Acadêmicos da Rocinha: “No saçarico da Marquês tem mais um freguês: Viriato Ferreira”


Rio de Janeiro, fevereiro de 2017
Querida Apoteose,
Há alguns anos já não nos encontramos mais. Tanto sonhei em criar os melhores espetáculos para você! Quis fazer do seu palco um grande teatro, como os que eu acompanhei ainda jovem na minha Copacabana. As vedetes, as músicas, o glamour da época… Àquelas peças, com muito riso e muita dança, deram o nome de “teatro de revista”. Mas eu via além e sempre preferi chamá-las de “apoteose”, porque era exatamente o que essa maravilha simbolizava pra mim na época: uma apoteose triunfal.
Tolo eu, que vislumbrava a apoteose somente naqueles palcos que cintilavam brilho e fulgor. Mal sabia que, num palco muito maior, já se celebrava outra festa ainda mais apoteótica: o carnaval de rua, dos blocos e das escolas de samba do Rio. Lugar do povo, dos pobres e ricos, do luxo e do simples, todo mundo junto. O pedreiro que virava rei, a lavadeira do morro que virava rainha, que encantador! E, com a insistência de alguns amigos, fui incentivado a entrar nessa brincadeira. Veja bem: eu, magriço que só, vim dar vida a fantasias luxuosas que antes só existiam na minha imaginação. Muitos me chamavam de “destaque”, mas eu prefiro definir aquilo tudo como um verdadeiro sonho. Um sonho de carnaval, um deslumbramento. Uma verdadeira apoteose.
Reconheço, sem falsa modéstia, que sempre desenhei relativamente bem. Na verdade, meu traço era o que eu tinha de mais valioso. E foi esboçando croquis, já para nomes famosos desse mundo do carnaval, que resolveram me dar o título de carnavalesco. “Incrível, fantástico, extraordinário” – agradeço o elogio, mas acredito que incrível mesmo é o carnaval, que em quatro dias fazia parar nosso calendário para o povo ir à forra e se divertir antes da derradeira quarta-feira. “A ordem do rei é brincar / Quatro dias sem parar”. Nessa brincadeira toda, eu louvei Rei Momo, pierrôs e colombinas. E, tomado de um azul único vindo de Madureira, a brisa me levou para outros reinos igualmente encantados. Pude ser criança outra vez e, brincando na ilusão do circo, me atirei nos braços da alegria. Também me deixei encantar e mergulhei até o fundo dos oceanos, num cortejo irreal com as maravilhas do mar. 
Nessa vida, eu tive oportunidade de fazer e refazer amizades. João, por exemplo: homem baixo, mas de imenso talento, que em tempos atrás me abrira as portas desse mundo da folia. Trabalhamos juntos em muitos anos; em outros concorremos juntos; e tempos depois retomamos o ciclo. E já transformada Avenida, agora com uma Apoteose ao fundo, fez com que um senhor como eu, de corpo franzino, jogasse bola em plena chuva e descerrasse as cortinas da ribalta com suas mágicas luzes. Assisti à liberdade do negro raiar e, principalmente, viver o miserê reluzir em ouro no meu mundo de ilusão. 
Quis Deus que, no fim da vida, eu pegasse um trem rumo à rainha imperial e me perdesse num verdadeiro bananal em flor. E, com ajuda de uma delicada rosa, tive a honra de ver os pecados debaixo do Equador e os saçaricos do marquês, aquele que tem na Apoteose seu esplendor. Uma rosa muito querida, por sinal, que certo dia me disse: “No saçarico da Marquês tem mais um freguês”. Gentileza demais da parte dela, a rosa professora, que me prestou essa singela lembrança comigo já não mais aqui nessa vida. Mas ao mesmo tempo que me lisonjeio, penso ser curioso me chamar de “freguês”, uma vez que eu já fui de um tudo nessa vida. Já fui teatro, já fui história, já fui amor de carnaval. Em alguns anos me fiz águia, outras vezes beija-flor. Já fui menino-rei e também vesti a coroa de uma rainha, extravasando minha emoção. Hoje, 25 anos depois, me vejo sobre uma borboleta e muito honradamente me visto de azul, verde e branco para contar um pouco do que vivi. E da minha vida fazer a tão sonhada Apoteose. 
Com gratidão e afeto,
Viriato Ferreira
Dedicatória:
“Sozinho eu não faria nada, nem teria desfile”
(Viriato Ferreira, em entrevista ao jornal “O Globo”. Fevereiro de 1979)
Uma escola de samba é um universo humano muito vasto, denso e rico. E o GRES Acadêmicos da Rocinha quer exaltar, por meio da história de Viriato Ferreira, os artesãos e heróis anônimos do carnaval: figurinistas, desenhistas, costureiras, pintores, chapeleiros, escultores, aderecistas, destaques, entre outros que atuam diretamente na construção dessa ilusão. Vamos relembrar grandes momentos da carreira do  carnavalesco para celebrar também esses artistas sem nome, muitas vezes nunca lembrados, mas que são fundamentais na confecção de um desfile de escola de samba. Dentro desse contexto, ao mergulhar nos enredos memoráveis de Viriato, nossa escola presta outra homenagem ainda maior: ao próprio carnaval e às agremiações da folia. Num momento em que o sonho se faz fantasia, a comunidade da Rocinha quer superar as agruras do dia a dia para oferecer ao público e aos jurados uma Apoteose de alegria e beleza, digna dos desfiles do nosso homenageado maior. Por isso, enchemos o peito para gritar: Salve Viriato Ferreira! Salve o carnaval! Salve Rocinha!
“O povo não quer saber de tristeza, nem tampouco de tragédia. A população vive numa panela de pressão, e o carnaval é a válvula de escape”
(Viriato Ferreira, em entrevista ao jornal “O Globo”. Janeiro de 1991)
Carnavalesco: João Vitor Araújo
Pesquisa e texto: Daniel Targueta

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