#ColabLize: Repensando a relação entre Administração Pública e as Escolas de Samba

A coluna #ColabLize é um espaço aberto a seguidores do Carnavalize e pesquisadores de carnaval para divulgar seus escritos sobre nossa folia. Quer enviar algum texto que verse sobre a festa? Mande para nós no e-mail contato@carnavalize.com. A #ColabLize vai ao ar quinzenalmente, sempre aos sábados!

Texto: Isaque Castella
Uma lastimável realidade que a pandemia de coronavírus tem escancarado é a grave situação enfrentada pelas escolas de samba, no contexto do Rio de Janeiro, do ponto de vista da manutenção de suas atividades cotidianas e de seus profissionais. É público e notório o abandono das tradicionais instituições culturais pela administração pública local. O que muito se comenta, com pertinência, no mundo do samba é como as agremiações e toda a festa que as envolve têm estado à mercê do apreço (ou não) pelo carnaval por parte dos chefes políticos da gestão pública.
No atual cenário de terra arrasada, parece existir um consenso em torno da necessidade de as escolas se autonomizarem em relação ao poder público. Para tanto, devem lançar mão de iniciativas mobilizadoras de suas aguerridas comunidades e de seus fãs apaixonados. Não discordo do fato de que tal caminho é promissor e merece ser amplamente seguido. Todavia, o que me preocupa é a aceitação ou certa naturalização da omissão do Estado gestor em detrimento dos deveres de preservação, incentivo, valorização e difusão de uma das mais importantes manifestações artísticas e culturais da cena carioca.
O primeiro ponto a ser devidamente compreendido no debate em voga é que a existência de políticas públicas voltadas para as escolas não pode depender da boa vontade do gestor a partir de suas preferências ideológicas ou religiosas, de cunho individual. A omissão administrativa baseada em motivos pessoais não goza de respaldo constitucional-legal, o que se justifica pela inobservância do princípio administrativo da impessoalidade, consagrado pelo artigo 37 da CRFB/88. A questão aqui não é meramente político-eleitoral, vez que qualquer candidato eleito está vinculado às normas constitucionais que dispõem sobre a atividade administrativa.
E o dever da administração para com as manifestações artístico-culturais é estabelecido pela própria Constituição, vide o disposto pelos artigos 215 e 216:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais (grifo meu).
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (grifo meu).
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação (grifo meu). 
Cabe destacar, inclusive, que o caráter de patrimônio cultural das escolas de samba que desfilam no município do Rio de Janeiro foi declarado pelo Decreto nº 28.980/08. Ademais, o samba-enredo goza do status de patrimônio cultural de natureza imaterial pelo Decreto nº 42.708/16. Se a própria administração pública municipal reconheceu a necessidade de preservação dos referidos patrimônios, não cabe a ela se isentar agora da obrigação de tomar as medidas que se fizerem necessárias para a proteção dos mesmos. O Estado gestor precisa honrar seus deveres e não permitir que as escolas de samba, essas entidades históricas e representantes da cultura popular e negra, enrolem suas bandeiras.
Os interesses político-ideológicos não podem sequer, nesse caso, promover retrocesso no reconhecimento desse patrimônio, haja vista sua incorporação à esfera jurídica da coletividade. São vários os teóricos que advogam nesse sentido, em homenagem ao princípio constitucional da vedação ao retrocesso em termos de proteção cultural. Desse modo, não restam dúvidas quanto ao dever administrativo levantado.
Em suma, a reflexão aqui desenvolvida teve como objetivo trazer à tona um modo de pensar a relação entre administração pública local e escolas de samba condizente com o paradigma de constitucionalização da administração pública. Assim, é possível concluir que não se encontra na esfera de discricionariedade do gestor público a escolha entre agir, com políticas públicas dirigidas ao patrimônio cultural e à sua promoção e proteção, ou se omitir, por considerar que a cultura não mereça ser tratada como questão de Estado. 
São falaciosos quaisquer argumentos que militem pela possibilidade de se escolher investir na cultura ou na saúde ou na educação. E, da mesma forma, não encontra respaldo na ordem jurídico-constitucional a omissão estatal baseada em consultas públicas nas quais a maioria dos cidadãos se manifesta contra as políticas culturais. Não podemos nunca esquecer do caráter contramajoritário, assecuratório de direitos e das minorias, concernente às democracias constitucionais.
Sobre o autor:

Isaque Castella é mestrando em Direito Constitucional no PPGD PUC Minas, bacharel em Direito pela mesma instituição e bacharel em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo – pela UFMG. 

 

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