Foto: Ritout/Gabriel Nascimento | Arte: Vítor Melo. |
Por Bernardo Pilotto:
Em meados de 2015, o cenário em uma das mais conhecidas escolas de samba do Rio de Janeiro era desanimador. Vinda de alguns desfiles ruins, ficando fora do Sábado das Campeãs seguidamente, cheia de dívidas, a Mangueira estava desacreditada. Nos carnavais precedentes, em 2008, a verde e rosa tinha optado por uma tentativa de enredo patrocinado ao invés de homenagear o centenário de Cartola; em 2007, tirou Beth Carvalho, uma das suas principais componentes, do desfile e perdeu a mais marcante voz da Sapucaí, depois que Jamelão (intérprete entre 1949 e 2006) teve um AVC.
Alguns anos depois, o cenário é totalmente diferente. Campeã duas vezes nesse período (em 2016 e 2019), a Mangueira voltou a ser protagonista dos desfiles desde então. E não só pelos títulos: com o carnavalesco Leandro Vieira, a escola aliou uma excelente estética com ótimos sambas e um discurso político potente. Juntou tradição e ousadia. Deu certo. Uma mudança que honra os mais de 90 anos de história da agremiação.
Duas das bandeiras que encerraram o desfile inesquecível da Mangueira em 2019. Na imagem, Marielle e Jamelão em verde e rosa. Foto: Erica Modesto. |
“Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?”
(“Sala de Recepção” – Cartola)
Fundada em 28 de abril de 1928, a G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira ganhou esse nome por estar localizada junto à estação que se seguia à Central do Brasil, de onde partiam os trens para o subúrbio carioca. Localizado, portanto, próximo ao centro da cidade, o Morro da Mangueira era local de moradia de muitos trabalhadores ex-escravos, que mantinham por ali manifestações culturais típicas das culturas da diáspora africana.
O surgimento da Estação Primeira é fruto da junção de vários blocos e manifestações carnavalescas que já existiam no Morro, sendo o Bloco dos Arengueiros o principal. Desse bloco participavam alguns dos fundadores da escola, como Carlos Cachaça, Saturnino Gonçalves e Maçu da Mangueira.
A escola participa das competições do carnaval desde os primórdios, no começo da década de 1930, tendo sido a primeira campeã, feito que se repetiu em mais 19 ocasiões. A Mangueira foi fundamental para a fundação e consolidação de várias agremiações, como o Acadêmicos do Salgueiro, que já homenageou a madrinha em um desfile só pra ela.
Ao longo de sua história, a verde e rosa se tornou uma instituição cultural das mais importantes do país, tanto pelos nomes que de lá surgiram para o cenário nacional, como Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Geraldo Pereira, Dona Neuma, Dona Zica, Padeirinho, Hélio Turco, Delegado, Tantinho, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira, quanto pelos mangueirenses ilustres, como Chico Buarque, Milton Gonçalves, Moacyr Luz, Alcione e Beth Carvalho.
Em muitas carnavais, a Mangueira acabou homenageando grandes nomes da cultura brasileira, como Braguinha (1984), Chiquinha Gonzaga (1985), Dorival Caymmi (1986), Carlos Drummond de Andrade (1987), Tom Jobim (1992), Os Doces Bárbaros (1994), Chico Buarque (1998), Nelson Cavaquinho (2011) e Maria Bethânia (2016).
Essas homenagens acabaram gerando importantes frutos, com a gravação dos álbuns “No Tom da Mangueira” (de 1993), “Chico Buarque de Mangueira” (de 1997) e “Mangueira – A Menina dos Meus Olhos” (de 2019). Em 1978 a comissão de frente da escola tinha, entre outros, Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e Juvenal. Já em 87, à frente da escola desfilaram Chico Buarque, João Nogueira, Aldir Blanc, Hermínio Bello de Carvalho… A Mangueira foi se firmando ao longo do tempo como um polo de encontro.
Cartola, dos maiores compositores brasileiros, à frente da Mangueira no desfile de 1978. Foto: Ricardo Beliel. |
“Quando ouvir essa batida
Foi Mangueira quem chegou
A escola que dá diploma ao sambista
A escola que envaidece o artista
As cabrochas mangueirando nas cadeiras
Abre ala Iaiá, quem chegou foi Mangueira”
(“Mangueira Chegou” – Zé Ramos)
Mas não são apenas seus membros, os desfiles ou suas cores que fazem a Mangueira uma escola única. Criada por Lúcio Pato, China e Baiano, a batida de surdo da verde e rosa tem características muito particulares, o que é lembrado em vários dos seus sambas. Diferentemente das demais escolas, que possuem um surdo de resposta, a Mangueira conta apenas com o “surdo um” para a marcação. E, fazendo uma função similar ao surdo de terceira das outras baterias, a verde e rosa conta com o “surdo mor”, que tem um tamanho menor e uma batida mais seca.
Essa diferença tem impactos importantes para a escola, em questões de harmonia e também em relação ao seus sambas-enredo, que precisam ter uma melodia que encaixe com essa forma de tocar os surdos.
A bateria pode ser vista como um dos símbolos do peso da tradição na escola. Ela foi, por exemplo, uma das últimas a aceitar mulheres entre seus membros e é conhecida por não fazer muitas inovações nos desfiles.
Mas essa pegada tradicional não impediu a Mangueira de trazer inovações em vários momentos. Foi assim com os enredos biográficos, com o primeiro samba-enredo gravado (em 1967) e, mais recentemente, com os enredos críticos e bem brasileiros. Foi assim que a escola conquistou 8 títulos desde a criação do Sambódromo (em 1984), sendo uma das maiores vencedoras desse período. Para o carnaval de 2020, a agremiação também trouxe inovações na forma de escolha do samba-enredo, com um mecanismo mais democrático.
Dessa forma, a escola tem conseguido equilibrar bem a sensível balança entre a necessidade de ser sofisticada e a demanda por se manter firme em suas raízes. Jovem e experiente, a Mangueira é peça fundamental para o complexo cultural do carnaval brasileiro.