de tantos olhares quando seus desfiles tomam conta da Sapucaí. Rosa mostra que tem talento e conhecimento de sobra, além de contrariar a necessidade da grandiosidade que as alegorias da última década e meia atingiram, sendo a representação clara de que o maior nem sempre é o melhor. Seus trabalhos carregam sempre a essência de seu nome, uma verdadeira flor, com delicadeza e imponência de uma verdadeira artista, consagrada por seu suor e dedicação.

A exposição “Uma delirante celebração carnavalesca: o legado de Rosa Magalhães” reúne um time diverso de mais de trinta artistas, entre carnavalescos consagrados e iniciantes, fotógrafos e artistas das artes plásticas, que dialogam com o estilo e a narrativa da professora. E, para realizar essa grande homenagem, precisamos da sua ajuda! Colabore em nosso projeto de financiamento coletivo e ainda ganhe brindes exclusivos! Saiba mais aqui.


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