Império Serrano: “Meu quintal é maior que o mundo”

1.

Faz-me bem uma janela aberta…
Cá dentro, a poesia
A língua da raiz, do brincar
Meu faz de conta do nada

Lá fora, em meu quintal
O reinvento pantaneiro…
“Nadifúndio” das palavras
Nele habita Bernardo
O ermo dos bocós
O silêncio honra seu ser
Nele habito a minha poesia

Olhar vago que passa em minha aldeia
Nela domina os extintos primitivos
Enfeitiça com o apoio do índio Terena
Costumeiro em chamar perdiz pela cor
De canto – hoje – verde
Murmura a língua matinal…
Dos Guatós, Guaranis e Guanás
Eles enverdam as auroras

2.

Bernardo morava em seu casebre na beira do rio
Vive quase coberto de limos, musgos
Destemido no privilégio do abandono
Regava todos os dias o extinto Mar de Xarayés
O menino agora é parte dele, das águas
Apodera-se da paisagem como seu guardador

Águas que fertilizam minha poesia
Repousa na paz dos Camalotes
Ora diante de uma procissão de formigas
Outras recortam as roseiras deste meu quintal
Ele me ensinou a infantilizá-las

Só pingar um pouquinho de água no coração delas
Algazarreia nos pingos de sol das manhãs
Caracóis vegetam em minhas palavras
Que andam em lentidão na imensidão verde

3.

Esse é Bernardo
Menino do mato, da mata
Repetindo as tardes deste meu quintal
Como um joão-ninguém, que vive do cisco

Assim como garças que enfeitam os brejos
Faz de conta menino que é um Tatu, bola a rolar
Detém um olhar feroz traidor
Ao mesmo tempo em que serve de abrigo da paisagem
Vivi como andarilho flanando no pátio da fazenda

Vejo um afeto de aves em seu olhar
A passarada fez poleiro na sua cabeça
Constroem casas na aba de seu chapéu de palha

Só ele conseguia o gorjeio dos pássaros
O menino-árvore bateu asas e avoou
Virou passarinho
Passarinhos deliram ao serem escolhidos ao concerto
O concerto latente do entardecer

4.

Entreaberta, prevejo o arrebol
Caem os primeiros pingos de chuva
Perfume de terra molhada invade a fazenda
Bernardão conhece a lida do pantaneiro

As águas impulsionam a vida no pantanal
O homem deste lugar é a continuação delas
Sua canoa é leve como um selo
Menino bandarra faz o entardecer à beira do mato
Toca a boiada que empurra águas vadias
Forte, destemido como um Lobisomem

Um pescador de varanda
A admirar pacus à sombra dos Cambarás
Tocador de viola quebrada em casa de madeira
Ela possui orgulho de suas árvores e flores
Este quintal mantém nossos delimites de viver

À noite
Beatos em procissão
Ao ouvir a prosa dos rios
Veja-te junto o outro menino
“De fé que não se cansa”
Que declamam “em forma de oração”
Num dia pra lá de especial
Seus setentas de glórias
Em romaria a Nossa Senhora
Do pantanal que pensa florescer
A cada dia e a cada poesia minha

Belas iluminuras
(A janela se fecha)
Manoel de Barros.

Sobre Bernardo:

Espécie de toten, deus, guardião da natureza sagrada. Mítico que domina o mundo natural pantaneiro.
Fazedor de amanhecer. Guardador das águas. Encantador de pássaros. Matuto pantaneiro, meu fazendeiro. “Reizinho” do meu quintal. Bernardo: meu outro eu.

“Penso agora que esse Bernardo tem cacoete pra poeta.”

Marcus Ferreira (Carnavalesco)

Junior Fionda, Marcus Ferreira e Paulo Santi
(Pesquisa, Desenvolvimento e Texto)

Henrique Pessoa
(Revisão Textual)

Dialeto Manoelês:
Andarilho: aves que vagam em plano terrestre, não sabem voar (Emas);
Bandarra: Vadio, mandrião, vagabundo, cavalo velho solto pelos pastos;
Bernardão: menino forte, destemido;
Camalotes: aguapé, planta aquática de inflorescência
Cocho: referido à viola do estado sul-matogrossense;
Iluminuras: desenho de poesia;
Mar de Xarayés: primeiro dado nome ao Pantanal, referido à primeira tribo do território;
Perdiz: ave pantaneira;
Nadifúndio: “Nadifúndio é um lugar de nadas”. 

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