A bênção, Quelé! A história e a vida de Clementina de Jesus

 

 por Luise Campos

Clementina de Jesus da Silva nasceu, de acordo com registros oficiais, no dia 7 de fevereiro de 1901, em uma casa construída por seu pai aos pés da capelinha de Santo Antônio do Carambita, na cidade de Valença, interior do estado do Rio de Janeiro. Em algumas ocasiões, ela mesma chega de declarar que seu nascimento aconteceu em 1902, como no depoimento gravado para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
Buscando uma vida melhor, seu pai, Paulo Baptista, decide vender todas as suas posses para se mudar com mulher e filha caçula para a capital em 1908. A família chega no Rio de Janeiro em meio às reformas urbanas empreendidas por Pereira Passos, que deslocou a população mais pobre para longe dos grandes centros. Nesse contexto, foram morar em Jacarepaguá, na Zona Oeste do município. O bairro ainda mantinha um ar bucólico de interior, com chácaras, casebres e currais, herança ainda das fazendas de café de um passado não muito distante.
Passou a estudar em regime de semi-internato para que seus pais pudessem trabalhar. Dentre as atividades do colégio, havia as aulas de canto. As alunas que se destacavam garantiam participação no coro da capela do orfanato Santo Antônio. Foi o caso de Clementina, dando início à sua trajetória muito cedo, já chamando a atenção por sua voz estrondosa.
Logo foi convidada por um vizinho para sair como pastorinha em um folguedo. João Cartolinha era mestre de pastoril e pediu autorização ao pai de Quelé para que ela pudesse participar do cortejo, dado o seu talento musical nato. Foi esse mesmo personagem que começou a leva-la para um clube chamado Moreninha de Campinas, perto de Oswaldo Cruz, onde Clementina começou a ter contato com os mestres do samba.
Nesse contexto, ela passou a frequentar os sambas da região e se tornou diretora do bloco Quem Fala de Nós Come Mosca, uma das agremiações carnavalescas que agitavam os arredores e que fizeram parte das movimentações que deram origem à Portela, que Clementina passou a frequentar após a fundação.
Essa época marca o envolvimento mais profundo de Quelé com manifestações populares e religiosas de matriz africana. Ali ouvia pontos de trabalho e cantigas e participava de jongos e caxambus, presentes em sua vida desde criança em Valença. Tudo ia compondo seu repertório de vida, mas não necessariamente de fé. Sua mãe era benzedeira e as duas moravam perto de um terreiro de candomblé, onde Clementina ia cantar. Por prazer, não por crença.
Passou sua vida nesse ambiente, dando suas palinhas, mas não era cantora profissional. Aos 62 anos, sobrevivia como trabalhadora doméstica. Mas essa realidade viria a mudar quando foi descoberta poeta e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho. Ouviu sua voz pela primeira vez em 1963, quando Clementina festejava o dia de Nossa Senhora da Glória aos pés do outeiro com muita bebida e comida ao som de samba e partido-alto. A segunda aproximação aconteceu semanas depois, na inauguração do Zicartola. Mas a definitiva viria a ser em 1964, novamente durante as festas de Nossa Senhora da Glória. Clementina estava com seu marido Pé Grande e amigos e cantava o samba-enredo da Vai Como Pode de 1933. Hermínio os levou para seu apartamento e conseguiu registrar algumas canções em um gravador caseiro.
Desse episódio em diante, a então empregada doméstica pôde sonhar mais alto. E realizar. Começaram suas apresentações no meio artístico, brilhou no musical Rosa de Ouro idealizado pelo mesmo Hermínio Bello de Carvalho e conquistou definitivamente a crítica. Isso já aos 64 anos de idade. Dois anos depois, viajou ao Senegal para representar o Brasil no I Festival Mundial de Artes Negras. Depois se apresentou em Cannes. Em agosto do mesmo 1966, seria lançado seu primeiro disco solo. Enfim o reconhecimento merecido e necessário chegara.
Sua relação com as escolas de samba é de uma vida inteira. Na Mangueira, eternos amigos feitos desde os tempos de Zicartola. Em 1978, foi intérprete do G.R.E.S. Quilombo, puxando o samba-enredo de Wilson Moreira e Nei Lopes ao lado de Paulinho da Viola, João Nogueira e Martinho da Vila. Completando esse trio, a Portela. Sim, Clementina tinha três escolas do coração. Em 1983, foi homenageada no desfile de Beija-Flor, que apresentou o enredo “A grande constelação de estrelas negras”, de Joãosinho Trinta e ganhou o Estandarte de Ouro na categoria Destaque Feminino. Mas sua saúde debilitada não lhe permitiu receber o prêmio em mãos: seis dias após o desfile, sofreria uma isquemia cerebral, que a deixaria internada.
Quelé deixaria o hospital um pouco mais tarde. Mesmo com a idade avançada e muitas limitações impostas pelo passar dos anos, ainda gravaria mais um disco e receberia a honraria de ter um show em sua homenagem realizado, com participação sua, no Theatro Municipal, em 1º de agosto de 1983. Viria a falecer em 1987. Em 1988, mais um reconhecimento, agora póstumo, nos versos do samba composto por Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila para o histórico Kizomba, Festa da Raça, da campeã Unidos de Vila Isabel: “O ô nega mina/ Anastácia não se deixou escravizar/ Ô ô Clementina/ O pagode é o partido popular”. O G.R.E.S. Tradição foi outra agremiação que não deixou que seu legado ficasse esquecido e alcançou o vice-campeonato com o enredo “Clementina, Cadê Você”, de Leandro Valente. Em 2022, será a vez de a Mocidade Alegre prestar sua homenagem.
Ainda assim, a sensação que nos fica é a de tantas delas aconteçam – e que aconteçam –, e ainda assim não serão suficientes para honrarmos o privilégio de termos vivido a glória de termos Clementina em nossa história. A bênção, Quelé!

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