Quando o verde se derrama em rosa pela avenida, o céu se agita, o morro mostra seu samba como Ilú a repicar. Os ventos se assanham no girar da mãe, conduzindo os filhos de Mangueira a desfilar. Por nós, Oyá! Por nós, Oyá!
Ela que veio de longe. Ela que veio do vento, guerreando contra todo sofrimento, de quem um dia foi obrigado a traçar um novo destino além-mar. Bantu, Haussá, Gegê, Iorubá…tantas Áfricas que na Bahia vieram a aportar.
Na alma, carregaram a bagagem de seus ancestrais; no corpo estamparam a riqueza de seus rituais. No ecoar de suas vozes, fizeram-se mais fortes, nos “batuques” e seus toques adornavam outros nortes. Na terra de todos os santos, tantas Áfricas se recriaram pelo encanto de seus cortejos, pelas histórias de seus cantos. Como bandeira de luta, como conquista das ruas, por liberdade em ser, por respeito às suas. Tudo isso através dos dias onde a Bahia é mais Bahia e ser preto é sinônimo de alegria.
Hoje, mais uma vez, iaiá mandou ir à Bahia, em tempos em que a Lei Áurea tão sonhada não havia sido assinada, mesmo que a liberdade, posteriormente, ainda fosse ilusão. Negros iam as ruas em dia de folia, desafiando toda perseguição, entoando cantares nativos, contando a saga daqueles que, infelizmente, sucumbiram pela escravidão.
Faziam festa para a sua preta rainha em forma de cucumbis, trazendo, a frente, um cortejo de rotins, afugentando todo mal que pudesse estar por ali. O arauto negro anunciava a chegada da procissão, cavalarias faziam guarda e “barbeiros” davam o ritmo com xequerês, caxambus e a marcação. Fogos dos bengalas explodiam no céu, quando, de repente, o filho da rainha morria em meio a exibição. Ela ordena ao um feiticeiro que seu filho reviva. Na sua dança mágica, o menino ganha vida, ela lhe entrega tesouros em missangas para que o cortejo prossiga, o sagrado demonstra seu poder e a corte se unifica.
O “charme” da liberdade no papel, posteriormente, se garantia, porém a negritude estava longe de alcançar direitos e cidadania. Pelas ruas de Salvador se viam ex-cativos marginalizados, perseguidos até pela forma em que se vestiam. Era proibido “ser” africano na Bahia, mas, em dias de folia, a fantasia era ousada, com muita sabedoria se esquivavam da chibata da polícia que insistia em esquecer em que tempo estava. Seguindo a tradição preta de cortejos, se organizaram em Clubes Negros, a disputar as ruas com a burguesia, em forma de arte, protestavam contra os açoites e a serventia. As “Embaixadas” africanas impressionavam pelo luxo e incomodavam até que um dia foram vetadas…
Mesmo perseguidos, os préstitos viraram formas de sobrevivência e luta por liberdade. Atraia-se, daquela forma, os olhares da imprensa e da comunidade e, na ótica do opressor, uma ignorante sensação de “civilidade”, ao acharem possível, desta maneira, controlar a força negra da baianidade. Mas nada era mais intenso que a união do gueto, a rua e a fé, andando a pé pela cidade. Do terreiro do Engenho Velho, o céu dos orixás intervia ao unir a arte, a religiosidade e a fantasia, levando os livres toques de ijexá pelas ladeiras e avenidas. Preparava-se o padê para que Exu mensageiro fosse ligeiro abrir os caminhos para passar o Afoxé. Nessa cidade em que todo mundo é d’ Oxum, nas ruas rodam candomblés, conduzidos e protegidos pela Yalotim, onde o santo é representado, esculpido pelo talhar do Iroko. A África, desta vez, se recria pelas mãos do sagrado.
A dor que pariu Salvador, pariu seu carnaval e promoveu a explosão de grupos pretos que tomaram conta dessas vias de clave e Sol com alegria, pois ela é a revolução. A realidade dura dos guetos virava letra de canções, incorporando e renovando a herança rítmica das negras procissões. Corpos e corpas se tornaram protesto, estampando seu manifesto no vestir e no dançar. Os blocos afros reconstruíram a identidade de um povo, que passa a ter ainda mais orgulho de sair na folia a cantar, de fazer a terra tremer, pois o vulcão da Bahia é tambor de Ilê Aiyê. É pulsação de Muzenza, de Olodum e Badauê. É o Didá e dança de Malê Debalê. São as mais belas das belas deusas do ébano girando e reinando pela avenida, ao toque da batida que vira sinônimo da própria vida. Se adornam no laço afro que amarra o legado de seus ancestrais, dando cor, energia e vigor aos carnavais. Que bloco é esse, negão?
Salvador se agita no negro toque do agogô, nas quebradas com a pele pintada, nas estampas de faraós, na pipoca do trio, nos tambores do Pelô. Na mistura do Timbalada, dos sambas de roda, reggae e tantos sons que dão o tom à baianidade Nagô. Nas vozes das pérolas negras que conduzem os cortejos sem submissão de raça, sem lágrima, nem dor. O amor do povo que se lava com a força do axé, na fé do Bonfim, nos cantos do candomblé. Axé que canta e amarra em seus fios de conta a importância de ser chão africano. Axé da negrada que passa o astral da avenida todo ano. Axé que mostra que a cor dessa cidade é a mesma de Mangueira, com a força do vento, expressão da liberdade, fazendo o negro respirar felicidade.
Texto: Guilherme Estevão e Annik Salmon
Pesquisa: Guilherme Estevão, Annik Salmon e Mauro Cordeiro.