por João Vitor Silveira
Nascido no subúrbio nos melhores dias, João Nogueira marcou para sempre seu nome na história da cultura popular brasileira. Ávido representante do Méier, aprendeu desde cedo a conectar seus dedos com os braços do violão, tendo como referência seu próprio pai, o advogado e também músico João Batista Nogueira, e também a sua irmã mais velha, Gisa Nogueira, com quem compartilhou primeiro os seus talentos com a inspirada caneta, tendo sido sua primeira parceira de composições. Suas primeiras composições encontraram destino no bloco Labareda do Méier, onde começou sua carreira compondo sambas.
João Nogueira no conforto de sua poltrona – Foto: Cláudio Jorge de Barros/ Arquivo Pessoal |
“Esse mar é meu”, clamou João ao adentrar de fato a cena da música brasileira com o sucesso “Das 200 pra Lá”. Ainda que ainda surfando as ondas de uma suposta inexperiência, João navegou como marinheiro experiente nas águas do grande Brasil, encontrando caminhos das por intermédio da voz de Eliana Pittman, alcançando o topo das paradas da época. Ainda que tenha precisado afastar alguns rumores de que seria um músico subserviente à ditadura, pelo viés nacionalista de sua canção, as portas foram se abrindo para um músico genial.
“Trabalho é besteira, o negócio é sambar”, diria o bom João, enquanto continuava sua trajetória rumo ao reconhecimento que lhe era devido. Já havia gravado dois LPs que haviam tido boa repercussão no cenário da música, antes de lançar “Vem que tem”, em 1975, que gerou frutos inestimáveis para sua obra. Naquele momento, João se consolidava como um exímio compositor, sendo capaz de trabalhar com diversos parceiros e mesmo assim proporcionar belíssimas obras. Foi com Eugênio Monteiro que compôs Nó na Madeira, um dos grande sucessos da carreira e uma das principais obras do disco de 75.
João Nogueira e seu cavaquinho – Foto: João Nogueira (Divulgação) |
Quebra no balacochê do cavaco! Era esse o mandamento do mineiro para Mineira cumprir. Foi também no LP de 75 que veio de uma só levada dois legados importantíssimos da carreira de João: A homenagem feita à Clara Nunes seria um dos maiores sucessos da carreira de João, se perpetuando nas rodas de samba e servindo até os dias de hoje como uma homenagem não somente para Clara, mas para o próprio cantor. Seria também a partir dessa homenagem a consolidação da parceria, que já fora frutífera no disco de 74, com P.C. Pinheiro.
É, vida voa. O tempo vai, e como vai. A cada ano João colecionava novos sucessos, e também versava cada vez mais profundo. Em 1977, o poeta do Méier abriu ainda mais seu coração, e versou sobre sua própria alma. Sua relação para com o pai, em quem se espelhava, deixou transparecer um saudosismo da época em que tinha seu velho ao lado, e refletia seus passos e caminhos nos que seu pai havia trilhado. Queria poder fazer canções como as que fizera seu pai, e teve seu momento de não estar em paz com Deus por lhe tirá-lo. Mas João sabia que se olhar no espelho era abrir um portal em sua alma, para sentir o reflexo de seu pai, e ele sabia que podia continuar fazendo, ainda que narrasse seu maior medo.
Meu medo maior é o espelho se quebrar. E talvez fosse justamente a partir desse medo que João enxergava na cultura do samba a maneira de manter o seu espelho intacto. Mergulhando de vez na Vida Boêmia, lançou em 1978 disco com esse mesmo título. João firmou de vez os pés na vida noturna, e cantou os Bares da Cidade, narrou um instigante Baile no Elite e também falou sobre o que era um Amor de Fato. Entretanto, talvez o maior sucesso daquele disco tenha sido Forças da Natureza, com seu prolífico e histórico parceiro, Paulo César Pinheiro.
Paulo César Pinheiro e João Nogueira – Foto: Arquivo Pessoal |
“E é por isso que eu vivo no Clube do Samba”, versaria anos após a fundação do clube original a Acadêmicos do Cubango, ao homenagear João em 2017. Fundamentando ainda mais o seu papel e o seu legado para o mundo do samba, o poeta do Méier fundou em 1979 o Clube do Samba. O clube, que teria diversas sedes ao longo dos anos, tendo inclusive funcionado inicialmente na casa do próprio João, seria um reduto para os sambistas, promovendo noites memoráveis para o gênero, contando com a participação de compositores das escolas de samba, dos sambas de roda, cantores, músicos e intérpretes. Era uma verdadeira celebração que ajudaria a fincar ainda mais fundo o nome de João, e do samba, na história do país. E, como o criador que ama sua criação, lançou ainda disco homônimo com direito a mais sucessos com P.C. Pinheiro como Súplica e Canto do Trabalhador.
Não, ninguém faz samba só por que prefere. Como poderia ser apenas preferência, não foi à toa que João fez seus versos, que se tornaram um elo de identificação com todos os outros artistas do gênero. Havia coisas mais profundas do que apenas uma possível preferência por aquele trabalho, era uma magia, uma força interior que levava os músicos naquele caminho. Até porque não era o próprio João um espelho de seu próprio pai? As reflexões e os anseios que moravam no âmago de João e P.C. Pinheiro sobre a função renderam Poder da Criação, do disco Boca do Povo, em 1980. E João tinha no que afirmava, já que ele tinha um estilo próprio cativante.
Era diferente, com jeito de Wilson, Geraldo e Noel. João se estabeleceu como um artista único; suas composições tinham um estilo de fácil identificação com a sua personalidade, assim como seu cantar tinha uma cadência inigualável. Suas influências eram claras, pois o próprio Nogueira não fazia questão de escondê-las. Gravara ao longo dos anos diversas músicas de Noel Rosa, Geraldo Pereira e Wilson Batista. Para além das gravações que fizera, João lançou também disco, em 1981, de nome “Wilson, Geraldo, Noel”, para render uma definitiva homenagem às suas maiores inspirações.
A vida é mesmo uma missão, bem sabia João. Sua carreira não encontrou ponto baixo nos anos que se seguiram, continuando a lançar discos e músicas de sucesso, além de participar em gravações de outros artistas. Mas, para além disso, João pareceu compreender também que a sua missão havia sido cumprida, pois mantivera o espelho do pai intacto com seu trabalho. E para além de mantê-lo intacto, virou ele próprio um espelho. Quando lançou Além do Espelho, seus versos indicavam claramente que ele entendia a sua missão, e enxergava em Diogo, seu filho, o espelho do espelho que ele era.
“Que falta faz tua alegria,” poderia dizer para Clara ou para João. No que foi talvez a epítome da parceria entre P.C. Pinheiro e João Nogueira, o disco de 1994 intitulado “Parceria” trouxe consigo uma belíssima coletânea dos grandes sucessos feitos pela dupla. E era difícil não se atentar para as maravilhosas homenagens que ambos os poetas haviam construído ao longo dos anos à querida Sabiá, que infelizmente havia nos deixado. Talvez fosse luz demais para um mundo cheio de trevas, e era possível apenas lembrar do seu canto. Poucos anos depois da gravação do disco, seria a vez de João Nogueira encontrar o descanso eterno.
Diogo Nogueira caracterizado como o pai João, em homenagem realizada no programa Domingão. Ao seu lado, a mãe Ângela Nogueira, que esteve na plateia para assistir – Foto: Reprodução: Instagram) |
A vida é sempre uma missão. A morte, uma ilusão. Se pudesse de alguma forma dizer palavras de conforto para o poeta do Méier no momento de sua despedida, seriam essas que começaram esse parágrafo. Que a sua partida poderia ser em paz, pois seu maior medo jamais iria se concretizar. Testemunhamos desde sua partida o “Espelho do Espelho que não quebrou”. Por isso é que as palavras escritas e cantadas por João são tão verdadeiras e realistas. A morte é uma ilusão. Ele está vivo desde que partiu.
Pois quando o espelho é bom, ninguém jamais morreu.
Uma resposta
Como posso acessar o texto em homenagem a outro grande portelense que hj completa 78 anos, Paulinho da Viola?