#Quilombo: Corpos que dançam, corpos que falam – reflexões sobre a corporeidade nas escolas de samba

O Quilombo do Samba é um coletivo negro de pesquisadores do carnaval brasileiro propondo uma discussão afrocentrada sobre a festa. Quinzenalmente aos sábados, suas reflexões vão ar aqui no Carnavalize.

Texto: Vivian Pereira

O corpo é a porção da matéria que marca nossa presença no mundo. É o local em que guardamos nossa herança genética, no qual se manifestam as nossas vontades, desejos e o que foi aprendido ao longo de nossa trajetória. Por isso, além de construção biológica, o corpo é também um produto de construção social, em que carregamos, nas representações culturais e simbólicas, uma sociedade. 
Nas representações cartesianas, o corpo é um conjunto de átomos, moléculas, células que formam órgãos. Nas cosmogonias africanas, porém, o corpo é uma particularidade cultural. A música, a dança, a pintura e a evocação dos ancestrais são modos de celebrar a vida. Na cultura africana, o corpo é parte da criação material e imaterial. Além disso, o corpo é veículo entre o mundo visível e invisível. É o território de formação da identidade e de pertencimento, em que os saberes fluem e se reconfiguram. O corpo é lugar de convivências e de experiências que agrega a memória ancestral, a circularidade da vida e o sentimento de pertencimento. O corpo negro não é um corpo individual, mas sim um corpo comunitário, participativo, no qual se estabelece uma identidade coletiva. 
Arte: Osmar Filho.
Quando falamos em oralidade, o corpo se comporta como portador da memória, da herança, aquele que guarda as histórias. Essa memória corporal se manifesta nas festas, rituais e cerimônias – cada uma com seu significado, mas sempre buscando conexão entre os mundos interior e exterior, o mundo real e espiritual. Expressam uma de organização social que define o papel dos indivíduos dentro da sociedade.
Durante a diáspora forçada, os corpos negros tornaram-se receptáculos da memória de diversos povos. Impedidos de trazer consigo seus pertences, objetos sagrados ou não, seus corpos se tornaram ferramenta e linguagem, abrigo simbólico e expressivo da memória de suas danças e rituais, com objetivo de manter sua identidade cultural. O corpo se tornou o arquivo da memória coletiva. O corpo africano que foi objetificado, coisificado, também se coloca como um arquivo que carregava o registro de muitas experiências. Essas memórias foram úteis para sobrevivência no Novo Mundo. 
A reorganização social teve suporte no corpo para reestabelecer, de alguma forma, os vínculos com a África. Citando Muniz Sodré, em O terreiro e a cidade, o negro no Brasil resistiu e impediu que seu corpo fosse feito de máquina coisificada. Ao invés disso, seu corpo foi plástico, cheio de vitalidade, firmando-se nos quilombos e nas cidades e reconstruindo, aqui, uma África na palavra, no corpo, na música, no ritmo, na ancestralidade. Seja pela religiosidade, pela dança ou pela luta, a expressão corporal foi instrumento de resistência e construção da identidade. 
No texto anterior, falamos sobre a musicalidade, os batuques das escolas de samba, a herança africana. Pois bem: se o batuque é troca de energia, como falamos, o corpo é o instrumento por onde a energia passa. Muniz Sodré, em Samba: o dono do corpo, diz que o samba é formado por uma síncopa; a ausência no compasso da marcação de um tempo que repercute em outro tempo mais forte. Essa síncopa incita quem ouve o samba a preencher esse vazio com palmas, balanços, danças. Esse corpo que palmeia, que balança e dança é o mesmo corpo que a escravatura tentou coisificar e reprimir: o corpo negro. 
O corpo, então, é parte do samba. As mãos que batucam, os pés que batem no chão, os quadris que se movem fazem e são a alma do samba, pelos caminhos em que se flui a energia do som. O samba, logo, é mais do que a expressão cultural de um povo. É um instrumento de luta para a afirmação negra na sociedade brasileira. O som – nesse caso, o samba – é resultado de um processo em que um corpo busca contato com outro corpo para acionar o axé. Assim, a música e o corpo estão interligados. A música pode ser elaborada através dos movimentos do corpo, dos pés que batem no chão em protesto, das mão que batem no peito demonstrando força ou dos quadris e pernas que gingam mostrando agilidade; ou o corpo que dança pode dar forma, pode ser a versão visual da música. Essa relação música – corpo vai ainda mais além, sendo um meio de comunicação, afirmação e identificação social ou um ato de dramatização.  
Arte: Osmar Filho.
O que são os desfiles das escolas de samba senão um ato de comunicação, afirmação de identidade e uma dramatização? Os corpos que formam o cortejo estão ali defendendo a identidade de sua comunidade, o seu pavilhão. Quando os passistas sambam, as baianas e a porta-bandeira giram, o mestre-sala risca o chão da Sapucaí e toda a comunidade canta e dança, eles dão forma ao batuque da bateria, eles contam a história da comunidade e também do enredo; comunicam-se ao público a sua alegria em estar ali, fazendo parte daquele cortejo sagrado e profano.  
Pensemos por que as baianas e as porta-bandeiras giram. As primeiras são as grandes matriarcas do samba, símbolo de cuidado e afeto, e guardam o axé dos ancestres; as segundas, carregam, guardam e defendem o pavilhão, símbolo maior de uma escola de samba, que contém o axé da comunidade. Essas duas figuras giram para espalhar a energia vital, o axé para toda a comunidade que participa do cortejo. Tempos atrás as porta-bandeiras desfilavam à frente das baterias. Por quê? O batuque gera som. Som é energia que surge da interação do corpo do ritmista com o couro do instrumento. Quando a porta-bandeira gira, ela recolhe o axé oriundo da batucada, que se junta ao axé do pavilhão, e espalha para todos. Energia que faz todo mundo cantar, sambar; energia que faz a comunicação entre os mundos visíveis e invisíveis. 
Arte: Osmar Filho.
Vejamos, agora, as rainhas de bateria. Não é uma obrigatoriedade, não conta ponto para a escola, porém, quando paramos para analisar, é um posto carregado de significados e simbologias. Ela reina porque personifica o som da batucada, seu corpo, sua ginga, preenche a síncopa do samba – ela é o samba. Portanto, uma rainha de bateria é aquela que, com seu corpo, dá vida ao som que sai da bateria.
  
Assim, ritmo e corpo se complementam, formando o samba. O corpo é o elemento gerador do som, a voz, o batucar dos instrumentos, mas também é o elemento que dá vida ao ritmo. Baianas, passistas, porta-bandeiras, rainhas de bateria, intérpretes e ritmistas são alguns dos corpos que captam e emanam a energia do samba. Eles e elas materializam e dão visualidade ao som preenchendo sua síncopa, formando o samba, ritmo-dança africano e diaspórico. Corpos negros que se unem nas quadras, nas ruas ou na Avenida formando um corpo único e ancestral chamado escola de samba. 

 

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