Por Alisson Valério, Beatriz Freire e Leonardo Antan
A #SérieSambas faz um passeio pelo universo do gênero que embala os desfiles das escolas, desdes os clássicos, passando pelos grandes intérpretes e compositores. Os textos saem sempre as segundas e quintas de outubro. Fique ligado!
Outubro é a época final das esperadas disputas de samba do grupo especial, tempo em que a maioria dos hinos que desfilarão na Sapucaí estão escolhidos e prontos para a gravação do CD. Como bons apaixonados e foliões que contam os dias para a folia, durante o processo é praticamente impossível não ser identificar com aquela ou outra parceria concorrente que laça nossos corações e nem sempre ganham, deixando um gostinho de quero mais. Afinal, não existe em outro lugar do mundo, um festival de música que acontece todo ano e produz milhares de obras em disputa para várias deles serem esquecidos logo depois… Já parou pra pensar?
A sorte é que algumas dessas obras acabam encantando os foliões e permanecendo no imaginário momesco. Quem disse que amor de carnaval acaba se engana, pois o Carnavalize selecionou alguns queridinhos de diversas disputas do Rio e também de São Paulo que perderam a taça mas ganharam um espacinho em nossas vidas. Destacamos que respeitamos ao máximo todas as parcerias que saíram vitoriosas dos anos citados e saudamos os compositores. A intenção é exaltar a nossa variedade e relembrar compositores que escreveram bem seus nomes nas histórias de suas próprias escolas, afinal, todos já são vitoriosos.
Vila Isabel 1974 (Martinho da Vila)
“E o índio cantou
O seu canto de guerra
Não se escravizou
Mas está sumido da face da terra”
Conhecida pelo seu natural engajamento à esquerda, a Vila Isabel de Martinho da Vila sempre deu um jeito de mostrar sua melhor face subversiva durante a ditadura civil militar brasileira. O samba em questão, do próprio Martinho, ficou marcado não só pela qualidade, mas pela sabotagem que sofreu durante o processo de escolha da disputa, já que foi cortado por pressão de censores. Por eles, também, a linhagem do enredo sofreu alteração e teve que exaltar os feitos do regime. Anos depois, Martinho contou a história em seu livro e o cantou em diversas entrevistas televisionadas, inclusive ao apresentador Jô Soares, resgatando assim a obra, com versos fortes e de fato engajados para o auge do limite militar.
Império Serrano 1975 (Acyr Pimentel e Cardoso)
“Um trem de luxo parte
Para exaltar a sua arte
Que encantou Madureira
Mesmo com o palco apagado
Apoteose é o infinito”
Outro samba que se eternizaria fora das avenidas viria de Madureira. O Império Serrano teve uma escolha de samba histórica para escolher a obra que representaria o enredo sobre a vedete Zaquia Jorge, desenvolvido por Fernando Pinto. Entre perdedor e vencedor da disputa, o samba não escolhido se tornaria histórico por ser mais conhecido do grande público que o vencedor. Se a obra vencedora não se tornou um clássico do repertório imperiano e não sobrevivei muito além dos dias de folia, a canção de Acyr Pimentel e Cardoso se tornaria um clássico do samba. Se o samba levado par a Avenida, composto por Avarese, era marcado pela alegria e o ritmo acelerado, a parceria de Acyr Pimentel e Cardoso tinha outras características. Batizado de “Estrela de Madureira”, a canção ganhou o país ao ser gravado por Roberto Ribeiro. E depois regravado por Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, entre outros. Sendo de vez imortalizado no imaginário popular.
Imperatriz 2000 (Parceria de Eduardo Medrado)
“O povo e a Imperatriz / Ao som de cavaco e pandeiro /
Ah! Todo mês de fevereiro / Descobrindo um Brasil mais brasileiro”
Na expectativa da virada para o ano 2000, as escolas de samba definiram como temática comum os 500 anos do descobrimento – ou conquista – do Brasil. A Rainha de Ramos, famosa pelos enredos de linha história que desenvolveu com a professora Rosa Magalhães intitulou seu carnaval de “Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval”. A condução do enredo partiu da ordem do Rei de Portugal à época, Dom Manoel, aos expedicionários responsáveis pela busca de um caminho alternativo que conduzisse à rota das especiarias, tendo como destino final a Índia, mas que conduziu à terra brasilis.
A disputa de samba foi animada, e todo o processo de desenvolvimento do carnaval ganhou registro no documentário “A Imperatriz do Samba”, que acompanhou justamente o processo de composição da parceria de Eduardo Medrado, campeã do inesquecível samba de 1995. A obra do grupo cantava de forma didática, além de bela, os passos dos lusitanos para o desembarque em Porto Seguro. A expectativa da final causou fervor e arrastou uma torcida animada, mas o resultado final consagrou o samba de Marquinhos Lessa e seus companheiros como campeão, que viria a somar no título que a escola conquistaria no carnaval daquele próximo ano. Conhecido até hoje pelos foliões mais antigos da festa, o samba da parceria de Eduardo Medrado é uma verdadeira aula de história, letra e melodia.
Salgueiro 2009 (Parceria de Simas e Mussa)
“Menina, quem foi teu mestre?
Um batuqueiro que arrastava o povo do Salgueiro”
O tambor é conhecido desde os primórdios da humanidade. De troncos ocos aos couros dos animais, o Salgueiro contou a história deste indispensável instrumento para o samba e, por que não?, para a construção cultural e civilizatória de muitas sociedades em seus ritos e festejos. A super parceria de Simas, Edgar Filho, Beto Mussa, Bené do Salgueiro e Gari Sorriso alavancou uma multidão de salgueirenses para cantar em versos um pouco da tradução do que o próprio Luiz Antonio intitula de “gramática dos tambores”, que estabelece diálogos, provoca respostas de corpos e expressa sentimentos. Se por um lado o campeão propôs facilidade e animação de fácil letra, a composição da referida parceria era uma espécie de sofisticação popular, muito lúdico e belissimamente abrilhantado pela interpretação do inesquecível Rixxah. Basta puxar “menina, quem foi teu mestre?” e rapidamente alguém completará a letra se ao universo dos bambas pertencer.
Salgueiro 2016 (Parceira de Antônio Gonzaga)
“Doi, doi, doi, doi, doi
Um amor faz sofrer
Dois amor faz chorar”
As disputas no Salgueiro não deixam faltar emoção, ainda mais quando o bom enredo inspira os compositores. Em 2016, a escola desenvolveu “A Ópera dos Malandros”, mais uma das propostas do departamento cultural da escola que homenageou o Rei da Ginga e toda a sua relação com a vida, com as ruas e, claro, com o samba. O enredo imprimiu-se de forma muito identificada com a escola e, atendendo à máxima de que até parado o Salgueiro é favorita, a agremiação foi uma das mais comentadas durante todo o pré-carnaval. Reflexo esse de uma disputa que rendeu ótima safra e boa aderência da comunidade, como aconteceu com a obra da turma de Xande de Pilares. Foi um rapaz jovem, que chegou de mansinho na ala pouco tempo antes, mas muito apaixonado pelo Salgueiro, que mostrou-se grande e surpreendeu positivamente. A parceria de Antônio Gonzaga trazia o famoso ponto da pomba-gira e o samba de letra muito fácil e pra cima tomou conta do público e virou pedida certa nas rodas de samba, chegando a final com grande favoritismo, mas acabou sendo derrotado pela parceria liderada por Marcelo Motta, que eternizou a expressão “malando batuqueiro”.
Tom Maior 2018 (Parceira de Elymar Santos)
“Brilha a minha coroa na Tom Maior
Dois pavilhões num só
Em verso e prosa eis minha vida
Carolina Josefa Leopoldina”
Quando a Tom Maior anunciou o seu enredo sobre as duas Imperatrizes do Brasil gerou-se uma expectativa perante a sua safra de sambas e também sobre quem iria colocar samba na disputa. Quando surgiu a parceria de Elymar Santos (compositor campeão e torcedor da Imperatriz) com Samir Trindade (multi-campeão na Beija-Flor e na Portela), o interesse foi instantâneo e não tinha como ser diferente. O samba foi interpretado por Preto Joia, interprete que tem a sua história no carnaval marcada pela sua passagem pela Imperatriz Leopoldinense, formando uma combinação imbatível e emocionante. A obra contou com uma letra muito inspirada e bastante poética, retratando a história da Leopoldina com louvor e a mesclando com uma bela homenagem a Imperatriz Leopoldinense. A melodia apresentou uma levada deliciosa e que nos levava para os desfiles dos anos 2000 e 1990, e talvez tenha sido a sua falta de adequação a um padrão incomum do carnaval paulistano que o fez não vencer a disputa, infelizmente, mas como a letra do samba diz que “eu sei que o tempo passou, mas a história ficou”, assim como essa grande obra.
Porto da Pedra 2019 (Parceria de Altay Velloso e PC Feital)
“Meu Porto da Pedra
O luar que beija esse chão
Ilumina o ceba de cá
Vem ver, meu irmão
Antonio Pitanga chorar
De tanta emoção
A São Gonçalo toda a minha gratidão”
Esse samba mal perdeu e já deixou saudades. Queridinha de São Gonçalo, há alguns carnavais a Porto da Pedra vinha trazendo enredos nostálgicos e populares ao grande público. Mudando a pegada, em 2019 a escola fará uma grande homenagem em vida ao ator Antônio Pitanga na Sapucaí. “Um negro em movimento”, nome do enredo, proporcionou uma disputa quente na escola do tigre e a parceria badalada de Altay Velloso e PC Feital encantou a todos pela beleza do samba, como a dupla já vinha fazendo há algum tempo na Mocidade Independente de Padre Miguel e também na Unidos do Viradouro, em 2016. Impulsionado pelo “disse-me-disse” dos grupos de carnaval e das redes sociais, o samba ganhou destaque rapidamente e também a torcida dos internautas, mas não foi suficiente para barrar a força dos componentes da agremiação, que abraçaram o samba campeão, da parceria de Bira. E como às vezes variar é preciso, curtiremos muito o hino oficial da Porto mas não esqueceremos tão cedo desta obra que vai deixar aquela saudade, né? Saravá pra tanto amor!
Entre centenas de obras produzidas anualmente pelos compositores das nossas escolas de samba, vale relembrar algumas canções que se eternizaram para além das disputas. Não que as obras selecionadas não tenham sido justas, a proposta da lista não é questionar o resultado das disputadas citadas, nem desvalorizar os sambas vencedores, mas apenas relembrar grandes sambas que merecem serem ouvidos de novo e permanecer no universo carnavalesco.