Unidos de Padre Miguel: “Ossain, o poder da cura”


Entardece. Eye – pássaro alado – cruza os céus de todos os lugares quase a completar seu percurso. Cumpre mais uma vez e sempre a viagem em que teus olhos se lançam sobre os cantos do mundo. 
Inclina sua crista dourada, desce dos céus, cruza o pórtico selvagem de teu santuário virgem e, reverente, pousa majestoso no centro dos sete ramos de teu opere. É aí que se dispõe cordialmente a responder à tua inquirição silenciosa. Senhor do equilíbrio, lanças teu olhar pássaro sobre a desarmonia do mundo e recolhe na percepção de tua alma-floresta tudo aquilo que te relata o tempo presente: loucura, obsessão, males do corpo e da alma. Misérias. Mazelas. Agonias e Aflições. Descompasso. Conhecendo a desordem, contudo, tu és silêncio e estabilidade… A terra, justo por tua resistência, confiou-te o sumo da regeneração. 
Foi Orunmilaia – enviado divino de Olodumaré para o auxílio dos homens – quem reconheceu tua onstinação e sabedoria quando, ordenada a ceifa da mata, te recusaste a arrancar as ervas e as folhas, que até hoje traduzem axé. Ensinaste ao Deus adivinho as maravilhas das folhas, erguendo-te de escravo a apoiador, curandeiro e conselheiro inseparável. Olodumaré te presenteou com o saber do âmago das Jinsaba, por teu empenho sincero no trabalho de restauração da saúde e das energias. 
Presença mágica. Filho liberto da terra. Orixá olodê das folhas que crescem nos lugares em que haja a liberdade. Avesso da poluição e do artificial. Agué dos jêjes. Katendê dos Bantos. Ossaim dos Yorubás ou Ossanha nas roças brasileiras de Candomblé e em nossos terreiros de umbanda. Presença mítica e primordial do panteão lendário do Dahomé, terra de serpente sagrada. Filho de Nanâ e Oxalá, gêmeo de tua sagrada irmã Ewá, irmão de Oxumaré, o deus do movimento e de Omulu, abnegado médico com quem divide o axé sobre a saúde física e sobre as dádivas da terra.
Silêncio que preserva o segredo. Austeridade que tudo descontamina. A impetuosidade de Xangô quis privar-te da exclusividade de teu poder sagrado. Sob os ventos furiosos de Yansã, igbá-osanyin – tua cabaça que guardava todas as folhas – foi derrubada do galho de iroko em que sempre a descansava. Espalhadas as folhas ao vento, foram apanhadas aos punhados por cada um dos orixás… Em momento algum te preocupaste com a perde de teus poderes. Teu grito diante do fato, ewe ó! ewe ó! revelou tua real preocupação: As folhas! As folhas! Todas elas agora espalhadas e repartidas entre os demais orixás. Não te afligiste, porém, com a distribuição delas… Compreendeste que ao reparti-las cumpri com a tarefa de reconhecer que os diferentes são complementares. Detentores das folhas recolhidas, os orixás, contudo, jamais foram capazes de tua profundidade. Continuas cuidador único do jardim de Orunmilaia. O axé de cada folha, seu nome e sua encantaria, ainda hoje só tu podes despertar. Nada na seiva verde das plantas acorda sem tuas palavras de ordem e sem tua ciência acerca de suas utilidades. 
Detentor do axé que nem mesmo aos orixás pode faltar. Kosi ewé, kosi Òrisà!
Recolhe teu pássaro mágico com as notícias de nossas feridas e enfermidades, tu que és sempre evocado quando se instaura a desordem! Professor de Ifá na arte de curar, orixá da convalescença! 
Recupera-nos no corpo e no espírito!
Nosso desfile é reza/celebração. A Unidos é tua Alyaba Ewe, responsável, nesse desfile “toque”, por cantar em seu nome a encantaria que esperta as folhas. 
Licença, encantado da floresta! A Unidos hoje é teu Babá Olosayin, pedindo autorização para cruzar o portal onde se colhem as ervas. Viemos pedir por todos aquilo que tu podes conceder: a cura. 
É noite enluarada essa em que a Unidos pisa nas terras sagradas do teu reino, saudando Aroni, teu fiel anão elemental, tradutor para os homens de tuas vontades e conselhos. É para ti e para ele que deixamos, sobre o solo de seu espaço sagrado, moeda, fumo e mel. Licença! A seiva das plantas, sob o prateado da lua, entumece os caules com as emanações da terra fertilizadas pelo divino das águas.
A Unidos caminho por entre tuas ervas para buscar a cura dos males. Não nos esconda as ervas, senhor do refazimento! Enche de axé nossos balaios, tu que és a grande encruzilhada entre a ciência e a religião. Queremos a tudo revigorar com o fresco verde de tuas folhas. A Unidos te pede, nessa prece-desfile-homenagem, a recondução de tudo ao equilíbrio fundamental: a cura. Médico do Orumalé, padrinho da homeopatia, da farmácia, dos químicos. Mago aventureiro, autoconfiante inspirador dos sacerdotes! Conhecedor do bem e do mal. Força dentro de si mesmo. Artesão da tranquilidade. Dono do pilão que macera as ervas e os males…
Cura como restabelecimento. Como processo de reequilíbrio alcançado pela via do auxílio fraterno e pela vitória sobre nossos próprios vícios. Cura espiritual, pela mão dos mestres humildades a quem confiaste os mais ricos de teus poderes na singeleza irradiante de nossos terreiros… Cura física para os males do corpo, consequências de nossos descaminhos de ontem e de hoje… Reestruturação da qual as eventuais cicatrizes são marcas de superação e vitória. Cura como eterno processo reconstrutor da vitalidade do mundo. O mundo continua sempre que que um verde broto irompe o mistério da terra.
Permite-nos a colheita do axé do sangue verde de tuas folhas. 
Começa a romper o dia. A Unidos Babá Olosayin deixa os domínios de tua morada… Enche-nos os samburás com teus verdes unguentos… Concede a tua força a este Candomblé da Nação Vintém! Olha teus pacientes debaixo da cumeeira do mundo!
É dia. Nosso povo sambista deixa o mistério da mata para o claro dos holofotes da Sapucaí. Sobre a sombra dos coqueiros, tua árvora sagrada, veio fazer a grande festa! Nas mãos de todos o peregum! 
Vai começar o Sassayin – ritual de imantação das folhas – sob os olhos da Sapucaí! o mágico cântico de nosso samba é que hoje desadormece as ervas. 
Benditas as tuas múltiplas bênçãos! São amacis, infusões, abôs. “Porque tudo é passado no abô”. 
Na Marquês, hoje, tudo é seiva viva banhando de determinação e estabilidade esse país que lançaste a beleza do verde e amarelo de tuas cores! Em gratidão, nosso alabê-mestre e sus ogãs-ritmistas conclamam o Xirê dos Orixás – a grande festa da natureza! Teus irmãos dançam conosco em tua homenagem!
Celebramos a tua serenidade! A Sapucaí também dança contigo o bravun e o sajó. Redime nosso desequilíbrios e saltira conosco bailarina de uma perna só, sob o carinho de nossas palmas! Celebra a tua glória. Glória que os olhos amigos de Orunmilaia abençoam nesta apoteose!
A festa é tua, zelador eterno da regeneração! A Vintém é hoje contigo o poder que tudo cura. Samba na certeza de que repousa em seu colo obstinado a eterna e verde esperança… Celebra em ti a certeza do restabelecimento. Ewe assá, Ossaim! Ewe assá!
A vermelho e branco se matiza com o verde de suas cores. E no casamento perfeito, o branco, vermelho e verde são símbolo de tua gente cabocla. Samba, celebra, o broto novo, aldeia de Padre Miguel! 
A natureza veste teu povo e seu cântico corta o céu. Abô de felicidade pra restaurar a cidade… Uma amaci de força viva que banha a avenida… Ossaim guarde sempre as sementes do riso de sua gente!…
Ewé njé Oógún njé Oógún tikò jé Ewé re i kò pé! (as folhas funcionam. Os remédios funcionam. Remédio que não funciona é que tem folha faltando!).

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