Carnavapólis | A Xica que manda deslumbrando a sociedade….

Um tapete vermelho se estende na nossa cidade carnavalesca, a visita de hoje é ilustre. Com a igreja da Candelária ao fundo, surge ela, a eterna Xica da Silva com todo seu esplendor, pegue seu par e venha dançar esse minueto sobre um desfiles mais importantes do carnaval contemporâneo.
O ano era 1963, o Salgueiro tinha conquistado seu primeiro título três anos antes com a chegada de Fernando Pamplona e sua trupe, mas com um gosto amargo ao ter que dividir a taça com mais quatro escolas. A dita revolução alvirrubra estava a pleno vapor. As escolas até então estavam acostumadas a a cantar heróis brancos e a história oficial do Brasil, o Salgueiro inovava trazendo para a passarela as vozes de figurais marginais da nossa história. Tudo começou com Zumbi, o rei do Palmares, continuou com Aleijadinho, expoente da arte barroca. Em 1962, Pamplona se despediu da Academia do Samba e partiu para novos rumos, deixando seu fiel escudeiro Arlindo Rodrigues, parceiro o Theatro Municipal. No primeiro ano, Arlindo cantou o descobrimento do Brasil. Para dar sequência as inovações escolhe uma figura que ninguém conhecia: 
– Pô, Fernando, vou fazer Xica da Silva de enredo do Salgueiro – disse Arlindo ao mestre.
– Quem? – Pamplona indagou.
– Xica da Silva
– E quem é essa mulher?
– Não é foi… – disse Arlindo contando a história toda e toda a divisão do enredo mais uma porção de blablablá.
– Enredo de merda, Arlindo!
– Mas é negro, é de luta e de conquista social, tá na nossa linha e… É bonito paca!
– Pô, cara, tu quer fazer um negócio babaca faz, segura a barra porque não estou nem aí, vou me mandar pra Alemanha. Tchau!*

Contrariando a opinião do mestre, Arlindo seguiu com sua proposta e levou sua Xica para a avenida. Já passava das seis da manhã quando o Salgueiro entrou na Presidente Vargas, com o emblemático samba composto por Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira, um verdadeiro samba lençol, cobrindo todo o enredo proposto.

A primeira alegoria retratava um chafariz. Logo depois a passista Paula do Salgueiro levantou o público com seu samba no pé. Não demorou um grande cortejo de doze casais encantou a Candelária. A foto eterniza a primeira ala a apresentar uma coreografia na sua passagem pela passarela do samba, passos marcados pela imortal Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Municipal. O que a foto não releva foi o improviso e o desespero típicos do carnaval. A fantasia da ala não ficara pronta a tempo. Ainda na concentração, o costureiro tentava finalizar as peças e não conseguiu dar conta do recado. Alguns componentes entraram alfinetadas, no mais puro improviso, inclusive a própria Mercedes. 

Logo depois surge ela… Imponente, majestosa e invejada. A própria Xica que manda, eternizada na representação da imortal Isabel Valença, sua imagem se confunde com a da mulata que era escrava, seu vestido suntuoso se tornou uma verdadeira alegoria, das mais marcante da nossa folia. Fazendo passar desapercebida seus 1,65 metros de altura, na história do carnaval seu porte é de gigante.
O resultado foi incontestável: o título. A consagração salgueirense e o primeiro campeonato solo da agremiação. Um marco na história do carnaval, a chamada década negra comandada por Arlindo e Pamplona durou até 1972, mas se há um desfile que pode ser definido como uma revolução em sim, este é Xica da Silva. 
Nele podemos observar todos os pilares e elementos que se consolidariam na narrativa de uma escola de samba contemporânea. Cenógrafo do Municipal, Arlindo traz toda a linguagem teatral para o cortejo carnavalesco, o transformando de fato numa ópera popular. O enredo passa a contar uma narrativa com início, meio e fim, numa construção bem definida. O luxo, o esplendor, o requinte são marcas das fantasias e alegorias apresentadas. A escola passa a ter roupas inspiradas no tempo em que o enredo se passa, criando uma unidade narrativa. É usada a primeira ala de passo marcado, que muitos disseram que ia descaracterizar o samba. Uma bobagem.
A importância de Xica da Silva para a história do carnaval é imensurável. Está para os desfiles, como o icônico mictório de Duchamp está para a arte contemporânea. Ou a literatura de Machado de Assis para o Brasil. E a música de Tom Jobim. Uma obra de arte. Pura. Latente. Eterna. Essencial. Incomparável.

Dali a história da mulata que era escrava e sentiu grande transformação ao se casar com o contratador João Fernandes de Oliveira saiu do anonimato para a entra de vez na História do Brasil. Virou filme, novela, livro. Eternizada.

*Diálogo retirado da autobiografia de Pamplona, o livro “O encarnado e o Branco”. Além dele, foi usado pra base nesse texto o livro “Explode coração: Histórias do Salgueiro”, de Leonardo Bruno.











Leonardo Antan é folião frequentador do Sambódromo desde criança e tem verdadeiro amor pelas escolas de sambas. Trabalha, estuda e vive o mundo de confetes e serpentinas durante o ano inteiro. Atualmente, cursa História da Arte na UERJ onde pesquisa também sobre o tema.

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