ROSA X LEANDRO: Quando os carnavalescos ocupam as galerias de arte

 

Arte por Lucas Monteiro

Texto: Débora Moraes
 
Rosa Magalhães e Leandro Vieira são os carnavalescos que mais tiveram seus trabalhos exibidos em exposições em instituições de arte. Além de colecionarem esse título, ambos tiveram apenas uma exposição individual dedicada ao que haviam apresentado naquele ano com o mesmo objetivo: mostrar que existe muito mais na produção do carnaval das escolas de samba do que o exibido no desfile. Nesse texto, vamos analisar como a cobertura dos jornais sobre as duas exposições e os dois carnavalescos foi diferente, mesmo com as exposições sendo tão semelhantes, a ponto de até as fotos ilustrando as matérias (que possuem 27 anos de diferença) serem parecidas.
A exposição do Leandro acontece com o apoio do Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que acompanhou todo o processo da Mangueira para 2017, contribuindo para a pesquisa sobre o enredo e registrando a memória do processo, que resultou na exposição e na publicação “Arte e Patrimônio no carnaval da Mangueira”. “#bastidoresdacriação – Arte aplicada ao carnaval” foi uma das quatro exposições inauguradas em junho de 2017, no Paço Imperial, como parte da agenda de comemoração dos 80 anos do Iphan.

Figurinos em exposição no Paço Imperial, 2017, foto de Léo Martins.

Já “Salgueiro 90” é organizada por Rosa Magalhães junto com a direção da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, tendo a agremiação alvirrubra pago cerca de Cr$500.000,00 (quinhentos mil cruzeiros) para a exposição acontecer. Para os jornais, Rosa afirma que “não são todas as escolas que têm condições de bancar um projeto desse tipo”, indicando que os quinhentos mil cruzeiros que custou era um preço elevado. Para termos uma ideia dos valores à época, na transmissão do carnaval de 1990 pela Globo, durante o desfile da São Clemente (então também parte do Grupo Especial), os repórteres perguntam aos foliões o preço das fantasias, e uma delas diz ter pagado NCZ$ 600,00 (seiscentos cruzados novos), o que alega ser “muito barato”. Um dos repórteres anuncia que para participar dos desfiles estava sendo cobrado a turistas o preço de NCZ$ 3.000,00 (três mil cruzados novos), com fantasia inclusa. E outra repórter pergunta a uma foliã, que diz ser lojista e ter pagado NCZ$ 3.500,00 (três mil e quinhentos cruzados novos), se ela precisou economizar o ano todo para comprar a fantasia. A moeda mudou do Cruzado Novo (NCZ$) para o Cruzeiro (Cr$) em março de 1990, e a conversão entre as moedas era NCZ$ 1,00 para Cr$ 1,00, ou seja, um cruzado novo equivalia a um cruzeiro. 
A “Salgueiro 90” levou para o Parque Lage quinze fantasias, quatorze esculturas, faixas e estandartes, desenhos de figurinos (com amostras de pano), de carros alegóricos e de esculturas, além de centenas de fotos do processo de criação do desfile “Sou Amigo do Rei”. Ainda havia quatro sessões, ao longo do dia, exibindo um vídeo sobre a criação das esculturas, desde o corte do isopor e a produção da fibra de vidro. 


Rosa Magalhães posa ao lado da escultura de onça na piscina ao centro do prédio da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Foto de Renan Cepede para o Jornal do Brasil.

A “#bastidoresdacriação” teve a curadoria feita pelo próprio Leandro Vieira, que levou as fantasias mais marcantes do enredo “Só com a ajuda do Santo”, como a da porta-bandeira Squel Jorgea, a da bateria de São Francisco, a das baianas com os saquinhos de Cosme e Damião e outras. Havia também desenhos (com pedaços de tecido e anotações), maquetes das alegorias, miniaturas das fantasias, um vídeo making-off do desfile, um painel com o cronograma da confecção de um desfile e dúzias de fotos e textos – dos desenhos, das fantasias, do barracão, do pré e pós desfile.
Apesar de apresentarem um material semelhante e com objetivo parecidos, os carnavalescos, ao falarem sobre as exposições em entrevistas, se comportam de maneira quase opostas. Em relação aos seus papéis como carnavalescos, Leandro é adamante quanto a sua posição na criação de cada etapa do enredo e desfile enquanto Rosa se afasta da atribuição de centralidade. A própria Rosa fala que “podemos dizer que esta exposição tem a assinatura de todo o Morro do Salgueiro” (ALONSO, 1990). Os jornalistas que escrevem sobre a exposição ecoam essas palavras em suas matérias:
Esta não é uma exposição individual, mas uma coletiva (RIZZO, 1990)
A exposição tem uma só assinatura: ‘Morro do Salgueiro!’ (RITO, 1990)
O Salgueiro quer, na verdade, homenagear a coletividade através do produto de um trabalho também coletivo, com a participação dos artistas do morro e do asfalto (O FLUMINENSE, 1990)
Reportagem do O Globo de 1990.

As matérias contribuem para o entendimento de que esta não é uma exposição de Rosa Magalhães (como carnavalesca ou como artista), embora ela assine o enredo, além de ter feito a curadoria da mostra junto com a direção da Escola de Artes Visuais (EAV). Isso contrasta com a postura de Leandro, que é retratado como o carnavalesco que abre uma exposição individual (em que também é responsável pela curadoria), mesmo que também estivesse exibindo o trabalho do desfile da Mangueira. Os posicionamentos dos carnavalescos nas suas respectivas entrevistas provavelmente influenciaram o que os jornalistas reportaram sobre cada um.
Rosa se posiciona contra uma visualização das peças para além do desfile, enquanto Leandro não queria “trazer nada que lembrasse a Sapucaí” (BRUNO, 2017).  A carnavalesca diz que a “intenção é resgatar a plasticidade do carnaval e evitar a tendência de que as peças criadas para os desfiles, vistas em outro espaço, ganhem nova configuração” (LISBOA, 1990). Ela ainda afirma que a obra não deve ser vista da mesma forma que “uma peça de museu”, mas que “carregue a versatilidade do desfile” (LISBOA, 1990). Para Vieira, ao contrário, “quando surgiu a oportunidade de fazer esta exposição num lugar como o Paço, achei que era a chance de mostrar o carnaval como arte” (BRUNO, 2017).
Podemos argumentar que a simples ação de retirar as partes do desfile do ato que acontece na Passarela do Samba e transportá-las para o Parque Lage já é dar a elas uma nova configuração: uma escultura em cortejo versus um objeto imóvel, uma fantasia vestida por um integrante sambando versus em um manequim parado, as peças vistas de longe da arquibancada versus vistas de perto. Mas é mais interessante perceber que Rosa parece contra a ideia de as criações do desfile serem vistas como a arte de museus e galerias e, por isso, fale de uma “versatilidade” que existe no desfile e não na “peça de museu”. Enquanto isso, Leandro trabalha o material de forma que ele não seja idêntico ao do desfile, exatamente porque deseja que aquilo seja visto como a arte que possa fazer parte de galerias e museus.

Frederico Morais, importante crítico da arte brasileira, é o responsável pela apresentação da exposição de Rosa Magalhães, o que faz com exaltação ao comentar que a considera um ponto de “confluência das diferentes tendências do carnaval” (MORAIS, 1990). As observações do crítico se estendem primeiro ao carnaval em geral, quando comenta sobre a estética de outras escolas e carnavalescos (Fernando Pinto, Arlindo Rodrigues, Fernando Pamplona) a partir de suas próprias análises da festa por meio de “categorias estéticas eruditas”, ressaltando-a como forma de arte brasileira. 

A apresentação de Morais, considerando sua campanha a favor da obra de Fernando Pinto, em 1983, e seus textos acerca da festa evocam um apoio à presença do carnaval num espaço de arte de vanguarda, como no trecho em que convida os alunos e professores do Parque Lage a trocarem as salas de aula por barracões. No entanto, é interessante notar que em nenhum momento, neste texto, Rosa Magalhães é chamada de “artista”, ainda que seu autor use categorias da arte para tratar do carnaval e de outros carnavalescos.

A intenção de expor uma escola de samba dentro de um espaço de arte vanguardista como o Parque Lage gera uma certa comoção na imprensa, de maneira que uma jornalista chega a dizer (erroneamente) que “esta é a primeira vez que uma escola de samba traz suas fantasias, bandeira e esculturas para um espaço tradicionalmente dedicado aos artistas de vanguarda” (LISBOA, 1990). Na verdade, menos de uma década antes havia ocorrido uma exposição de Fernando Pinto. Outros jornalistas ainda fazem questão de ressaltar que a mostra significa o encontro do popular com o erudito vanguardista (LISBOA, 1990; AYALA, 1990), até mesmo citando o texto de Morais. Importante destacar que, diante dessas matérias nos meios de comunicação, a exposição “Salgueiro 90” não parece ter sido aproveitada para estender a possibilidade de outras escolas e carnavalescos também ocuparem esses espaços.
Reportagem do jornal O Globo de 12/06/2017.

Enquanto isso, o posicionamento de Leandro em seus discursos gira em torno do reconhecimento das criações para as escolas de samba enquanto material artístico e cultural, ponto que toma conta das matérias que saem a respeito. Uma delas chega a dizer que ele é “como um pilar dessa resistência cultural [do carnaval] ante a sanha do entretenimento” graças à insistência do carnavalesco em defender a visão do carnaval como arte. Em entrevista, ele explica que “quis fazer uma coisa que mostrasse os bastidores do processo artístico. Porque o Carnaval já vive há muito tempo, não é de agora, esse esvaziamento da produção artística. Das pessoas não olharem essa produção como uma produção de arte gigante, como arte plena. Tem o preconceito da sociedade brasileira como um todo com relação ao carnaval” (VIEIRA, 2020).
Os discursos de ambos os carnavalescos diante de suas exposições é importante para demarcar como eles se veem e como vão influenciar outros a vê-los. Leandro, que se coloca como criador individual e produtor de arte, e Rosa, que vê o desfile e, consequentemente, a exposição no Parque Lage como resultado de um trabalho coletivo. Seus posicionamentos também refletem a forma como querem que seus trabalhos sejam vistos – Leandro, que deseja que suas criações sejam vistas como arte por si só, e Rosa, querendo que elas permaneçam como parte do desfile.

Essa diferença de discurso se torna mais interessante quando voltamos a suas carreiras. Vieira é grande admirador de Rosa Magalhães e ambos estudaram na mesma Escola de Belas Artes da UFRJ, inicialmente nutrindo desejos de serem artistas plásticos. Magalhães chegou a ser selecionada, ainda na graduação, para a I Bienal da Bahia, em 1966. Já Vieira, apesar do desejo de ser “artista de galeria” desde jovem, começou a trabalhar no carnaval e alcançou a entrada na galeria a partir do reconhecimento do seu trabalho como carnavalesco. Rosa parecia nutrir um desejo por ser “artista de galeria” antes de entrar para o carnaval e, talvez por isso, para ela, esteja muito bem definida a diferença entre essa arte que ela vivenciou nos tempos de universidade e a arte que passou a criar numa escola de samba.
Ela vai na contramão do pensamento geral de um carnavalesco como artista/criador individual, mencionando a ideia de produção coletiva e colaborativa. Até mesmo sua vontade de que a produção não se torne arte institucional parece apontar para uma intenção do carnaval como arte popular, como festa que é produzida a muitas mãos para aquele objetivo específico, neste caso, o desfile. Sua história nas escolas de samba começa como parte de um grupo, dos alunos de Pamplona, onde dividia as criações nos desfiles com Joãosinho Trinta, Maria Augusta e muitos outros. Para Rosa, talvez esteja tão clara a diferença entre a arte que produzia e a que passou a produzir, que seja esse o motivo pelo quando chame tanta atenção para o fato de que ali a criação é coletiva e que as obras não são como as de museu. Com esse discurso, ela chama atenção para outra face do carnaval, quase oposta da posição tomada pela maioria dos carnavalescos e estudiosos. A visão de Rosa Magalhães nos oferece uma nova possibilidade de visão do artista dentro do carnaval. 

Referências bibliográficas

ALONSO, Paulo. Exposição traz de volta a folia. O Globo, 30 abr. 1990. 
RIZZO, Walter. Exposição do Salgueiro. Publicado na coluna “Bola Social”, em Jornal dos Sports, 2 de maio de 1990.
O SAMBA também gera exposição. Jornal o Fluminense, Niterói, 8 mai. 1990.
BRUNO, Leonardo. Carnavalesco da Mangueira abre exposição no Paço Imperial. Publicado em O Globo, 12 jun. 2017a. Disponível em <https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/carnavalesco-da-mangueira-abre-exposicao-no-paco-imperial-21465049?fbclid=IwAR38FMc0-tMzpp6yhsQkFkxtp_25h-II1JRm7_aP45FwXu5BNK6Nl8pksWk>. Acesso em 17 jun. 2021.
LISBOA, Salete. Salgueiro mostra sua arte. Publicado em Jornal O Dia, 5 de maio de 1990.
MORAIS, Frederico. Texto de Frederico Morais sobre a exposição Salgueiro 90. Rio de Janeiro, abr. 1990. Disponível em <https://www.memorialage.com.br/luiz-aquila/texto-de-frederico-morais-sobre-exposicao-salgueiro-90/>. Acesso em 9 set. 2021.
AYALA, Walmir. Amiga do Rei. Última Hora, 4 de maio de 1990.
VIEIRA, Leandro. Entrevista com Leandro Vieira. Revista Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 21, n. 37, jan. 2020. p. 12-39. Entrevista concedida a Alexandre Sá, Claudia Saldanha, Inês Araújo, Felipe Ferreira, Luiz Guilherme Vergara.

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