Coluna Carnavápolis: “O negro é sensacional” – A força dos “enredos-afro”




Olá amantes de carnaval! Não é que ganhamos uma cidade só
nossa? A “Carnavápolis” vai ser um espaço semanal com textos
mais históricos, curiosidades e fatos da nossa folia. Em breve, teremos outras
colunas aqui no nosso site, então fiquem atentos. Sem mais delongas, vamos
ao que interessa: hoje faremos um panorama sobre os chamados “enredos afros”.
Crescemos ouvindo que as escolas de samba são um produto
legitimamente da cultura africana, mas não é bem assim. Assim como tudo neste
país, as agremiações são produto de uma série de tensões culturais e muita
“mistura”, herdando elementos europeus, ameríndios e africanos,
obviamente. Outro engano é achar que os “enredos afros” estão
presente desde os primeiros desfiles, na década de 1930. 

Nos primórdios, não havia a ideia de enredo e uma unidade entre a plástica
e o samba como conhecemos hoje. A escola podia muito bem desfilar com roupas da
corte francesa, ter o enredo sobre o folclore da Bahia e cantar em seus versos
uma dor de cotovelo. Um verdadeiro samba do crioulo doido.
O que nos interessa é que as escolas surgem numa tentativa
de levar o samba, então ritmo marginalizado, para o asfalto e fazê-lo
reconhecido. Para ter essa aceitação, os temas cantados acabavam fazendo
alusões a temas patrióticos, bem ao gosto do governo que buscava firmar uma
identidade nacional. (Sabe “um tal” de Getúlio Vargas?) Buscando
serem reconhecidos também pela intelectualidade modernista da época, os grupos
negros e dos morros passaram a cantar a história oficial dos personagens
brancos, como Princesa Isabel, Tiradentes, Dom João e tantos outros.

A mudança desse cenário, se deve ao pioneirismo de uma
escola de samba que tem o seu DNA mais negro do que qualquer outra: o
Acadêmicos do Salgueiro, que na década de 1950 apresentou dois enredos com
pegada afro. Em 1957, “Navio Negreiro” e dois anos depois,
“Viagens Pitorescas do Brasil”. Este conquistou um certo professor
das Escolas de Belas Artes, que junto com a agremiação mudaria de vez a
história dos desfiles.


Quando desembarcou no Salgueiro na virada da década de 1960,
Fernando Pamplona, influenciado por filmes de Hollywood e a independência de
países africanos, proporia o que podemos considerar o primeiro enredo
verdadeiramente “afro”: o então desconhecido “Quilombo dos Palmares” que traria
como herói o também desconhecido, na época, Zumbi dos Palmares.


Pamplona não estaria sozinho nesse momento importante para a
história do carnaval, ele traria consigo outros nomes que se tornariam
imortais. Seu principal parceiro, o também cenógrafo Arlindo Rodrigues, o então
bailarino Joãosinho Trinta e suas alunas Maria Augusta, Lícia Lacerda e Rosa
Magalhães. Junto, o grupo faria uma verdadeira revolução, não só na estética da
festa mas também nos enredos. O que vale uma coluna dedicada apenas ao
assunto. O Salgueiro trouxe uma série de histórias negras e de personagens
marginais estão anônimos. Como a célebre Xica da Silva, Chico Rei, Aleijadinho.
Seria aí pautada a África que o carnaval “criou” e até hoje desfila na Sapucaí.
Inspirado em filmes que faziam sucesso na época, a “África de Pamplona” abusava
do vermelho e branco e de elementos geométricos, elementos ainda usados e
reusados.
E se hoje num bom samba afro não pode faltar uma louvação
aos orixás. Nem passava pela cabeça da época tocar no assunto religiosidade
diretamente. Os primeiros sambas com citação a uma dessas divindades só
aconteceria em 1966, trinta anos depois dos primeiros desfiles, quando o
Império Serrano e a São Clemente citariam naquele ano Yemanjá em seus enredos
sobre a Bahia. No ano seguinte, 1967, se cantaria a primeira louvação a um
orixá, no samba da Unidos dos Lucas. Com a revolução salgueirense a pleno vapor
e os bons resultados da escola, o discurso da negritude foi aos poucos
incorporado e sendo usado para valorizar a face negra dos desfiles. Finalmente.
Em 1978, aconteceria um caso curioso. Duas escolas
apresentariam o mesmo “enredo afro” sobre a criação do mundo com perspectiva
diferentes. Pamplona, de volta ao Salgueiro após um pequeno hiato, desenvolveria
“Do Yorubá a luz, a aurora dos Deuses” e seu discípulo Joãosinho Trinta, então
bi-campeão na antes inexpressiva Beija-Flor cantaria o “A criação do mundo na
tradição nagô”. A escola de Nilópolis sairia campeã da disputa, consolidando-se
a nova potência do carnaval.


Dez
anos depois, seriam comemorado os 100 anos da abolição da escravidão.
Destacando-se, três desfiles com visões absolutamente divergentes. A Vila
Isabel faturava seu primeiro título com uma grande comemoração e louvor a
negritude. “Kizomba, a festa da Raça” foi um espetáculo de estética rústica e
simples mas com a força de um samba num espetáculo raramente visto na Sapucaí.
A vice Mangueira, ousou contestar os livros de história, algo impensável
décadas antes, e entrou na Sapucaí ecoando a pergunta título do seu enredo:
“Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?”. Por fim, a imponente Beija-Flor
de Joãosinho Trinta não abriu mão do luxo e da suntuosidade para contar a
história do negro desde o antigo Egito, no criticado “Sou negro, do Egito a
Liberdade”.
  

Na década de 1990, a temática ficaria adormecida nas grandes
escolas, mas uma novata recém chegada ao grupo especial se consolidaria com a
temática africana naquele momento. A Grande Rio nos brindou com grandes obras
como “Águas para um rei negro”, em 1992, e o “Os santos que a África não viu”,
em 1994.

Logo no início do século XXI, a Beija-Flor restabeleceria
sua ligação com o continente negro se consagrando com uma protagonista do tema
com “A saga de Agotime: Maria Mineira Naê”, um dos melhores desfiles afro de
todos os tempos. Tornando a África amuleto da sorte e forte fator de
identificação da escola nilopolitana. Gerando grandes sambas e desfiles
inesquecíveis como nos anos de 2007 e 2015, ambos campeões.
Na década atual, os enredos afros seriam mais uma vez
ressignificados. Já considerados então a mais pura “essência do carnaval” e
garantia de um bom samba para todo mundo “incorporar” no terreiro. Surgiriam
abordagens sem critério ou reflexão genuína, repetindo sempre os mesmos
elementos e soluções estéticas, com as mesmas estampas geométricas de Pamplona
que se juntariam agora com palhas e matérias rústicos.


Na Série A, a Cubango se tornaria um exemplo dessa
tendência, apresentando enredos afros em sequência. Novidades para o tema só
viriam em 2012, com a sempre inovadora e versátil Rosa Magalhães que daria uma
nova roupagem a sua Angola na Vila Isabel e na tentativa de uma “África Pop”
assinada por Cahê Rodrigues em 2015, na Imperatriz.
O comentarista e ex-carnavalesco Luiz Fernando Reis que já
brindou o público com um grande desfile desta temática no Salgueiro em 1989 é
adepto de uma fala polêmica ao questionar a validade desses “temas
afro” no carnaval contemporâneo. Dizendo que hoje eles são usados a
exaustão para gerar um bom samba e um trabalho plástico previsível. Visão que
em parte tem de ser debatida. De fato, os enredos afros são usados sem
serem repensados, apenas uma simples repetição de uma suposta estética africana
que foi construída em décadas de desfiles. 

Se hoje consideramos a temática afro a mais genuína
expressão carnavalesca, devemos tomar cuidado ao repetir discursos criados que
podem ser facilmente contestados. A face negra é, com certeza, a mais
importante da nossa folia, mas não a única. As escolas de samba sempre foram
negociadores e como diz muito bem, o historiador Luiz Antônio Simas apesar de
cantarem os heróis “brancos”, em seu surgimento, as escolas de samba
marcavam sua presença negra através da gramática dos tambores e de seu
batuque inconfundível.
Leonardo Antan é folião frequentador do Sambódromo desde criança e tem verdadeiro amor pelas escolas de sambas. Trabalha, estuda e vive o mundo de confetes e serpentinas durante o ano inteiro. Atualmente, cursa História da Arte na UERJ onde pesquisa também sobre o tema.

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