7×1 Carnavalize: fato ou fake? mitos do carnaval que não são tão verdadeiros assim

 

Texto: Leonardo Antan
Revisão: Felipe Tinoco
Uma história pode ter mil versões. Ao longo das construções narrativas, algumas verdades acabam cristalizadas, mas nem sempre condizem com as realidades dos fatos. Ainda mais se tratando de culturas populares e orais, diversas versões podem se sobrepor e uma delas acabar sendo considerada “oficial” por uma série de razões históricas. 
Bom, e o que isso tudo tem a ver com a escola de samba? Tudo! As agremiações carnavalescas sempre se equilibram na corda bamba entre tradição e modernidade. Por isso, muitas delas precisaram afirmar exatamente a sua importância e a sua carga de inovação por meio de certos pioneirismos, que nem sempre são verdadeiros se olhados mais cautelosamente. Tentando desmistificar algumas verdades do carnaval repetidas por mais e mais pessoas sem a devida checagem dos fatos, resolvemos listar 7 equívocos comuns ao se contar a história do carnaval carioca.
Vale destacar que de nenhuma maneira estamos tentando deslegitimar certos personagens ou diminuir sua importância, mas sim abrir novos debates e possibilidades. Além disso, é sempre bom lembrar que a História sempre merece ser revista e recontada com novos fatos e perspectivas, como bem a Mangueira nos contou em 2019. Por isso, nossa tentativa também é revisitar alguns pontos e tentar discuti-los. Vem com a gente!
1 – Ismael Silva e a fundação das escolas de samba
Já começamos com o mais polêmicos dos assuntos! Se a pergunta for quem inventou o termo “escola de samba”… Todo mundo conhece a versão oficial que o próprio Ismael Silva contou sobre o que teria sido o surgimento da primeira escola de samba do Brasil. Foi em entrevista ao jornalista Sérgio Cabral, na década de 1970, que a história se cristalizou, mais de quarenta anos depois do ocorrido. A narrativa de que um grupo de sambistas teria se inspirado numa “escola normal” para fundar “uma escola de samba” deve e pode ser relativizada, já que a história apresenta algumas contradições. 
Ismael Silva na Festa da Penha. Foto: O Globo.
Primeiramente, a Deixa Falar nunca desfilou como escola de samba – no contexto em que as entendemos hoje –  durante os concursos promovidos desde 1932, mas sim foi fundada como bloco e chegou ainda a filiada aos desfiles de ranchos. Depois, pois é completamente impreciso o surgimento do termo “escola de samba” nos jornais da época, já que antes mesmo de 1928 já é possível ver registros do uso da expressão. Existem ainda estudiosos que relativizam a própria existência de uma “escola normal” na região do Estácio de Sá. Fato é que a contribuição de Ismael Silva e do grupo do Estácio para o samba de “desfilar” é inegável musicalmente falando. No entanto, se de fato teria sido a “Deixa Falar” a primeira escola de samba carioca… O papo já é bem controverso e preciso ser mais estudado e debatido. 
2 – Pamplona e o primeiro enredo “negro”
Outro narrativa super “verdade estabelecida” do carnaval envolve outro personagem que tomou para si a narração dos fatos. Fernando Pamplona tem importância inegável na história do carnaval brasileiro; sua atuação no Acadêmicos do Salgueiro revolucionou o que se entendia até então como escola de samba. Porém, um dos mitos conhecidos sobre a atuação do cenógrafo do Municipal é que ele teria feito o “primeiro enredo ‘afro’” das escolas de samba. 
A abertura do desfile sobre o “Quilombo dos Palmares” em 1960.
Mais uma vez a informação não se confirma dando uma olhada mais atenta a temas e sambas apresentados nas décadas anteriores pelas agremiações. O próprio Salgueiro já havia desfilado com “Navio Negreiro” anos antes, assim como temas em louvor ao estado da Bahia e ao próprio samba já haviam se apresentados, sendo temáticas muito próximas às de certa “negritude”. Fato foi que, além de trazer o “Quilombo dos Palmares” para a Avenida, Pamplona ajudou a criar toda uma uma estética afro-brasileira de afirmação da negritude em seus enredos, em contato como movimentos artísticos, sociais e de pautas étnica-raciais do período. Sem dúvidas, promoveu uma “revolução salgueirense”, como dizem.
3 – Os mitos sobre Xica da Silva 
Ainda permanecendo na Academia do Samba para discutir mais uma polêmica, outro suposto pioneirismo da vermelho e branco envolve seu desfile de 1963, sobre Xica da Silva. Se de fato esse é um desfile seminal para entender as escolas de samba como as conhecemos hoje, seja em estrutura narrativa ou em estrutura estética, há alguns mitos que o cercam. 
A famosa “Ala do Minueto” se apresenta no Quitandinha após o carnaval. Foto: Manchete. 
O primeiro diz respeito a quem o assinou. A criação do cortejo sobre a “escravizada que virou nobre” é toda mérito de Arlindo Rodrigues, enquanto Fernando Pamplona pouco se envolveu, já que o artista passava uma temporada na Alemanha e não gostou da ideia do enredo, a princípio. O trabalho de Arlindo foi trazer uma narrativa importante sobre uma personagem negra brasileira, mas não se tratava do primeiro “enredo feminino” da festa. Outro equívoco comum é atribuir a “ala do minueto”, de Mercedes Baptista no desfile, como a primeira “ala coreografada” da folia. A primeira bailarina negra do Municipal já vinha dando expediente no Salgueiro desde 1960, já tendo coreografados outros grupos  sintonizados aos enredos desde então. Os dozes casais que bailaram a dança europeia estavam nessa lógica, mas não foram os primeiros a dançar passos marcados durante um desfile. Mas de fato, foram os que mais se eternizaram durante o período. 
4 – Dona Ivone: a “primeira compositora”
Do Salgueiro à Serrinha! Falar da história do samba-enredo como gênero musical é, com certeza, passear pelas grandes obras do Império Serrano. A verde e branco tem importância fundamental para a festa no quesito musical, brindando o público com inesquecíveis clássicos do gênero. Uma dessas obras-primas é o “Cinco baile das história do Rio”, composto por nada menos que Silas de Oliveira, Bacalhau e Dona Ivone Lara. 
Dona Ivone desfile pelo Império Serrano na década de 1980. Foto: O Globo.
A versão oficial é que este seria o “primeiro” samba-enredo composto por uma mulher na história da festa, o que também pode ser contestado. Primeiramente porque é muito provável que muitas outras mulheres já tenham composto sambas para outras agremiações, sem que pudessem ter assinado suas obras. O caso geral se assemelha com a própria Dona Ivone, quem já versava e fazia suas canções antes daquela ocasião. Há versões que indicam que um outro clássico da Serrinha como “Tiradentes”, de 1949, já poderia ter a contribuição da cantora. Especulações à parte, fato é que a primazia feminina na composição deve ser atribuída (até aqui) para Carmelita Brasil, a primeira mulher a dirigir uma escola de samba. A presidente da Unidos da Ponte assinou as canções da agremiação entre 1959 e 1964. Para saber mais da importância de figuras tão fundamentais como Carmelita e Dona Ivone, a pedida é ler a nossa “Série Mulheres”, que destrincha a presença do gênero no carnaval. 
5 – Olegária dos Anjos e a “primeira destaque”
Por falar em Império Serrano, a escola também gosta de reivindicar outra inovação no formato dos desfiles carnavalescos: a primeira destaque do carnaval carioca, Olegária dos Anjos. Os sambas-enredos de 1992 e 2007 traduzem a afirmativa ao cantarem que “o primeiro destaque surgiu em minha pauta musical” e “no primeiro destaque e na comissão, as novidades verde e branca meu irmão”. Mas a história que traz o protagonismo de Olegária – quem também era casada com o ritmista Calixto dos Anjos Filho  – para o centro dessa função na festa é bem incerta. 
Olegária posa com uma fantasia na década de 1960. Foto: Acervo Rachel Valença. 
Pesquisador do universo dos destaques de luxo, João Gustavo Melo relativiza a suposta primazia de Olegária no seu livro “Vestidos para brilhar”, publicado pelo selo Carnavalize. A atuação da desfilante não teria dito tanta repercussão na sua época, não sendo notabilizada na imprensa nem em relatos dos desfiles da Serrinha entre os anos de 1950 e 1960. A construção da versão de Olegária como “primeira destaque” foi construída muito depois do que teria sido seu “surgimento”. Foi um resgate posterior, em livros e reportagens, depois que a ideia de “destaque” já havia sido cristalizada enquanto personagem na folia. Isso tudo muito pela atuação de Isabel Valença no Salgueiro e seu sucesso midiático…. Mas esse detalhe é outra história. 
6 – Ratos e Urubus “só tinha mendigos”
Chegamos a uma figura cercada de controvérsias e que construiu muitas histórias em torno de si: Joãosinho Trinta. Com seu poder narrativo e sua forte oratória, o artista se tornou um dos principais e mais famosos nomes do carnaval no mundo inteiro. Sua vida pode ser cercada de polêmicas e relatos que podem ser contestadas, mas o fato muitas vezes entendido como verdade aqui tem menos a ver com o maranhense e mais com a sua “obra-prima”, o desfile “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”, feito pela Beija-Flor em 1989. 
Um dos setores pra lá de luxuosos do desfile de 1989.
A apresentação ficou imortalizada no imaginário brasileiro por sua abertura impactante com foliões trajados como mendigos e abençoados por um cristo censurado pela Igreja, que ganhou uma lona preta e a eterna frase “mesmo proibido, olhai por nós”. Muito se diz que os componentes em farrapos tomaram conta da escola inteira, o que não é verdadeiro. Os grupos de “mendigos” apareceram apenas nos primeiros setores da agremiação, enquanto outras alegorias e alas trouxeram ainda mais luxo para a Avenida. 
A narrativa passeou por diversas visões de “lixos” da sociedade, como a Igreja, a política, o sexo, a infância e a guerra. O visual trouxe um “luxo” simbólico, muitas vezes sujo e destruído, mas nem sempre os trapos da abertura se reproduziram no desfile. Uma outra fake news também difundida sobre a apresentação é que estas pessoas seriam “mendigos” de verdade, quando a impressão veio justamente do trabalho cênico impressionante comandado por Amir Haddad. É aquilo: a ficção foi tão bem feito que se misturou com a realidade. 

7 – Paulo Barros inventou “as alegorias humanas”
Enganou-se quem achou que as pós-verdades carnavalescas se restringiam apenas a décadas passadas e com menos registros tidos oficiais. Até hoje a necessidade de criar afirmações e primazias acaba criando verdadeiras ciladas narrativas. Chegando ao século XXI, um mito muito comum à história recente da festa é que o carnavalesco Paulo Barros inventou as chamadas alegorias humanas. Se a importância do carro do DNA em 2004 é inegável para a consolidação destas, a ocasião não foi de longe a primeira vez que uma alegoria teria uma estrutura vazada composta por um número expressivo de componentes. 
A inesquecível alegoria do DNA, na Unidos da Tijuca em 2004.
Antes de Paulo trazer a suposta novidade que deixou todos de queixos caídos, algumas tentativas parecidas já haviam sido feitas por Oswaldo Jardim, na década de 1990, em desfiles como “Gbala”, na Vila Isabel, em 1993. Até mesmo Joãosinho Trinta já havia criado carros com centenas de composições na Beija-Flor, com exemplos que podem ser vistos em 1983 e 1988. Assim, a importância de Barros se dá menos por “ter inventado” algo, mas sim afirmado aquela linguagem como sua e ter dado a ela uma nomenclatura que se tornou oficial. 
“Quero ser a pioneira?” 
Este é, aliás, um gancho ideal para encerrar nosso passeio por alguns mitos nem tão verdadeiros assim do carnaval carioca. A tentativa não é de nenhuma maneira desprezar essas personagens, mas tentar lançar luz para os processos que se estabeleceram. Estudar mais sobre esses casos é entender as complexidades que formam as escolas de samba, já que muito mais importante que descobrir suposta “primazia” de algum evento é compreender como certos elementos foram cristalizados historicamente, marcando como isso nos mostra sobre disputas e construções da festa. 
Nada surge de maneira espontânea e imediata; os elementos são construídos ao longo de diversas trocas e movimentos, o que deixa as escolas de samba ainda mais interessantes e importantes de serem estudadas. E é função de todos os apaixonados pela festa olhar com atenção e cuidado para os sujeitos e as agremiações que formavam e formam a folia brasileira. 

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