Arte de Lucas Monteiro
Por Felipe Camargo
Já se tornou algo que os amantes do Carnaval carioca debatem e mencionam todos os anos. Com um misto de esperança, medo e reclamação, vem se tornando uma tradição ritualística, que ocupa as arquibancadas, as concentrações, as redes sociais e a mídia especializada. O assunto? Algo inevitável para o futuro das escolas de samba: a necessidade de mudanças na infraestrutura da nossa amada festa. Dos desfiles do Grupo Especial até as escolas das divisões inferiores, nos mais variados aspectos, reformas e novidades são esperadas.
Faltando pouco mais de uma semana para a entrega da chave da cidade do Rio de Janeiro ao Rei Momo, em 2023, uma forte chuva de verão castigou o balneário da Guanabara. O resultado disso no mundo carnavalesco foi a repetição do desesperador alagamento de barracões das escolas do grupo de acesso (hoje Série Ouro, um dia foi Série A e pode mudar de nome a qualquer hora) e das escolas que desfilariam na “nova Intendente”. Trabalho de meses sendo perdido e o choro e desesperança de profissionais se misturando às águas que, tradicionalmente, causam estragos na cidade nem tão maravilhosa assim. E digo que foi repetição mesmo, porque todos os anos o verão chega, as chuvas também e a cidade, construída entre mangues, morros e baía, não suporta o volume de água que desce do céu. Nessa dinâmica caótica tradicional, sofrem sempre as escolas de samba que não contam com a estrutura da Cidade do Samba, abrigando seus trabalhos artísticos para os desfiles em galpões precários ao longo do Centro e da Zona Portuária, no caso da Série Ouro, ou pela Zona Norte, no caso das escolas das séries Prata e Bronze.
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Galpão utilizado pela Inocentes de Belford Roxo como barracão para o carnaval 2023. Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo |
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Incêndio na Cidade do Samba em 2011, atingindo os barracões da LIESA, Grande Rio, União da Ilha e Portela. Reprodução: Acervo O Dia |
A Cidade do Samba foi inaugurada em 2006 pela prefeitura do Rio, durante a gestão César Maia, de forma a servir como fábrica para o Grupo Especial. Em 2011 um incêndio devastador atingiu os barracões da LIESA e das agremiações Grande Rio, União da Ilha e Portela, deixando clara a necessidade de constante manutenção do espaço e, talvez, sua reformulação. Em 2020, no final de abril, ocorreu um novo incêndio nas instalações, atingindo o barracão da então campeã, Viradouro. Em janeiro de 2021, em meio às incertezas da pandemia, a justiça decretou uma interdição do lugar pelo risco de novos incêndios, apontado por vistorias do Corpo de Bombeiros e pelo Ministério Público, sob a justificativa de não haver um plano de prevenção e controle de incidentes. Apenas em julho daquele ano a fábrica da folia carioca foi reaberta. Ainda assim, a Cidade do Samba virou um marco por passar a fornecer às escolas de samba da divisão de elite condições de trabalho muito melhores para o desenvolvimento dos desfiles. Desde então, a promessa de uma nova Cidade do Samba, voltada ao grupo de acesso, vem sendo mencionada. Ano após ano, com a repetição de incidentes, inundações e a divulgação nas redes sociais da precariedade à qual os profissionais estão sujeitos, a pressão aumenta por sua construção.
Hoje, chegamos em um ponto essencial para a cobrança. A prefeitura do Rio, agora sob o terceiro mandato do portelense Eduardo Paes, promete a construção do novo espaço para muito em breve, mas pouco deixa claro sobre os avanços que se seguiram. As notícias divulgadas por diversos veículos especializados e da imprensa regional dão conta de que desapropriações de terrenos já foram realizadas no bairro de São Cristóvão, que o nome da “Cidade do Samba 2” será Fábrica do Samba e que a obra sairá. Ao que sabemos, a localização será próxima ao Terminal Gentileza, em construção, próximo à Avenida Francisco Bicalho e ao trecho de início da Avenida Brasil. Ainda assim, falta clareza. A prefeitura não divulgou amplamente o projeto arquitetônico (apenas uma vez, em dezembro de 2021, pelas redes sociais do próprio prefeito), não esclarece sobre o terreno, não parece buscar os profissionais do carnaval para debater o que é prioritário no espaço e ainda não apresentou datas concretas que delimitem um cronograma. Quando as escolas do acesso deixarão de estar sujeitas ao acaso e ao precário? Ainda não sabemos.
Na linha dos descasos e necessidades, as escolas da Série Prata, Série Bronze e do grupo de avaliação seguem sem uma definição precisa de onde desfilarão em 2024, além da já mencionada precariedade de seus barracões pelo subúrbio. Até 2022, essas escolas de samba desfilavam na Estrada Intendente Magalhães, nos limites entre Campinho e Madureira, mas para 2023 os desfiles foram redirecionados para metros à frente, na Avenida Ernani Cardoso, já com CEP em Cascadura. Problemas severos de segurança e a reclamação de moradores foram um contraponto à presença de estruturas melhores para a recepção do público (que poderiam, se houvesse disposição, terem sido implementadas ainda na Intendente). A “nova Intendente” não convenceu e o prefeito anunciou ainda em fevereiro que buscaria um novo espaço, possivelmente uma nova passarela do samba, para alocar os desfiles.
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Maquete apresentada pela prefeitura do Rio da estrutura da “Nova Intendente”, na Avenida Ernani Cardoso. Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil |
Estamos em julho (de 2023) e ainda não há perspectiva de que isso seja resolvido, mas é importante que a realização dos desfiles já esteja conectada à Zona Norte. Ao mesmo tempo, a viabilidade de construir um novo sambódromo (menor, claro, e possivelmente desmontável) passa diretamente pela disponibilidade de uma área de bom acesso, boa segurança e sem maiores transtornos ao espaço urbano ao redor, algo difícil nas atuais condições da cidade. E por que não podemos pensar também em projetar melhores condições para essas escolas produzirem seus carnavais? Se não na elaboração de um espaço físico próprio para barracões menores, pelo menos na subvenção, como uma forma de investir mais intensamente na cultura dos subúrbios da região metropolitana.
E a Sapucaí? Reformada para o carnaval de 2012, em finalização do projeto original de Niemeyer (que muito pouco conhecia dos desfiles das escolas de samba), a passarela do samba da rua Marquês de Sapucaí foi largada ao descaso durante o mandato de Marcelo Crivella na prefeitura do Rio (2017-2021) e a ameaça de interdição por falta de alvará do Corpo de Bombeiros passou a ser constante. Já sob o novo mandato de Paes, a avenida de desfiles chegou a passar por uma reforma importante, com recapeamento, nova iluminação (polêmica!), aumento de caixas de ralo e impermeabilização de parte das arquibancadas. Porém, em janeiro do ano em que estamos, uma interdição foi decretada pela falta de documentação. Mais um carnaval passou e hoje ainda permanece a impressão de que as estruturas do palco do “maior espetáculo da terra” precisam ser repensadas, reprojetadas e reformadas. Problemas de som, dificuldade e falta de segurança nos acessos e a precariedade dos banheiros e outros serviços são constantes da Sapucaí atualmente. Não são poucos os casos de furtos e roubos na área de concentração, na Avenida Presidente Vargas, nas proximidades da Central do Brasil, nos caminhos entre o Balança Mas Não Cai e a Rua Frei Caneca e nos acessos pelo lado dos Correios, como os arredores da estação Praça Onze do metrô. E em caso de chuva, melhor se preparar para o perrengue, porque os acessos alagam e a própria pista de desfiles corre o risco de encher, como ocorreu na sexta-feira de desfiles em 2019.
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Sapucaí alagada antes dos desfiles da Série A em 2019. Foto: Marcos Serra Lima / G1 |
Além de tudo isso, vivemos sob a constante ameaça e realização da elitização do sambódromo. O espaço é cada vez mais pensado para o público de maior poder aquisitivo, que ocupa os luxuosos camarotes, repletos de shows com direito a som vazado para a Avenida de desfiles. Até as frisas vão perdendo espaço para a abertura de mais e mais camarotes, enquanto o preço das arquibancadas para o Grupo Especial segue elevado o suficiente para afastar muitos apaixonados pelo carnaval componentes das classes mais baixas. Enquanto o sambódromo precisa de reformas essenciais de infraestrutura, para receber e acomodar melhor seu público, integrantes da cúpula da LIESA já sugeriram desde mudar os desfiles para a Barra da Tijuca (um escárnio, a princípio deixado de lado) até a ampliação do espaço direcionado a turistas estrangeiros. Existem esforços constantes para valorizar o espetáculo de forma mercadológica, pensando na potencialização de lucros com base no turismo internacional e nas classes mais abastadas. Esses esforços rendem um maior retorno financeiro, mas têm como contrapartida afastar as camadas mais populares da manifestação cultural que, originalmente, pertence a elas. Um processo semelhante ao ocorrido com o Maracanã em seu processo de elitização. Quem é mais pobre não acessa mais e o espetáculo cultural perde parte da essência que o consagrou.
Para amenizar a dose dos preços das arquibancadas, defendo aqui algo citado por muitos nas redes sociais: deve-se estudar a possibilidade do valor dos camarotes ajudar a financiar um barateamento dos ingressos para as arquibancadas. O carnaval hoje é, em boa parte, um jogo de dinheiro, mas só existe como produto porque as camadas populares o construíram e o abraçaram, preenchendo as arquibancadas e fazendo-as tremer de euforia. Sem a resposta do público, a participação da massa nas arquibancadas, veremos cada vez menos desfiles que se transformam em icônicos não só pelo exibido visualmente e pela qualidade musical, mas pela comunicação simbiótica e encantada que conseguem construir com o público na pista. E da avenida se contagia o de casa na TV, que reproduz ao país inteiro, apaixonando novas gerações pelas escolas de samba.
Há uma necessidade constante de mudanças que devem ser executadas com velocidade para impedir que problemas se repitam indefinidamente por mais carnavais. O público e os profissionais anseiam por melhorias nas condições, como a urgência da “Cidade do Samba 2”, a melhoria da infraestrutura da Cidade do Samba do Grupo Especial e o incentivo às escolas que um dia desfilaram na Intendente, além da urgência por definições importantes, como a localização nova desses desfiles. E tudo deve ser cuidadosamente pensado para não afastar o povo das arquibancadas e das escolas de samba. A reforma e reorganização das avenidas de desfile, seja a Sapucaí ou a ex-Intendente, deve ser executada tendo em mente medidas que possam reaproximar o público mais popular. No caso da Sapucaí, a manutenção ocorre mais por pressão do que pelo zelo e, por mais que medidas estejam sendo tomadas, não podemos cair indefinidamente na elitização do desfile das grandes escolas. O senso de preservação da manifestação cultural e da força das comunidades que a constroem deve prevalecer. O profissionalismo, que, por vezes, criticamos por justamente encaminhar uma elitização do samba e deterioração das tradições, deve ser convertido em um ponto de partida para definirmos um padrão elevado de infraestrutura do carnaval e fugir da precariedade que coloca artistas, artesãos e gestores do carnaval em risco, o trabalho das escolas à mercê da sorte e o público refém dos perrengues.
Felipe Camargo é professor de História formado pela UFF.