7X1 Carnavalize: desfiles em que as escolas de samba nos explicaram o Brasil

 

Desde aquele 7×1 que dispensa recordações, o brasileiro vive tentando entender o que aconteceu lá nas quatro linhas que foram palco da nossa maior desgraça futebolística recente. De onde veio tamanho infortúnio? Como isso pôde acontecer? Exercícios mentais são insuficientes para buscar o sentido do vexame que se abateu sobre nós. Para desanuviar, nada mais justo do que trazer essa partida para o nosso campo de jogo, porque aqui no Carnavalize a gente subverte qualquer revés e transforma a tristeza em folia.
E não é porque o assunto da vez vem com ares solenes que a gente vai deixar de lado nosso jeito malandro, bonito, sagaz e maneiro. Cantar, dançar, pintar, bordar e ser feliz faz parte do perfil do brasileiro. Certo? A verdade é que existem diversas interpretações para o que somos como povo e nação e as escolas de samba sempre se dedicaram – conscientemente ou não – a dar voz a esses conceitos sociais. Neste texto, assumimos a tarefa inglória de pincelar sete vezes em que as agremiações levaram um discurso para a Avenida que nos ajuda a compreender sob que bases está formado o nosso país.
Mas a verdade é que não foram apenas nessas sete oportunidades que vamos passar a relatar que as escolas de samba desnudaram na Avenida esse gigante pela própria natureza: elas fazem isso o tempo todo. O fato de existirem já é narrativa potente; as histórias que contam em fantasias, alegorias, canto e dança só reforçam as vozes circundantes na sociedade e lhes dão eco. Ressalva feita e vamos para a pista: escolhemos alguns desfiles significativos que nos ajudam a montar esse apaixonante e praticamente insolúvel quebra-cabeças chamado Brasil.
1. O samba dominando o mundo (Portela 1935)
Nessas horas, é bom começar do começo. O samba, manifestação cultural oriunda das manifestações culturais, sociais e religiosas negras, era perseguido, discriminado e até assunto de polícia. Estamos no início do século XX. A pujança criativa de ex-escravizados e seus descendentes deu origem ao que conhecemos hoje como escolas de samba. Em 1935, ocorre o primeiro concurso oficial promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro, num reconhecimento da relevância cultural daquelas agremiações. À época, havia interesse governamental em unir o país em torno de um projeto de identidade nacional – assim começa a negociação com o poder público. O reconhecimento por parte das autoridades causou tal alegria nos sambistas que praticamente todos as escolas exaltaram tal vitória do samba. A Vai Como Pode – que, em seguida, já mudaria seu nome e passaria a se chamar Portela –, naquele ano, desfilou com o enredo “O Samba Dominando o Mundo”, expressão máxima da satisfação do grupo até então tão discriminado.
Jornal Diário Carioca, de 7 de março de 1935, noticiando a vitória da Vai como Pode. Imagem: Reprodução/PortelaWeb
É inegável que, efetivamente, nos tornamos mundialmente conhecidos pela nossa maior expressão cultural. Mas qual o preço que se pagou por isso? A domesticação para se enquadrar nas diretrizes do poder público, num eterno jogo de negociações, talvez tenha nos custado caro: estamos no ano de 2020 e tais relações não são benéficas para os sambistas. Constantes movimentos de negociação e conflito são uma das maneiras de entender como se dá a tentativa por um consenso nacional, em que vários grupos com interesses distintos disputam a hegemonia.
 
 
2. Casa Grande e Senzala (Mangueira 1962)
Em 1962, a Estação Primeira de Mangueira batizou o seu enredo com o mesmo título da clássica obra de Gilberto Freyre. Como revelou uma matéria do Jornal do Brasil no pré-carnaval daquele ano, o enredo tratava da escravidão, mas pouco se baseava no livro homônimo do autor pernambucano que definiu as bases da “democracia racial”.
Até aquela década, eram comuns temas que exaltavam o nacionalismo, quase sempre do ponto de vista da história oficial, em perfeita composição com o poder constituído. Aqui vale uma ressalva: engana-se quem pensa que este foi um movimento de cima para baixo, ou seja, uma exigência governamental. Na verdade, tratou-se mais de uma continuidade do movimento inicial da busca pelo reconhecimento.
Ala do carnaval da Mangueira de 1962. Foto: Revista O Cruzeiro (24/02/1962).
Mas chegaram os anos 1960 e os temas relacionados à negritude começam a surgir. E se todo mundo sabe que a Revolução Salgueirense ajudou na difusão de narrativas não-brancas, a verde e rosa também surfava nessa onda no mesmo período mesmo sem ter Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues como seus carnavalescos. Nem sempre, porém, isso significou uma ruptura no pensamento vigente, já que a narrativa propôs uma visão romantizada que passeou por engenhos, plantações e senzalas. Recorramos à letra do samba da Mangueira em questão para explicar um pouco o que isso quer dizer:
“Pretos escravos e senhores
Pelo mesmo ideal irmanados
A desbravar
Os vastos rincões
Não conquistados
Procurando evoluir 
Para unidos conseguir
A sua emancipação
Trabalhando nos canaviais
Mineração e cafezais
Antes do amanhecer
Já estavam de pé
Nos engenhos de açúcar
Ou peneirando o café”
Não surpreende a visão romântica de construção de um país se levarmos em consideração que a própria obra ensaística que serviu de base ao tema do samba-enredo também assim se coloca. Em Casa Grande & Senzala, apresenta-se certa visão do processo da escravidão que sugere uma harmonia nas relações entre negros e brancos que é certamente questionável. Afinal, o que se passou a chamar de democracia racial nunca existiu no Brasil, tendo em vista que seria impossível que escravizados e senhores se irmanassem por qualquer ideal em uma relação marcada pela exploração e pelo comércio de seres humanos. No entanto, essa visão perdura, de certa forma, em nossa sociedade, numa tentativa de apagar a luta contra o racismo estrutural que nos assola.
3. Educação para o desenvolvimento (Beija-Flor 1973)
Parece verídico: só é possível alcançar o pleno desenvolvimento de uma nação por meio da educação de seus compatriotas! Porém, do enredo da Beija-Flor do ano de 1973 pouco se pode dizer de louvável, uma vez que se tratava de pura e simples propaganda oficial. 
O Brasil, naquele tempo, estava vivendo as agruras dos “Anos de Chumbo” e a ordem era exaltar um país promissor governado pelo regime militar. Citando textualmente no refrão o projeto “Movimento Brasil da Alfabetização”, criado em 1967 (“Uni-duni-tê / Olha o A-B-C / Graças ao MOBRAL / Todos aprendem a ler”), revela-se a exaltação a um dos projetos educacionais do governo autoritário.  O enredo não teve interferência ou apoio direto do regime, mas surgiu de uma diretoria da agremiação que era filiada ao partido alinhado do governo. A narrativa representou os padres jesuítas, pinturas da primeira missa realizada no Brasil e a Cidade Universitária. Já o abre-alas levou levara o nome de “Sol da Liberdade”, além da utilização de caramanchão com flores e beija-flores.
Detalhe da alegoria 1973. Fonte: Jornal do Brasil, 04-03-1973. Página 6.
Não é preciso dizer, é claro, que não cabia nenhum tipo de crítica a tais ações por parte de especialistas no tema ou de movimentos estudantis: estávamos sob o silêncio da ditadura. Pode-se ver, portanto, que as escolas de samba seguiram com suas relações bem próximas com os donos do poder – muitas vezes, até mesmo de dentro das agremiações.  Mesmo com menos visibilidade pela imprensa que as agremiações do primeiro grupo, a Beija-Flor ganhou espaço nas páginas de jornal com seu enredo patriótico e garantiu o campeonato que a levava para o Grupo Especial.
4. Cem anos de liberdade: realidade ou ilusão? (Mangueira 1988)
Novos ares o Brasil respirou nos anos 1980: reabertura, constituinte, esperança de democracia. Tudo isso permitiu que a crítica pudesse ecoar mais livremente pelas narrativas das escolas de samba. Em 1988, no centenário da dita Abolição da Escravatura, a Mangueira questiona se realmente havia algo a se comemorar. Crítica social embasada de consciência: o negro, uma vez livre do açoite da senzala, seguia preso na miséria da favela. 
 A representação de Mangueira dos “cem anos de liberdade”. Foto: Ricardo Leoni.
As lutas contra a opressão do racismo ecoam na Marquês de Sapucaí e mostram que as agremiações carnavalescas nem sempre viveram de submissão aos discursos oficiais que colocam Isabel, a princesa que teria assinado a lei divina, como heroína. Mas, se adentrarmos esse capítulo, além de ficarmos cara a cara com as contradições discursivas brasileiras, vamos ultrapassar nosso tempo regulamentar e, afinal de contas, ninguém aqui está interessando em tomar o oitavo gol, certo?
5. Terra dos papagaios… Navegar foi preciso! (Unidos da Tijuca 2000)
No Carnaval do ano 2000, a temática única para a comemoração dos 500 anos do nosso personagem principal deu asas à imaginação dos carnavalescos, que lançaram mão de diversas narrativas para interpretar a data. Destacamos uma delas, por seu tom ufanista: a Unidos da Tijuca apostou em exaltar o Brasil idílico em que a invasão dos portugueses e a dominação por parte deles sobre os povos indígenas é vista como um ato de comunhão e o despontar de uma nação.
Visão do desfile da Unidos da Tijuca de 2000. Foto: Reprodução/Tantos Carnavais.
Se aqui já falamos da impossibilidade de se construir um consenso de país por meio da violência do apagamento e dominação cultural, nada mais justo do que citar outro mito: o das três raças, em que, teoricamente, brancos, negros e índios compõem harmonicamente o povo brasileiro. Infelizmente, nada mais longe da realidade.
6. A Vila canta o Brasil celeiro do mundo – Água no feijão que chegou mais um… 
(Vila Isabel 2013)
 
As baianas de Vila Isabel. Foto: Wigder Frota.
A Unidos de Vila Isabel em 2013 foi certeira ao escolher o título de seu enredo: cantou mesmo uma face incontestável da realidade brasileira. Somos desde sempre o celeiro do mundo, ou seja, nossos recursos naturais servem a mesa de famílias não só no Brasil, mas continentes afora. Motivo de orgulho? Na disputa por reconhecimento internacional, despontam à frente aquelas nações que têm a oferecer no cenário globalizado mais valor agregado – com tecnologia de ponta, inovação e ciência –  do que simplesmente ser o grande pasto mundial ou as abelhinhas que produzem e levam o mel… para bem longe. Não à toa, o enredo foi patrocinado pelo agronegócio, que continua fazendo cada vez mais ricos os riquíssimos. Ironia das ironias: o desfile foi campeão com todos os méritos na pista e eternizou um dos mais belos sambas-enredo da história recente do Carnaval. Quer algo mais brasileiro do que essas contradições?
 
7. Histórias pra ninar gente grande (Mangueira 2019)
 
Trecho da comissão de frente da Mangueira. Foto: Mauro Pimente /AFP.
Mas esse grande caldeirão de contradições, potências e subjetividades pode, sim, entrar em ebulição, fazendo transbordar as memórias subterrâneas que insistiram em silenciar. Bem vivos os personagens que a história oficial não conta – os heróis dos oprimidos –, também foram capazes de levar ao campeonato quem lhes deu voz: Estação Primeira de Mangueira, no ano de 2019. Tudo isso mostra que o embate nunca deixou de existir em nossa sociedade e estamos ainda longe de um consenso acerca de nossa formação identitária. Na Sapucaí, ganham espaço tanto as homenagens à cultura afro-brasileira quanto enredos menos engajados, todos eles disputando os corações dos sambistas. Com relação a certezas, parece possível arriscar uma: quanto vivam as escolas de samba, seguirão sendo peça fundamental para compreender o processo permanente de construção da identidade brasileira, defronte tantos paradoxos que moldam o que ela é.
Referências:
http://www.portelaweb.org/outros-carnavais/decadas-de-20-e-30/carnaval-de-1935
http://encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276730355_ARQUIVO_ANPUH2010_textodacominicacao_LuizAnselmoBezerra.pdf
O Brasil do Samba-Enredo, livro de Monique Augras
Dissertação “Chapa-branca: farda e fantasia nos enredos da Beija-Flor (1973-1975)”, de Carlos Carvaho.

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