Carnavapólis | Uma vizinha rica e faladeira que abalou as estruturas da Praça Onze

Uma escola inovadora, vanguardista, acusada de perder as raízes do carnaval, que promovia verdadeiros espetáculos fazendo alguns sambistas virarem o nariz. Poderia ser a Tijuca dos anos 2000, a Mocidade dos anos 90, a Beija-Flor dos anos 80. Mas é a Vizinha Faladeira, nos longínquos anos de 1930. Dona de um campeonato e de posições honrosas nos primeiros desfiles organizados, a Vizinha se consagrou como uma verdadeira protagonista dos primeiros concursos entre escolas de samba, rivalizando com a Portela o título de maior escola de sua época. O resultado da briga já podemos imaginar, já que uma ganhou vinte e um títulos e a outra enrolou a bandeira em 1940. Uma disputa icônica que hoje vamos contar um pouco na Carnavapólis. Na nossa cidade, a Vizinha ocupa um terreno de luxo num bairro nobre do samba.

O surgimento das escolas de samba é algo controverso e cheio de polêmicos. Pouco se sabe por exemplo da origem do termo, a clássica versão de Ismael Silva é altamente questionável, visto que o termo já aparece em 1925 no conto “A morte da porta estandarte”, de Anibal Machado, e a fundação da Deixa Falar aconteceu três anos depois, em 28. O fato é que as escolas tem seu primeiro concurso organizado em 1932, pelo jornal Mundo Esportivo, e logo dois anos já são oficializadas e possuem sua entidade reguladora. Num contexto em que elas ainda buscavam definir quem eram, a Vizinha se tornaria uma verdadeira rebelde, disposta a questionar e testar os mais diferentes formatos. Se opondo as regras estabelecidas e propondo diversas novidades, se tornando mal vista por suas concorrentes e exemplo do que uma escola de samba não deveria ser.

Fundada em 1932, no bairro da Saúde, a Vizinha Faladeira é a única representante da zona portuária carioca, região que viu nascer o samba em seus terreiros, sendo uma das primeiras escolas de samba da cidade. O nome curioso teria sido uma “homenagem” às duas fofoqueiras do bairro que ficavam da sua janela tomando conta dos sambistas. Sua ostentação visual numa época em que os aspectos mais valorizados eram o ritmo, lhe rendeu o maravilhoso apelido de “Vizinha Rica”, fazendo os “verdadeiros” sambistas torcerem o nariz para a escola “diferentona”.

Os desfiles na Praça Onze eram marcados por sua simplicidade e exaltados por seus aspectos musicais. Não havia ainda um desfile em cortejo, as escolas concentravam na Praça Onze e iam se apresentando para os jurados em cima de um tablado, onde cantavam sambas que não necessariamente tinham a ver com as fantasias e enredos que apresentavam. A Vizinha balançou as apresentações, propondo uma série de inovações.

Em 1933, no segundo concurso das agremiações, realizado pelo jornal “O Globo”, a escola foi desclassificada por apresentar o que pode ser considerada a primeira comissão de frente da história, formada por automóveis abertos de luxo. A comissão já era quesito naquela época dos desfiles dos ranchos, vistos como espetacularizados e elitizados, mas era novidade para as escolas. No ano seguinte, mais novidades, cumprindo o pedido de não usar carros, a Vizinha teve uma ideia bem básica, e substituiu os veículos de rodas por cavalos. Mas a ousadia não parou por aí, ela iluminou ainda mais a Praça Onze usando luzes em seu desfile quase setenta anos antes da moda do led. O desfile tinha a assinatura dos cenógrafos Irmãos Garrido que ficaram responsáveis pelo visual. Era a primeira vez que se contratava artistas de fora para ocupar tal função.

No primeiro desfile oficial, em 1935, a escola seguiu com suas ousadias, com fantasias feitas de lamê e veludos, tecidos caros para a época. Dois anos depois se sagraria a grande campeã do carnaval com mais um espetáculo, intitulado “Uma bandeira só”. Aberto por um automóvel, seguido por seis homens fantasiados e montados a cavalo. À frente da bateria, um grupo de músicos, quase uma orquestra completa. As fantasias eram luxuosas e resistentes à chuva que castigou na hora da apresentação. A vitória foi indigesta para as concorrentes que reivindicaram que a escola havia desrespeitado as “tradições”. A Vizinha não estava dentro da proposta de uma forma de carnaval ligada ao ritmo negro do samba com apresentações singelas, que se opusessem  aos desfiles dos ranchos e grandes sociedades, que ocupavam o protagonismo da folia com desfiles realmente grandiosos e luxuosos. A agremiação da zona portuária usava elementos exatamente destes carnavais.

Em 1939 ocorreria um dos episódios mais icônicos da história, a Vizinha desfilaria com “Branca de Neve e os sete anões”, o enredo sobre o recém lançado desenho da Disney seria visto como tema estrangeiro e a escola seria desclassificada. O desfile foi algo espetacular pra época, com 400 integrantes, comissão de frente trajando terno de flanela e polainas, bateria fantasiada, carro alegórico com luzes e crianças vestidas de anões em volta da Branca de Neve. A desclassificação seria uma polêmica e tanto. O fato foi que houve uma confusão com a entidade organizadora da festa que não liberou o regulamento oficial até o dia do desfile. Com as regras do ano anterior não citava a proibição de temas estrangeiros, a Vizinha argumentou que havia se baseado nele. Mas as rivais já não viam a agremiação com bons olhos se aproveitaram do fato para desclassifica-la. Acusando de fazer o carnaval perder sua essência nacional.

Revoltada com o fato, a agremiação da zona portuária iria fazer um grande protesto no desfile de 1940. Com o enredo “Carnaval para o povo”, ela passaria por trás da comissão julgadora, dando as costas e se virando para o público e abrindo a faixa dizendo “Devido às marmeladas, adeus carnaval. Um dia voltaremos.” E voltaram quase 50 anos depois, em 89. Hoje, a Vizinha Rica está em plena ascensão nos grupos da Intendente Magalhães.

*Texto baseado no artigo “Incômoda Vizinhança”, de Felipe Ferreira e Gabriel Turano. E na dissertação “Devido às marmeladas, adeus carnaval. Um dia voltaremos: escola de samba e cultura popular no Rio de Janeiro dos anos 19130”, de Gabriel Turano. Ambos disponíveis online.

Leonardo Antan é folião frequentador do Sambódromo desde criança e tem verdadeiro amor pelas escolas de sambas. Trabalha, estuda e vive o mundo de confetes e serpentinas durante o ano inteiro. Atualmente, cursa História da Arte na UERJ onde pesquisa também sobre o tema.

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