#Quilombo: matriarcado africano nas escolas de samba

Autor Ilustração: Osmar Filho/Arte Capa: Vítor Melo

Texto por Gabriela Sarmento, Osmar Filho e
Vívian Pereira
Mãe Ciata d’Oxum imortal. Autor: Osmar Filho
Quando falamos em matriarcado,
logo somos levados a pensar no sistema que a visão ocidental nos levou a
imaginar, no qual as mulheres mandam, detêm todo o poder, são superiores ao
homem. Porém, o matriarcado africano não funciona bem assim. Nesse matriarcado,
as mulheres têm força de comando na sociedade, mas não se inferioriza o homem.
A mulher é o centro porque é dela que vem a vida, é ela quem alimenta a criança
nos primeiros anos de vida, ela é quem pode espalhar essa energia vital para
sociedade. Essa mulher negra africana faz isso quando ela cuida da sua casa,
dos filhos, quando ela educa meninos e meninas, transmitindo conhecimentos. Quando
ela prepara o alimento. Aliás, o alimento é uma forma de se dar e receber a
energia vital. Por tudo isso, a mulher é exaltada e respeitada. O homem possui
suas funções dentro dessa sociedade, não existe um ou outro, o poder não é um
campo de disputa, não há sobreposição de forças. O que existe é um conjunto de
forças que juntas constroem e mantêm uma sociedade.
Essa característica do
matriarcado se manteve durante a diáspora. A manutenção e a transmissão  da cultura e da luta pela liberdade tiveram o
protagonismo da mulher negra, como bem contaram o Império da Tijuca, em 2013 (Negra pérola mulher), a Mangueira, em 2019
(História pra ninar gente grande), e,
em 2020, o Porto da Pedra (O que é que a
baiana tem – do Bonfim à Sapucaí
) e a Viradouro (Viradouro de alma lavada).
As mulheres vindas da África para
cá ajudaram e muito na reorganização social, cultural e econômica dos povos
negros, trouxeram cultura e a guardaram. Até mesmo no sentido do vestuário,
tudo isso foi trazido de lá para cá e foi mantido, adaptado ou transformado.
Essas mulheres foram muitas vezes o esteio das suas famílias. Garantiam a
sobrevivência dos seus, lavando roupas, vendendo seus quitutes. Além disso,
eram mães de santo e davam grandes festas nos seus terreiros de candomblé e
protegiam os primeiros sambistas das perseguições policiais no período
pós-abolição. Em dias de desfiles, os grupos carnavalescos recebiam as bençãos
dessas mulheres; elas garantiam a alimentação dos sambistas e dos desfilantes,
já que eram também as quituteiras que garantiam a sobrevivência das suas
famílias com a venda de alimentos nas ruas. O alimento restaura as forças e por
meio dele também há e se obtém a energia vital.
Migraram do espaço das ruas para
os terreiros de candomblé, migraram para a escola de samba, também, e aí, a
gente começa a enxergar alguns elementos estéticos bem parecidos em cada lugar
de manifestação dessa cultura, assim como o que cada um tem em comum com o
outro. Os elementos estéticos que essas mulheres usavam no período escravocrata
enquanto elas trabalhavam nas ruas são os mesmos elementos que, hoje, usa-se
nos terreiros. O pano da costa e o camisu, a saia rodada com anágua e o torso,
além dos balangandãs e fios de conta de orixás de devoção ancestral são composições
de baiana durante uma apresentação na quadra ou durante o desfile da escola de
samba. A manutenção, adaptação ou transformação desses aspectos é a preservação
da história e da memória do negro no Brasil.
É por isso que há ala das
baianas, obrigatória em todas as escolas de samba. O segmento é uma justa
homenagem à Hilária Batista Almeida, a Tia Ciata. Ela escondia e defendia os
sambistas, promovia festas em seu terreiro, alimentava e benzia os foliões que
brincavam carnaval. Foi uma verdadeira guardiã do samba e do que viriam a ser
as escolas de samba. A ala de baianas não existe à toa; elas são as matriarcas
das escolas de samba, são responsáveis por guardar e espalhar o axé a toda
comunidade, tal como abrem os caminhos para seu povo seguir seu cortejo e
contam a história da comunidade, guardando toda a ancestralidade. Por isso, o
máximo respeito às mães do samba. Todo o cuidado é pouco quando se trata da
fantasia das baianas para os desfiles das escolas de samba.
Mãe do samba. Autor: Osmar Filho

Assim como nas baianas, o
matriarcado africano também está presente nas figuras das porta-bandeiras. As
bandeiras, o símbolo maior da escola, são carregadas com energia ancestral
acumulada na agremiação. Por isso, um dos papéis da porta-bandeira é distribuir
essa energia, o axé, para a comunidade. Toda vez que a porta-bandeira dança e
gira, assim como as baianas, espalha o axé a todos da comunidade. Além disso,
toda a vez que a porta-bandeira ergue o pavilhão, ela assume a função de uma
bússola, apontando o caminho a serem seguido sem esquecer das raízes. Assim,
também cabe a ela cuidar para que a história da agremiação não seja esquecida,
mantendo firmes as raízes, conduzindo a comunidade pelos novos caminhos. A
função de cuidado não é só com o pavilhão, que representa a comunidade, mas
também cuidar das pessoas que compõem a comunidade. Conhecer e participar da
vida da comunidade é essencial na função de porta-bandeira. Assim como se torna
uma bússola quando ergue o pavilhão, a dançarina também é um referencial para a
comunidade, à medida em que as pessoas passam a se identificar com ela.
Com o cuidado, vem também a função
de educar, e assim elas se tornam uma espécie de mãe da comunidade, protegendo
poeticamente os filhos e filhas da comunidade nas barras de suas saias rodadas,
seja nos eventos de ruas, seja nos rituais de comunhão ancestral nos terreiros
ou nas quadras e nos desfiles. Como vemos, o papel da porta-bandeira vai muito
além de só guardar e defender o pavilhão da escola, mas de cuidar e dar
continuidade à sua história.
Quando lançamos um olhar
afrocentrado às escolas de samba, vemos que o matriarcado está lá, preservado
pela figura das mães baianas, pela figura das porta-bandeiras. Com isso, não
podemos deixar de comentar que a despeito de tanta desvalorização sócio-racial,
essas mulheres acham, na celebração de suas culturas pretas africanas e
indígenas, a força para continuar brilhando e fazer suas filhas e seus filhos
brilharem.

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