#Colablize: “A Bahia africana onde o caboclo comeu acarajé, ora yeye axé!” Ou Precisamos matizar as características de um enredo “afro”.


A coluna #ColabLize é um espaço aberto a seguidores do Carnavalize e pesquisadores de carnaval para divulgar seus escritos sobre nossa folia. Quer enviar algum texto que verse sobre a festa? Mande para nós no e-mail contato@carnavalize.com. A #ColabLize vai ao ar quinzenalmente, sempre aos sábados!
Texto: Anderson Ferreira
Certamente o título causa uma estranheza numa primeira leitura, mas essa miscelânea de referências é comum nos desfiles das escolas de samba.
Mesmo com as incertezas que pairam o próximo carnaval, já podemos observar que os enredos considerados “afro” serão, além de maioria, os destaques da festa. Esse fato gera uma emoção no mundo do samba, sobretudo porque (1) os temas trazem discussões importantes para o nosso tempo, (2) tocam no coração do componente e (3) possuem o costume de conceber bons sambas. Por outro lado, eles também estimulam uma preocupação: de que forma as pessoas negras, as culturas africanas e afro-brasileiras serão tratadas na avenida? 
Digo isso porque a possibilidade de algum enredo cair no lugar comum é grande. Acostumou-se a relacionar pessoas negras aos mesmos signos, sobretudo as tradições Yorubás. A Grande Rio no carnaval de 2020 fora uma exceção. A pesquisa de Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinicius Natal referencia os diversos povos que matizaram as culturas afro-brasileiras e afro-indígenas e que baixavam no culto de Joãosinho da Goméia. Diferente, por exemplo, da Imperatriz Leopoldinense no ano de 2015, que fez um belíssimo desfile intitulado “Axé-Nkenda”, propondo um diálogo de alguns símbolos esteticamente já conhecidos como movimentos artísticos da África contemporânea ou “África pop”, mas que infelizmente, na mistura, foram além. Sendo Nelson Mandela o fio condutor, grande líder sul-africano, de uma região onde se destacam os povos Xhosa e Zulu, ficou confusa a presença de elementos como a capoeira, o acarajé e a orixá Oyá, do panteão iorubano. Perdeu-se uma bela oportunidade de focalizar em culturas africanas tão pouco evidenciadas e discutidas nas escolas, nas galerias de arte e rodas de conversas. Esse também pode ser o fato pelo qual há uma pequena manifestação negativa quando um enredo “afro” é lançado. 
Algumas pessoas comentam nas redes sociais: “afro de novo”, “macumba de novo”, etc. É importante ressaltar que os elementos chamados de forma pejorativa e racista de “macumba” são os pilares das escolas de samba, ou seja: quanto mais macumba, melhor. E também é mais positiva a repetição desses enredos que tratam sempre do panteão iorubano do que as temáticas brancas, europeias e patrocinadas as quais já protagonizaram desfiles não tão legais. Porém, é compreensível esse tipo de comentário quando pensamos nos mesmos personagens que conduzem as narrativas “afro”, causando em inúmeros casos um esvaziamento de sentidos. É sabido que as escolas possuem seus padroeiros, mas quantas vezes Oxum e Oyá não ficaram perdidas em um enredo? E Ogum e Oxóssi que desfilaram ao lado de pessoas que talvez fossem suas inimigas? Ou uma saudação a uma entidade só para completar a rima do samba? Faz-se necessário empretecer algumas coisas:
1. Não existe uma “cultura africana” ou o país África. Existem culturas de povos do continente africano. Existem muitas Áfricas, como bem lembrou a Beija Flor em 2007. Assim como no Brasil temos algumas semelhanças por sermos brasileiros e brasileiras, mas não podemos dizer que uma pessoa do sul do país pratica as mesmas manifestações culturais de alguém do norte. O mesmo deve ser entendido ao tratar do continente africano. 
2. Também devemos observar isso com as culturas afro-brasileiras. Pode haver símbolos que se conectam nos cultos praticados na diáspora, mas não é tudo a mesma coisa. Nesse contexto eu gosto de usar o exemplo da Portela em 2020 ao tratar dos indígenas da etnia tupinambá e sua forte presença na formação da cidade do Rio de Janeiro. A agremiação apresentou o recorte muito bem definido. A carnavalesca Márcia Lage em suas entrevistas sempre pontuava que a referência estética utilizada na plástica era toda tupinambá, diferente da forma genérica que já vimos muitos enredos de temáticas indígenas passarem na avenida. 
3. Não é porque a pessoa é negra que automaticamente ela é filha de um orixá. Ela pode ser praticante do candomblé de Angola e filha de um Nkisi, entidades das culturas banto (Congo/Angola), como nos ensinou o carnaval da Ilha do Governador em 2017 ou a Beija-Flor em 2001 com Agotime e o Voduns do Candomblé Jejê. 
4. As pessoas negras também podem não ter relação com nenhuma religião de matrizes africanas. O que nos revela uma das faces do racismo no Brasil, mas que também não pode ser uma regra ter um cargo dentro do candomblé. Talvez o Salgueiro, em 2020, não soubera desenvolver o enredo sobre o Benjamin de Oliveira porque o palhaço não era uma pessoa negra esperada pelo censo comum.
É interessante a justificativa de que no mundo carnavalesco ou carnavalizado tudo pode. Os diferentes podem se encontrar na avenida. Mas até que ponto não estamos perpetuando alguns estereótipos? Será que isso nos evidencia um olhar embraquecido através do qual “negros” são todos iguais? Uma ótica colonizadora que coloca todas as culturas em um mesmo barco? 
Precisamos matizar o que caracteriza um enredo ser “afro”. Outro dia li um texto no Carnavalize sobre os toques das baterias de algumas agremiações e olha que interessante: dos mesmos tambores ressoam toques diferentes. E os sons desses tambores ressoam em outras manifestações afro-brasileiras não somente nos desfiles das escolas de samba. Ou seja, corpos negros (tambores) produzem conhecimentos de outros tipos e lutam para estarem presentes em outros e mais lugares. Não seria o momento de expressar isso também nas pesquisas, nas letras e nos elementos plástico-visuais? Uma possível resposta que gera outra pergunta: não seria o momento das (os) artistas negras (os) estarem à frente de algum projeto para que o pensamento seja empretecido de fato? Isso pode e deve fomentar outros textos.

Portelense apaixonado pelo carnaval, Anderson Ferreira é ator, pesquisador, figurinista e contador de histórias. Mestrando em Artes da Cena pelo Programa de Pós-graduação em Artes da UFMG pesquisa as relações entre manifestações performativas afro-brasileiras, principalmente os Teatros Negros e os Desfiles de Escola de Samba. Recentemente criou a @quesitofantasia, na qual registra, com textos e imagens, algumas das indumentárias que já passaram pela Sapucaí.

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