#Colablize: A arte de restaurar histórias na avenida: fazer carnaval é estar em terapia

 

A coluna #ColabLize é um espaço aberto a seguidores do Carnavalize e pesquisadores de carnaval para divulgar seus escritos sobre nossa folia. Quer enviar algum texto que verse sobre a festa? Mande para nós no e-mail contato@carnavalize.com. A #ColabLize vai ao ar quinzenalmente, sempre aos sábados!

por Raí Chaves
Passei os cinco anos da graduação em Psicologia sambando sozinho entre os colegas. Para todo trabalho, uma tentativa de enlace à maior manifestação cultural do mundo. Comecei comparando trovadores com compositores de samba-enredo e terminei pegando emprestado um verso de Vila 2016 para dar título à minha monografia – que pensava o ser psicológico dentro das escolas de samba. A hipótese a ser estudada: há algo, de ordem psíquica, a ser analisado no que as agremiações levam para a avenida? Talvez uma premissa banal, até sem graça. Eis que a porta-bandeira Marcella Alves concedeu uma entrevista ao SRzd contando o sofrimento de ter sido responsabilizada pela perda do título do Salgueiro no ano anterior. A resposta estava ali, vagando como uma livre associação aguardando ser simbolizada pelo analista em sessão. No entanto, a correria da vida de um estagiário atrelada a um comportamento protelador não apresentou harmonia. Conclusão: a monografia se perdeu na curva do Setor 1 antes de entrar na Sapucaí, mas trouxe motivação para olhar o carnaval com outros olhos.
Quatro anos depois, desde então exercendo a prática clínica, sinto-me pleno de histórias e tenho vontade de contá-las, como diria Jean Clark Juliano – importante autora para abordagens fenomenológicas. Claro que não penso em revelar casos clínicos aqui mas, assim como Juliano, restaurar narrativas. Afinal de contas, esse é um movimento próprio da psicoterapia: revisitar histórias, olhá-las novamente por outro viés e, talvez, restaurá-las. Mesmo que seja para não apagá-las, em um trabalho permanente de memória. Escrevo isso para chamar atenção ao esforço do não apagamento de nossas histórias que as escolas de samba insistem em realizar. Representar na avenida releituras sobre aquilo que já foi vivido me parece terapêutico em sua essência. Clínico. Fenomenológico-Existencial. A arte psicológica de restaurar histórias se aproximaria, portanto, do que vimos recentemente como as histórias que a História não conta. Pois esta é enrijecida. Recalcada. Com dificuldade de revisitar seus traumas.
Meu intuito com este texto não é colocar a História não-analisada do Brasil no divã. É aproveitar o mês do Setembro Amarelo e tentar chamar atenção para a temática da saúde mental, tão sucateada. Falando de um ponto de vista individual, percebo um certo temor na procura pelo tratamento psicológico. É comum ouvir na primeira consulta que é difícil estar ali porque há uma noção de que terapia é para maluco “e eu não sou maluco, doutor”. Bom, nem todos os que aqui estão são loucos, nem todos que são loucos aqui estão, como já cantou a Porto da Pedra. Para além do certeiro samba, essa ideia revela como a saúde mental está à margem da sociedade, deixada de lado. Não há interesse em tratá-la. É algo ruim. Caminhando por uma noção higienista que atravessa a história da Psiquiatria, é preferível separar e afastar aqueles que são doentes da população dita normal. Esse seria o “tratamento”. “Quem sabe até esquecer desses malucos, né? Não precisamos deles”.
E aí que as escolas de samba, em um papel de resgate e restauração, trazem esses loucos para seus desfiles. Sinhá Olímpia, Gentileza, Bispo do Rosário, Estamira… alguns nomes ressignificados em um cortejo que não se encerra na Quarta-feira de Cinzas. Durante os setenta e cinco minutos de sessão na avenida, a agremiação olha para si de forma a reconfigurar o que havia sido deixado de lado. Talvez menos importante, um dia. Considero, então, o desfile como um processo de alternância de Figura e Fundo, de gestalts que se abrem e fecham e se retroalimentam em ritmo sincopado. Assim como artistas desta festa, que carregam e refletem suas histórias de vida enquanto criam seus carnavais, eu (repleto dos meus simbolismos e entendimento de minha existência) afirmo que desfilar é terapia para a Escola de Samba. Carnavalizar é clínico. É saudável. Do ponto de vista da gestalt-terapia, é criativo. É a agremiação olhando para a sua saúde mental.
É claro que pensar saúde mental considerando as escolas de samba não fica apenas neste campo filosófico. Se a Psicologia é atravessada por uma ideologia anticapitalista, na prática o evento Carnaval lida com cifras altíssimas, o que gera cobranças estruturais. Um casal de mestre-sala e porta-bandeira não será apenas representante da cultura a bailar com o maior símbolo da Escola: essas duas pessoas, funcionários de uma organização, precisarão apresentar performance perfeita para conquistar a pontuação máxima e garantir a sua participação no título desejado. Se já não fosse pressão suficiente alcançar objetivamente algo que é da ordem do subjetivo, em termos comparativos temos duas pessoas, sozinhas, responsáveis por (nesse ano) trinta pontos. Ilustro, aqui, o exemplo da Marcella que comentei no início do texto.
Sei que muitos desses profissionais recorrem à ajuda terapêutica por conta própria, sem que a agremiação ofereça qualquer tipo de auxílio. Qual a diferença que um profissional de Psicologia vinculado à agremiação faria? Na minha concepção, é a mesma consideração feita em clubes esportivos – cuja atuação psicológica ainda é também sucateada, diga-se. Entendo que essa é uma temática necessária a ser debatida, e que já vem dando os primeiros passos incertos – como uma comissão de frente a iniciar o treino coreográfico. 
Encerro este relato agradecendo ao Carnavalize a possibilidade de falar dos meus devaneios em aproximar a saúde mental do Carnaval. Há potência nesta discussão e reflete, principalmente, como negligenciamos o cuidado com a nossa subjetividade. Não é porque não falamos que algo não está ali. Ou aqui. A Psicanálise vai dizer que a escolha por não falar já é reveladora. Sobre o quê não temos falado? Será que não falar nos deixa mais “normal”? Bom, se tem algo que tanto as Escolas de Samba quanto a Psicologia me ensinaram é, quanto menos normal, mais interessante somos.

Filho de Kizomba, Raí Chaves se interessa por subjetividades e dinâmicas competitivas. O Carnaval veio de brinde. Psicólogo atuante na prática clínica, passou os últimos dois anos em instituição psiquiátrica estudando transtornos mentais na velhice. Em seus devaneios, criou o @bolaocarnaval e ainda pretende encontrar pontos de contato entre a Psicologia e o Carnaval.

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