Do Setor 1 à Apoteose: Império Serrano 2017 – Meu quintal é maior do que o mundo

 

Texto: Beatriz Freire, João Vitor Silveira e Thomas Reis
“Do Setor 1 à Apoteose” propõe uma viagem completa por um desfile marcante da história carnavalesca, da concentração à Apoteose, passando por antecedentes, contextos, histórias de bastidores e análise de todos os quesitos. Um verdadeiro cortejo de informações sobre a apresentação escolhida! Durante o mês de setembro, a cada segunda-feira, destrinchamos um desfile escolhido pelo público a partir de enquetes realizadas em nosso Instagram (sigam @igcarnavalize) e também no Twitter (@carnavalize). 
Nossa temporada de retomada da série abarca um processo imprescindível de contribuição dos padrinhos e madrinhas que impulsionam o trabalho do Carnavalize. Para o nosso último texto (coro de lamento), contamos com a colaboração de três padrinhos: Renato Cabral, Vitor Vieira e Danielle Souza estão representados por União da Ilha 1990 (Sonhar com rei dá João), Renascer de Jacarepaguá 2009 (Como vai, vai bem? Veio a pé ou de trem?) e Império Serrano 2017 (Meu quintal é maior que o mundo). Agradecemos mais uma vez aos nossos padrinhos e madrinha pela luxuosa contribuição e convidamos todos a conhecerem nosso instrumento de apadrinhamento. 
Como um dos maiores expoentes da cultura brasileira, desde o rebaixamento para a Série A em 2009, o Menino de 47 passou alguns anos tentando beliscar novamente uma vaga no Grupo Especial. A passagem pelo segundo grupo rendeu bons momentos de conexão com suas raízes, como quando homenageou Dona Ivone Lara, a jóia rara do samba, em 2012, passou uma mensagem de fé, em 2015, e também quando reverenciou Silas de Oliveira, no carnaval de 2016. Estes dois últimos, aliás, eram os pontos de uma trilogia pensada para o Império Serrano de 2015 a 2017, fundamentada sobre três ideias: a fé, a raiz e a herança, respectivamente. 
Menino Bernardo em meu ser, reinvento o meu Pantanal
Assim, no ano de seus 70 anos de existência, em 2017, até se cogitou fazer uma homenagem própria à escola da Serrinha para que a sequência finalmente fosse finalizada (a herança). Mas, no final das contas, os olhos se voltaram para a os feitos de Manoel de Barros, usando a obra homônima do poeta, para Marcus Ferreira, que chegou à agremiação naquele ano, desenvolver o enredo “Meu quintal é maior que o mundo”.
“Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que
fui salvo.”
(Manoel de Barros, do “Livro das Ignorãças”, 
Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1993, pág. 107.)
A logo oficial do enredo desenvolvido por Marcus Ferreira.
O enredo conduzido por Marcus se propôs a versar de forma poética sobre a trajetória de um dos maiores literatos da contemporaneidade, o poeta brasileiro Manoel de Barros. Foi a partir do seu olhar poético sobre sua terra que a história ganhou a Sapucaí. De origem mato-grossense, nascido em Cuiabá, o homenageado sempre teve seu olhar voltado para a região do Pantanal, muito presente em todas as suas obras. Desta forma, o ainda jovem carnavalesco buscou, por meio da subjetividade presente na obra de Manoel e no seu amor por sua terra, o fio condutor da narrativa. A viagem pantaneira contava com o auxílio mais que especial de Bernardo, um dos principais personagens da obra do poeta, que exprimia toda sua brasilidade e mística rural.
Sobre Bernardo:
Espécie de totem, deus, guardião da natureza sagrada. Mítico que domina o mundo natural pantaneiro.
Fazedor de amanhecer. Guardador das águas. Encantador de pássaros.
Matuto pantaneiro, meu fazendeiro.
“Reizinho” do meu quintal.
Bernardo: meu outro eu.
A narrativa foi dividida em quatro partes embasadas em todo o regionalismo do poeta. O primeiro setor demarcava o “Fazedor de amanhecer”, percorrendo toda a origem da terra pantaneira que se estende para além dos limites da fronteira brasileira, tomando parte das regiões da Bolívia e do Paraguai. O segundo setor partia para “O guardador de águas”, passando pelo “Mundo natural do pantaneiro”; no terceiro, e por fim, desaguava em “Um pantaneiro a lutar”. 
 

A minha história já fala por mim
A Comissão de Frente coreografada por Júnior Scapin. Foto: Wigder Frota. 
Sob o comando de Júnior Scapin, nome conhecido do quesito, o corpo de baile se apresentou em dois atos, com o título “poesia é voar fora da asa”. Em um primeiro momento, os componentes trajavam vestes indígenas, associando o Pantanal a esta figura nativa. Um tripé com um ipê, árvore-símbolo da região, acompanhou o grupo que em um segundo momento fazia acontecer a transformações de pajés feiticeiros em animais pantaneiros. Ao final da apresentação, a figura de Manoel surgia pela abertura de uma janela que acompanhava a frase da cabeça do samba. 
O primeiro casal de porta-bandeira e mestre-sala da Serrinha. Foto: Wigder Frota.
Raphaela Caboclo, em dado momento da sua vida, passou mais tempo como porta-bandeira da Serrinha – independente do posto de terceira, segunda ou primeira – do que longe da dedicação à condução do manto sagrado imperiano. Em 2017, formava, pelo terceiro ano seguido, dupla com Feliciano Júnior; a cumplicidade e o entrosamento eram tantos que pareciam ter aprendido a se movimentar juntos naquela dança desde sempre. Em vestes sem as tradicionais penas utilizadas, mas feitas de capim barba de bode, os dois jovens e experientes talentos representavam o índio e a perdiz, personagens de “O primeiro poema” – curiosamente o último poema do livro “Menino do mato”, de autoria do homenageado. Graciosos em uma apresentação não menos que perfeita, os guardiões abriram os caminhos para a comunidade de Madureira passar. 
O nosso verde fez o céu emocionar
Do ponto de vista estético, o reizinho de Madureira cumpriu muito bem o proposto. O conjunto alegórico se destacou por apresentar cinco carros imponentes, com cores vívidas e bem decorados, que se mantiveram equilibrados desde o abre-alas até a última alegoria. Por falar no abre-alas (Meu quintal é minha aldeia), esta foi a alegoria que mais se destacou, sobretudo por sua estética diferenciada, dividida ao meio por duas tonalidades: uma metade o ouro do Eldorado, a outra marrom do pantanal brasileiro, carregando toda a mitologia que se perpassou pela região. 
O abre-alas evocava o Eldorado. Foto: Fernando Grilli.
A alegoria levou à Avenida o símbolo máximo do Império, a coroa. Na ocasião, em especial, o carnavalesco buscou resgatar o primeiro modelo da coroa, concebido na fundação da escola, em alusão aos 70 anos completados em 2017. A segunda alegoria, “Caracol é uma casa que anda”, foi um banho de cores cítricas para representar a natureza da região centro-oeste do país com um toque poético bem compatível com o homenageado. Apesar do toque criativo e das boas soluções estéticas, a alegoria apresentou alguns problemas de execução decorativa, com algumas madeiras à mostra. 
Para fechar a narrativa, contou-se com mais duas alegorias. O terceiro carro, “Passarinhos construíam casas na aba do seu chapéu de palha”, trazia em sua parte frontal uma enorme escultura de Bernardo, o personagem de Manoel, que conduzia a história contada pela verde e branco. Os tons cítricos que permearam todo o desfile se fizeram presente nesta alegoria também; com uma iluminação robusta, o carro ganhou vida, mas o excesso de adereços em determinados pontos acabam poluindo um pouco a construção. 
A segunda alegoria lembrava o verso “Caracol é casa”. Foto: Wigder Frota.
No entanto, nada comprometeu a beleza estética da alegoria. Por fim, mais uma imponente alegoria, “O Pantaneiro encontra o seu ser”, com destaques coloridos, um certo excesso de adereços e, mais uma vez, o símbolo da escola, desta vez no centro carro e com movimento giratório. O equilíbrio entre as cores e a iluminação das alegorias merece ser reverenciado por ter dado vida e dinamismo ao bom conjunto alegórico apresentado pela escola. 
O equilíbrio entre as alegorias não se fez presente por entre as alas, apesar do desempenho positivo e o cumprimento do proposto com excelente adequação ao enredo, as fantasias alternaram entre soluções criativas e outras nem tanto. Se por um lado as fantasias não eram tão luxuosas, por outro, a utilização das cores foi muito acertada. A escola formou um belo tapete, voltado especialmente para o verde, amarelo e laranja, com ressalvas em tons terrosos e de palha. De maneira geral, o visual conseguiu retratar muito bem o tom artístico do poeta e toda sua leitura do pantanal brasileiro, sua terra, seu quintal. A estética da escola se fez poesia, assim como as obras de Manoel de Barros, e versou muito bem sobre as terras do centro-oeste brasileiro. 
Você já sabe quem sou pelo toque do agogô
O samba do ano de 2017 é mais um a compor a galeria de grandes sambas do Império Serrano. A composição tem diversos trechos poéticos e de muita beleza, além de transições melódicas bem interessantes. A estrutura de utilizar um refrão de meio mais longo e sem repetição foi uma saída criativa para poder fugir da fórmula padronizada que tomou o gênero do samba-enredo ao longo dos anos. O samba foi muito bem conduzido na Avenida pelo intérprete Marquinhos Art’Samba, que defendia o pavilhão da Serrinha pela primeira vez, tendo uma boa identificação com sua comunidade já na sua estréia.
 
O samba composto por: Lucas Donato, Tico do Gato, Andinho Samara, Victor Rangel, Jefferson Oliveira, Ronaldo Nunes, André do Posto 7, Vagner Silva, Vinicius Ferreira, Rafael Gigante e Totonho, um verdadeiro time de futebol, foi bem aceito ao vencer a disputa, muito pelo refrão de cabeça, icônico. Eram elementos da obra a exaltação da história do Menino de 47, além da reverência a uma das grandes características da bateria do Império Serrano: o característico toque de agogô. (saiba mais na série Batuques.)
Um ritmista da bateria sinfônica em 2017. Acervo Império Serrano.
A bateria do Império Serrano, que inclusive deu um show com um dos melhores anos recentes da Sinfônica do Samba, conduzida pelo Mestre Gilmar, desfilou com uma cadência daquelas pela pista. Gilmar, inclusive, falou um pouco conosco sobre sua perspectiva sobre o desfile de 2017:
“Nós vínhamos de um desfile no ano de 2016 onde as características da bateria tiveram que mudar um pouco por conta do samba. A diretoria pediu que acelerasse o andamento por conta do samba, e eu falei muitas vezes que não daria certo, a bateria do Império não teria um bom desempenho com um andamento acelerado, porém eu sigo ordens. Foram dois 10 e duas notas inferiores naquele ano. Para 2017, comecei os trabalhos com novos pensamentos, toda minha diretoria entendeu que seria importante mudar em tudo. Dei oportunidade a novos diretores, ensaiamos por módulos, cada dia um naipe, limpamos literalmente os toques que achamos errados no desfile. Os ritmistas estavam meio desanimados por conta do desfile anterior. Então privamos em bossas simples mas com um ritmo firme, a bateria é muito acostumada a fazer bossas, e fazer ritmo por muitos ensaios foi bem desafiador. Daí veio a escolha de samba e uma final linda, unanimidade a escolha, acho que todos queriam o samba.
Samba lindo, melodias diferentes porém ajudando muito os desenhos de cada instrumento.”
Ainda que tenha tido um foco bem grande no ritmo, a Sinfônica apresentou bossas maravilhosas no desfile, que exaltaram todas as características principais de sua orquestra: o toque das caixas, a afinação dos surdos, os seus tamborins e o naipe de agogôs. O Mestre fala um pouquinho mais sobre o trabalho até chegar no desfile:
“Continuei trabalhando ritmo, só ritmo. Quando achamos que estava quase bom, começamos a fazer bossas, mas bossas simples, deixando o samba por si abrilhantar tudo. Fizemos ensaios maravilhosos na quadra e fora dela, principalmente o ensaio técnico, que foi impecável, até na vestimenta. Pela primeira vez tiramos o verde e branco e colocamos preto, e no dia ensaio técnico vi que estávamos no caminho certo. Então foi só esperar o desfile e repetir o mesmo desempenho. Se você ver o desfile, eu sambei o tempo inteiro, eu nunca tinha desfilado tão tranquilo e irreverente, os ritmistas rindo. Saímos da Sapucaí com a certeza de um ótimo desfile, todos os ritmistas se abraçando, gritando, foi muito foda.”
O resultado final do trabalho daquele ano foi visto já ao final do desfile, visto que toda a equipe de bateria ficou satisfeita com a capacidade que tiveram de vir de um ano adverso e fazer as mudanças e o trabalho necessário para recuperar o ritmo e as características do Império Serrano. Para coroar esse trabalho, ainda veio o gabarito na quarta-feira de Cinzas. Mestre Gilmar finaliza comentando um pouco sobre o resultado: 
“Minha satisfação como Mestre foi enorme. Dedico aquele desfile a todos os ritmistas que aceitaram o desafio de um desfile direcionado ao samba, onde procuramos deixar ele por si só abrilhantar a festa, e então foi só esperar a apuração. Sem dúvida nenhuma, foi o melhor ano meu como Mestre, ali eu vi que a  mudanças para o bem de toda agremiação, e tinham que ter acontecido.”
 
Reizinho de tantas vitórias
A quarta-feira de cinzas de 2017 reservava momentos especiais para Madureira. Apesar do favoritismo da Unidos de Padre Miguel, o Império Serrano apresentou um desempenho arrebatante nas notas, tendo sido descontada apenas nos quesitos Alegorias e Adereços e Mestre-Sala e Porta-Bandeira, penalizada em 0,1 décimo em cada um deles, além de um completo gabarito em Enredo, Harmonia e Bateria. Sendo assim, a Serrinha garantiu o título no Grupo de Acesso de 2017, carimbando sua vaga no grupo Especial para 2018. A consonância com o título da Portela em 2017 rendeu uma festa completa em Madureira.
Depois de tantos anos, enfim a Serrinha pode se reencontrar com o Grupo Especial. Em um carnaval envolto de emoções, em um ano especialmente difícil tanto na Série A quanto no Grupo Especial, a esperança parecia sinalizar um retorno quando o anúncio do campeonato foi feito. De mãos dadas com a coirmã, Portela, o Império Serrano ainda recebeu o convite para que seu casal desfilasse ao lado dos defensores portelenses no sábado das campeãs. Nas páginas verde e brancas, basta abrir o livro e ver que o Menino de 47 e Manoel fazem parte de um pedacinho da história um do outro. 

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