#Padroeiros: do Rio, das coisas belas e do Tuiuti, o santo caboclo


Depois de passear pelos carnavais da última década e também pelos baluartes da história das quatro matriarcas do carnaval carioca, chegamos ao sincrético ápice de uma escola de samba quando o assunto é louvação – seu padroeiro. Poucos são os elementos aos quais são ofertados tanta devoção e respeito como os santos e orixás que regem e protegem uma agremiação. Por isso, lançaremos quatro textos que passearão pelas histórias desses seres divinos e por alguns pontos dessa relação litúrgica, sintetizando perfeitamente o binômio sacro-profano que é o carnaval.

Seja pela levada do ponto de chamada do orixá que influencia a batida da bateria, seja pela emoção que toma conta ao cantar o samba-exaltação à escola e ao padroeiro no esquenta, a série está no ar. É nossa missão sempre relembrar que existe algo muito além daquilo que circula entre o céu, a terra e o sagrado solo da quadra de uma escola de samba, ou a Marquês de Sapucaí. Vamos conhecer mais dos Padroeiros – toda quarta de julho, aqui no Carnavalize.



Texto e arte: Vítor Melo
Revisão: Felipe Tinoco

De um conflito paradoxal ligado simbolicamente à sua existência, o protagonista do primeiro texto dessa série, não podendo ser outro, é o padroeiro carioca: São Sebastião. Já que passearemos pelos trilhos místicos que envolvem todo esse universo, o pontapé inicial teria de ser feito exatamente sobre aquele que rege nosso dia a dia e olha por nossa cidade. Em 1965, Estácio de Sá prestou homenagem ao, até então, rei-menino de Portugal, Dom Sebastião, batizando a cidade com seu nome (São Sebastião do Rio de Janeiro). O batismo dessa criação é estritamente atrelado à necessidade de dominação territorial, que visava o triunfo em relação à Confederação dos Tamoios (1554-1567), um dos principais mecanismos de resistência dos povos ameríndios que coexistiam antes mesmo das chegadas das tripulações europeias. Engana-se quem acredita fielmente na oficialidade dos livros didáticos que preconiza uma falta de oposição e uma franca submissão por parte comunidade indígena. Dois anos após o batismo, a trupe portuguesa, na que ficou conhecida como Batalha de Uruçumirim, enfrentaria uma histórica resistência dos senhores da Guanabara e contaria com um auxílio divinal para sair vitoriosa.
É agora que o santo entra no balaio! No dia 20 de janeiro de 1567, São Sebastião é visto, como reza a lenda, batalhando, ao lado dos portugueses, contra a população nativa indígena em prol da conquista da área. Consagrando-se, desde então, padroeiro oficial do Rio de Janeiro. Jovem, Sebastião foi militar exímio e ferrenho pregador dos princípios cristãos em território romano. A manutenção de seu dogma fez com que o imperador lhe condenasse ao fim – amarrando-o em uma árvore, na qual seria flechado até a morte. Dando luz ao berço fértil que é o campo religioso carioca, São Sebastião é sincretizado, pelas bandas de cá, como Oxóssi. Essa ligação se deu, provavelmente, pela simbiose contida na figura da flecha – mesmo que estabelecida numa relação contraditória, já que o caçador da umbanda tem nela sua principal artimanha, enquanto o santo a vê como sua principal ameaça. Esse sarapatel chamado Rio de Janeiro não poderia ter história mais genuinamente carioca: o santo, consagrado padroeiro, por ter lutado na expulsão dos tupinambás de terras cariocas é sincretizado, na umbanda, como orixá líder da falange dos caboclos, responsável pelo chamamento e pela proteção dos índios. Uma complexidade muito potente dos processos culturais! 
Comissão de frente do Paraíso do Tuiuti em 2020, assinado por Márcio Moura. Foto: Riotur/Gabriel Nascimento.
Feita a contextualização histórica, chegamos ao Paraíso do Tuiuti! A agremiação leva a sério quando o assunto é devoção ao padroeiro e elevou esse quesito até a maior potência em seu último desfile. No carnaval 2020, com o enredo “O Santo e o Rei: Encantarias de Sebastião”, assinado pelo carnavalesco João Vítor Araújo, a escola fez uma homenagem ao seu protetor com uma história repleta de intercruzamentos entre a vida de Dom Sebastião com a história do santo e as lendas encantadas que circundam o sebastianismo. Na impecável sinopse, assinada por João Gustavo Melo, a dupla de artistas introduz de forma poética e nítida o que viria a ser desenvolvido no enredo. A agremiação, vestida pela adoração à figura que a rege, trazia, ao cruzar as vidas e os legados de Dom Sebastião e São Sebastião, uma série de minúcias de histórias cruzadas de fé que desdobrariam pelos mais diversos rincões de diversos brasis e desaguariam principalmente no solo fértil e sagrado da própria comunidade tuiutiana. Para as cabeças responsáveis pelo desenvolvimento artístico do desfile, falar dos Sebastiões era muito mais do que propor um enredo histórico ou místico; é desnudar uma gramática pautada no leque dos encantamentos. Desenvolvendo, dessa maneira, uma narrativa própria da escola com a forte presença sebastianista que os levava pra um entendimento próprio e carregado de misticismo do tema, pautado na sensação de pertencimento daquela narrativa e no autorreconhecimento da história contada.
A trajetória geográfica do enredo se inicia em Portugal, berço do rei, indo para Alcácer Quibir, no Marrocos, onde Dom Sebastião, segundo a lenda, encantou-se. Encantado, chega à costa maranhense, pelo Oceano Atlântico, rebela-se no sertão nordestino e se apega ao santo, voltando para a cidade cujo padroeiro é seu homônimo. O enredo é costurado com as múltiplas referências às diferentes histórias que complementam essa narrativa única, como a data de nascimento do Dom Sebastião e o dia em que se comemora o dia do santo, 20 de janeiro. Passa pelo mais diversos encantamentos cultuados e fermentados no nordeste brasileiro até chegar ao Rio de Janeiro, comparando a história do santo também com a de Estácio de Sá, que foi morto por uma flecha envenenada no dia do santo. Dessa forma, o enredo se desenha para um final em que se estabelece um paralelo com a situação atual da cidade, suplicando ao santo-rei que o carioca está ferido e suplica a eles que ajudem a retirar as flechas que os assolam. O carnavalesco encerrava o enredo com a ideia de “povo-rei”, a aglutinação do pensamento de um só espírito entre santo e rei, dizendo que os “touros” (negros) precisariam desencantar para coroar a majestade real e o povo de Tuiuti. 
Visão aérea do bonito abre-alas do Paraíso do Tuiuti no carnaval 2020. Foto: Riotur/Fernando Grilli.
Partindo pro dia do desfile, em si, um dos grandes momentos de emoção que o Tuiuti nos reservou em 2020 foi, sem dúvidas, o esquenta da escola. Com um dos sambas-exaltações mais bonitos entre as escolas de samba cariocas, a azul e amarelo de São Cristóvão nos brindou com a bela composição do ex-intérprete da escola, Daniel Silva. Com os versos “Ó padroeiro, que é luz e devoção/Abençoai, meu querido pavilhão/Um canto de fé, ecoa em forma de oração/Salve São Sebastião!”, o Tuiuti já iniciou a louvação a seu padroeiro antes mesmo da largada e deu a tônica perfeita que precisava pra mexer com o brio de sua comunidade e aquecer as arquibancadas da Marquês de Sapucaí. Na visão do júri, a agremiação não apresentou um conjunto visual perfeitamente regular, mas nos brindou com belíssimos momentos como o abre-alas, predominantemente dourado e com lindos touros azulejados puxando o carro, e o segundo carro, trazendo Dom Sebastião flechado na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos. A questão musical foi outro trunfo do Paraíso. Repetindo a fórmula que tem dado certo desde 2018, os compositores Alessandro Falcão, Píer, Moacyr Luz, Julio Alves, Cláudio Russo e Anibal brindaram os presentes com uma belíssima obra, tanto em solução melódica como em letra. A escola, embora não tenha obtido boa classificação na quarta-feira de cinzas, ficando apenas na décima primeira posição, cantou com muita propriedade e contou orgulhosamente a história de seu padroeiro. Os versos “No Morro do Tuiuti/No alto do terreirão/O cortejo vai subir/Pra saudar Sebastião” foram uma feliz solução da parceria, sintetizando poeticamente a comemoração do dia do santo pela comunidade do Tuiuti. A letra, de forma bela e objetiva, percorre o trajeto no qual os moradores correm a procissão a cada dia 20 de janeiro, partindo do alto do terreirão até o Cruzeiro da região, no local mais alto do morro que abriga essa devota comunidade.

A presença de Dom Sebastião é tão forte no imaginário da cultura popular que vale ressaltar duas aparições do rei português em carnavais distintos, ambas pelas gramáticas da encantaria:  Salgueiro, 1974, com o enredo “O Rei de França na Ilha da Assombração”, de Joãosinho Trinta, e Mangueira, 1996, com “Os Tambores da Mangueira na Terra da Encantaria”, de Oswaldo Jardim. No primeiro, um delírio de J30, imaginando que o rei-menino ainda criança, ao ler e ouvir muitas histórias sobre o Maranhão no Palácio de Versalhes, começava a delirar, transpondo a realidade das lendas que escutara pra França. Transformou “salão em matas”, “candelabros em palmeirais” e de “ouro e prata, um mundo irreal”. A música fechava com os ótimos versos “Na praia dos Lençóis/Areia, assombração/O touro negro coroado/É Dom Sebastião”, evidenciando o poder de síntese que só o samba-enredo consegue atingir. Já na Estação Primeira, os versos que o evocavam eram estes: “Os tambores da Mangueira/Na terra da encantaria/Encantaram o touro negro/Que num toque de magia/Se vestiu de verde e rosa/Embarcou na poesia”. Na parte visual, o momento de aparição do touro negro era na nona e última alegoria do desfile, “Reino de Dom Sebastião”, sucedida pelas alas “Encantados do Saber”, “Encantados da Magia” e “Encantados da Alegria”, que encerravam o cortejo mangueirense. Em uma aparição mais recente, o santo-rei deu as caras também, no carnaval de 2008, pela Mocidade Independente, no enredo “O Quinto Império: de Portugal Ao Brasil, Uma Utopia Na História”.
Uma das alas do desfile salgueirense no carnaval de 1974. Foto: Eurico Dantas.

Da mesma forma com o que o Paraíso do Tuiuti encerrou o enredo em seu desfile no último carnaval, terminamos o primeiro texto dessa série com o pedido aos padroeiros de nossa cidade maravilhosa por proteção e amparo, contra as forças, dentre bispos e capitães, que tanto a assolam.

Aliados a esse desejo, deixamos os esperançosos versos da canção “Sebastian”, de Milton Nascimento e Gilberto Gil, imortalizados na voz de Gil: “Sebastian, Sebastião/Diante da tua imagem/Tão castigada e tão bela/Penso na tua cidade/Peço que olhes por ela/Cada parte do teu corpo/Cada flecha envenenada/Flechada por pura inveja/É um pedaço de bairro/É uma praça do Rio”.

Que esses versos sejam a personificação da voz de tantos que amam e zelam por esse espaço único banhado pela Guanabara e abraçado pelo Cristo Redentor. Olhem por nós e intercedam por nossa cidade! Salve São Sebastião, okê arô Oxóssi! Na próxima quarta-feira, passearemos pela influência da gramática do tambor e como o orixá das coisas belas, Oxóssi, influencia a Majestade do Samba e a estrela de luz da Vila Vintém na levada e na identidade de suas baterias. Axé!

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