#SérieEnredos: Como nasce um enredo? A arte da narrativa por João Gustavo Melo

Por Leonardo Antan
O enredo é o pontapé inicial para um desfile. Seu desenvolvimento afeta diversos outros setores no processo de uma agremiação; faz surgir o samba, a os elementos visuais e permeia todos os quesitos como um todo. Com o crescimento do espetáculo, em diversos sentidos, a necessidade do surgimento de um profissional específico para elaborar as narrativas carnavalescas se tornou uma demanda das últimas décadas. 
A função do chamado “enredista” não é absolutamente comum no ambiente das escolas, e ainda são pontuais os casos de carnavalescos que recorrem a esses profissionais. Além disso, são muitas as dúvidas dos apaixonados pela festa sobre essa temática. Como funciona as etapas de criação de um enredo? Como ele chega até nós – seja no formato da sinopse, seja traduzido na parte plástica? Motivado por essa indagação, o Carnavalize ouviu um especialista na área, que há mais de quinze anos assina enredos que já passaram pelo grupo especial e de acesso do Rio e de São Paulo.
João Gustavo Melo, jornalista e doutorando em Artes pela UERJ, foi convidado para uma conversa sobre a habilidade narrativa das escolas de samba. Vem com a gente para descobrir como foi esse papo no penúltimo texto da #SérieEnredos! 
A imagem de um carnavalesco autossuficiente e dono de todo o seu processo criativo ainda permanece firme no imaginário coletivo, mesmo que as diversas funções atribuídas aos grandes artistas da festa estejam se dissolvendo ao longo dos anos, por conta da demanda alta dessa jornada. Nesse sentido, o enredista seria mais um profissional possível nessa descentralização, assim como figurinistas ou projetistas. 
A diferenciação do processo criativo entre o enredista e o carnavalesco precisa ser nítida para compreender as etapas de construção de um desfile. Primeiramente, é preciso entender a área de atuação de cada um, e, sobre isso, Gustavo Melo cristalino: “Na verdade, é um trabalho auxiliar à pesquisa do carnavalesco. Não é algo uniforme. Cada um desses artistas tem competências específicas e, por isso, demandas específicas, o que existe em comum é que o trabalho do pesquisador deve ser de respeito à criação visual do carnavalesco“. Para ele, o mais importante é uma sintonia e uma afinidade na criação do processo: “Os textos de sinopse e das defesas têm que amarrar os caminhos visuais traçados no enredo, criando um discurso e dando um tom ao trabalho dos artistas. Estamos a serviço deles.”
A importância desse diálogo entre diferentes funções acaba sendo rica para toda formação de um carnaval, pois a criação coletiva aumenta as possibilidades artísticas, tornando o resultado final mais rico e plural. “Acredito que a importância do enredista é, em alguns momentos, tirar o carnavalesco da solidão criativa. É fazer a cabeça do artista ferver ainda mais. É puxar deles o melhor“, defende Melo, que ressalta a mudança do resultado quando há um profissional da narrativa envolvido na geração do desenvolvimento do tema: “Apesar da relação de idas e vindas, a importância desses outros criadores de enredo se refletiram como um todo na produção dos carnavalescos, interferindo diretamente na qualidade de alguns carnavais. Toda a relação é de trocas.”
Nesse ciclo, é importante diferenciar que o papel de autor da sinopse e do desenvolvimento do tema não está necessariamente ligado com o surgimento da ideia original. Toda a trajetória para o desenvolvimento da narrativa é muito coletiva, atravessando não só os profissionais de criação, já que também pode contar com os dirigentes e outras pessoas envolvidas. “A questão da autoria é algo muito delicado. Nesse processo de pesquisa, naturalmente vão surgindo ideias que são levadas ao carnavalesco. Mas não é uma trilha linear. Alguns enredos surgem da vontade do presidente, da possibilidade de patrocínios, da própria escolha do carnavalesco“, alerta o jornalista.
O trabalho do enredista em meio a essas opiniões divergentes é ser uma espécie de guia: “O nosso trabalho é dar um nó literário e conceitual nessas histórias. Mas é fundamental ter em mente que, de uma forma ou de outra, os caminhos serão traçados pelo carnavalesco, que é o diretor geral do desfile“, exemplifica. No carnaval, sempre tem algum diretor querendo dar pitaco na criação, e vários sentem a responsabilidade de ajudar de alguma forma. Mesmo com boa intenção, isso nem sempre é positivo: “O pior dos mundos é quando alguém de fora do universo criativo tenta mudar algo do texto simplesmente por mudar. A sinopse é uma estrutura. Muitas vezes se você retira, inclui, enfim, modifica algo, a obra desaba. Essa tensão é muito séria e também presente na preparação do carnaval. Mas faz parte do processo criativo“, ameniza o enredista.

O enredo de 2003 sobre o cinquentenário do Salgueiro teve participação de Gustavo.

Cearense, formado em Jornalismo e atualmente doutorando em Artes, João Gustavo Melo já trabalhou para artistas consagrados da folia brasileira, como Renato Lage e Mauro Quintaes. A história que o fez chegar na função é inusitada: “Foi um acidente de percurso (risos). Nasceu de uma ajuda ao Mauro Quintaes no enredo sobre aviação, no Salgueiro, em 2002, com a equipe da diretoria cultural do Salgueiro. O Mauro pediu uma opinião sobre o último setor da escola, nós demos e ele gostou da sugestão. A partir daí eu passei a trabalhar com ele na pesquisa e lá se vão 18 anos.”
A sua atuação mais marcante foi no Departamento Cultural do Salgueiro, onde participou na idealização de diversos grandes enredos que a escola apresentou na longa estadia do casal Lage na Academia. Enredos campeões do Estandarte de Ouro, como “Ópera dos Malandros”, tiveram a interferência criativa preciosa de Gustavo: “No Salgueiro, esse trabalho foi feito com Renato Lage, Márcia Lage e com Eduardo Pinto e Paulo César Barros, da diretoria cultural. Essa parceria rendeu enredos muito bacanas com os quais a escola de identificava. De uma certa maneira, contribuímos para o carnaval da escola em mais de 10 enredos.”
No entanto, é com o carnavalesco Mauro Quintaes sua parceria mais marcante. Desde o primeiro contato entre os dois na vermelho e branco da Tijuca, eles viraram parceiros em diversos trabalhos entre o Rio e São Paulo. Na passagem do carnavalesco por Viradouro, Mocidade, São Clemente, Curicica, Tom Maior e Peruche, foi Gustavo o responsável por desenvolver a narrativa de enredos marcantes como Bibi Ferreira e “Choque de ordem na folia”. “Só não trabalhamos juntos  na Unidos da Tijuca, que tinha a própria equipe de pesquisa“, conta o jornalista. 
A parceria Quintaes e Gustavo se iniciou no Salgueiro e seguiu pela Viradouro. (Foto do desfile de 2004, por Widger Frota)
A intimidade e longa trajetória que Quintaes e Gustavo têm juntos já estabelece os limites de atuação de cada artista. É comum a dúvida entre os menos iniciados em até que ponto exatamente delimita a literatura do enredo e sua transformação em aspecto plástico. Precisa ser uma sinergia, com muita conversa e troca de conhecimentos dos envolvidos. Para o ex-diretor cultural, trata-se de um relação que precisa ficar bem estabelecida: “A primeira coisa a pensar nesse processo é: o carnavalesco é o nosso cliente. O artista é uma marca à qual temos que atender com toda dedicação. Se ele for bem, o pesquisador, obviamente, também irá.”. 
Evidentemente, às vezes nem tudo fica tão definido assim e o processos podem se tocar, existindo sempre respeito entre as partes. “Alguns carnavalescos  depositam em nós a confiança de poder sugerir elementos visuais. Outros preferem desenvolver por si só e com sua equipe de criação essa parte. Mas muitas vezes o texto da sinopse tem tantos elementos visuais presentes, que inspiram não só o compositor, mas também o carnavalesco. O visual também mora nas palavras“, analisa. 
Uma história que ilustra bem isso envolve uma das imagens mais marcantes do carnaval campeão do Salgueiro, em 2009: “No enredo do Tambor, por exemplo, um poema que dizia que a batida dos elementos percussivos na pré-história era o grito do animal sacrificado nas caçadas. Esse texto deu a ideia para o carnavalesco Renato Lage criar a segunda alegoria da escola, que era de uma força estética impressionante. Quando há essa conexão entre o carnavalesco e o pesquisador, é gol certo“, afirma Melo. O caso do enredo Tambor também demonstra as diferentes fontes de inspiração para o surgimento de um tema: a ideia original de uma narrativa sobre os instrumentos de percussão nasceu de uma sugestão de Haroldo Costa, depois desenvolvida pela diretoria da agremiação. 
A marcante alegoria do carnaval salgueirense de  2009.
Esse alinhamento entre os textos e as imagens do desfile é fundamental para o sucesso da narrativa na hora do desfile. Gustavo explica que às vezes é mais ousado, arriscando em sugestões que possibilitam um salto pro artista visual, mas que ao mesmo tempo não o aprisionem, tentando deixar um  espaço livre para a criação: “Eu procuro trabalhar com o carnavalesco uma forma de criar imagens poéticas para o enredo. É uma estratégia arriscada. Pode não dar certo. Mas na maioria das vezes a escrita de sinopses mais visuais tem se refletido em sambas condizentes com o enredo proposto.
A respeito do processo da transformação do assunto a ser desfilado na linguagem não-verbal das escolas de samba, como alegorias e fantasias, tudo pode variar caso a caso. Gustavo explica que a escolha de figuras relacionadas com o tema é uma fase crucial de todo o processo: “Essa definição da ordem dos elementos do desfile é fundamental para a composição de uma boa história a ser levada para a avenida.” Ainda, ele lembra que “na fase de criação do enredo, o nosso trabalho também é de sugerir mudança de ordem de elementos para que essa sequência dramática seja respeitada. Uma mudança nesse roteiro pode atrapalhar o compositor na hora da elaboração do samba e também confundir o julgador. Por isso em alguns casos podemos sugerir alas ou mesmo fazer o roteiro, mas com todo o respeito à criação do carnavalesco.”
Um aspecto menos feliz do ciclo de realização do enredo é a pouca valorização do profissional. Apesar da importância que ele assume em algumas escolas, a visibilidade do cargo e sua consequente remuneração ainda não são satisfatórias, assim como ocorre com outras funções da festa. Os desfiles, ao longo de sua história, são marcados por esbarrarem na barreira da profissionalização em diferentes cargos, e com um enredista não é diferente: “Pode parecer contraditório – e é – mas, no mundo do Carnaval, o que não é remunerado é desvalorizado. Ninguém respeita quem não ganha. O processo de construção do enredo é algo muito complicado. Um xadrez jogado coletivamente com o carnavalesco, com a direção da escola, com os compositores, enfim… É um trabalho que consome muito, porque não há um um ‘expediente’, você não se desliga daquela ideia nenhum minuto, nem na hora de dormir“, estabelece o jornalista. 
Gustavo reafirma não só as dificuldades desse empreitada, mas também a cobrança em cima de um quesito tão importante: “Isso é um trabalho que começa lá atrás, na solidão do texto. Portanto, seria justa essa remuneração, uma espécie de indenização por você emprestar sua alma e repertório criativo num projeto que muitas vezes só beneficia algumas pouquíssimas pessoas.“, diz se referindo aos patrocinadores beneficiados. 
Ele defende ainda que “os pesquisadores e carnavalescos ganhem um  percentual a mais por enredos patrocinados. Muitas vezes se transforma uma ideia tosca em algo mais palatável.” E continua: “A defesa de quesito, por exemplo, pode destruir ou salvar uma nota de enredo. É muita responsabilidade, um trabalho artesanal que nos consome durante todo o processo de execução do desfile, junto ao carnavalesco, em cuja cabeça temos que morar durante um tempo até conhecer todo seu estilo e poder atender-lhe da melhor forma possível.”
A longínqua parceria entre Mauro e Gustavo segue para o ano que vem, em SP.
Para 2019, João Gustavo está envolvido em projetos no Rio e São Paulo. Dá continuidade com a grande parceira com Mauro Quintaes na Dragões da Real, onde desenvolvem o enredo “A invenção do tempo. Uma odisseia em 65 minutos”. Pelo Rio, é responsável pela sugestão que gerou o enredo “Salvador da Pátria”, da Paraíso do Tuiuti, e também assinará a homenagem ao dramaturgo Dias Gomes, na Unidos de Padre Miguel, inaugurando uma parceira com João Vitor Araújo. 
Ser um enredista é estar responsável por uma das artes mais cativantes e relevantes de uma escola de samba: a capacidade de contar histórias e mexer com o público por meio delas. Atualmente, a função das agremiações em fazer refletir e emocionar as arquibancadas narrando histórias que dialoguem com nossa história e cultura é uma das possíveis salvações para que o país se conheça, reconheça e resista no que possui de melhor. Por isso, que contemos mais histórias de negros, malandros, índios e artistas, revelando as entranhas da arte mais brasileira de todas: o carnaval.

Comente o que achou:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Veja mais

Posts Relacionados

Projeto “Um carnaval para Maria Quitéria” valoriza a folia e conta com ilustrações de carnavalescos renomados

Projeto “Um carnaval para Maria Quitéria” valoriza a folia e conta com ilustrações de carnavalescos renomados

 A Jac Produções lança o projeto "Um carnaval para Maria Quitéria", que desenvolveu um estudo de desfile de escola de samba em homenagem a essa heroína da nossa independência. O

O aroma que vem da Glória: a alegria da MUG ao sabor de um samba inesquecível

O aroma que vem da Glória: a alegria da MUG ao sabor de um samba inesquecível

Arte de Julianna LemosPor Adriano PrexedesSejam bem-vindos de novo! Desta vez, nossa aventura sambística nos levará para outro destino: vamos até o Espírito Santo para conhecer a trajetória de uma

#Colablize: A infraestrutura do carnaval carioca hoje – o que precisa ser feito

#Colablize: A infraestrutura do carnaval carioca hoje – o que precisa ser feito

    Arte de Lucas MonteiroPor Felipe CamargoJá se tornou algo que os amantes do Carnaval carioca debatem e mencionam todos os anos. Com um misto de esperança, medo e reclamação,

A locomotiva azul e rosa: São Paulo nos trilhos do sucesso da Rosas de Ouro

A locomotiva azul e rosa: São Paulo nos trilhos do sucesso da Rosas de Ouro

Arte de Jéssica BarbosaPor Adriano PrexedesAtenção! Vamos embarcar numa viagem carnavalesca pela cidade que nunca para. Relembraremos uma São Paulo que, durante a folia, se vestia de cores vibrantes. De

ROSA X LEANDRO: Quando os carnavalescos ocupam as galerias de arte

ROSA X LEANDRO: Quando os carnavalescos ocupam as galerias de arte

 Arte por Lucas MonteiroTexto: Débora Moraes Rosa Magalhães e Leandro Vieira são os carnavalescos que mais tiveram seus trabalhos exibidos em exposições em instituições de arte. Além de colecionarem esse título,

A Lição da Mancha Verde: uma passagem pela história de persistência da escola e por um de seus desfiles históricos

A Lição da Mancha Verde: uma passagem pela história de persistência da escola e por um de seus desfiles históricos

 Arte de Lucas XavierPor Adriano PrexedesO ano era 2012, considerado por muitos um dos maiores carnavais da história do Sambódromo do Anhembi. A folia, geralmente, é lembrada pelo grande público

VISITE SAL60!

SOBRE NÓS

Somos um projeto multiplataforma que busca valorizar o carnaval e as escolas de samba resgatando sua história e seus grandes personagens. Atuamos não só na internet e nas redes sociais, mas na produção de eventos, exposições e produtos que valorizem nosso maior evento artístico-cultural.

SIGA A GENTE

DESFILE DAS CAMPEÃS

COLUNAS/SÉRIES