Do Setor 1 à Apoteose: Beija-Flor 2001 – A Saga de Agotime: Maria Minera Naê

 

Arte: Lucas Monteiro.

Texto: Beatriz Freire, João Vítor Silveira e Thomas Reis
Revisão: Luise Campos
“Do Setor 1 à Apoteose” propõe uma viagem completa por um desfile marcante da história carnavalesca, da concentração à Apoteose, passando por antecedentes, contextos, histórias de bastidores e análise de todos os quesitos. Um verdadeiro cortejo de informações sobre a apresentação escolhida! Durante o mês de setembro, a cada segunda-feira, destrincharemos um desfile escolhido pelo público a partir de enquetes realizadas em nosso Instagram (sigam @igcarnavalize) e também no Twitter (@carnavalize).
Nossa temporada de retomada da série abarca um processo imprescindível de contribuição dos padrinhos e madrinhas que impulsionam o trabalho do Carnavalize. Para o nosso segundo texto, João Neto indicou três desfiles que compuseram a votação. Vejam só como ele nos colocou em briga de gente grande: Beija-Flor 2001 (“A saga de Agotime – Maria Mineira Naê”), Salgueiro 2007 (“Candaces”) e Vila Isabel 2012 (“Você semba de lá que eu sambo de cá – O canto livre de Angola”). Agradecemos mais uma vez ao nosso padrinho pela luxuosa contribuição e convidamos todos a conhecerem nosso instrumento de apadrinhamento. 
Em 2001, a Beija-Flor de Nilópolis completava 25 anos da conquista do primeiro título de sua história, no ano de 1976 (“Sonhar com rei dá leão”). Até ali, já havia alçado voos tão altos que, ao todo, nas duas décadas e meia que se passaram, colecionava seis campeonatos para chamar de seus. A competitividade veio, para além do suporte de sua patronagem, com Joãosinho Trinta, que, na explosão de sua carreira carnavalesca, mudou os rumos da agremiação nilopolitana. 
Os carnavais anteriores foram marcados por ótimas colocações, sempre muito disputadas com a Imperatriz, uma das grandes potências de toda a década de 1990. Mordida pelo vice-campeonato no ano anterior, a Beija-Flor apostou todas as suas fichas em busca da vitória naquele ano: com um enredo “afro”, já era manhã de segunda-feira – a escola encerrava o domingo de desfiles – quando Nilópolis adentrou a Sapucaí sob a luz do sol e os olhos das arquibancadas lotadas para contar a história de Agotime. 

Foto: Wigder Frota. 


VAI SEGUINDO O SEU DESTINO (DE LÁ PRA CÁ)
O retorno às origens africanas foi pensando pela Comissão de Carnaval composta por Laíla, Cid Carvalho, Fran Sérgio, Ubiratan Silva, Shangai e Nelson Ricardo. A equipe, que já estava no comando do carnaval da escola há 4 anos, teve a inspiração para o enredo quando desenvolviam “O mundo místico dos Caruanas nas águas do Patu-Anu” em 1998, como nos contou o carnavalesco Fran Sérgio.
“Esse enredo começou com a gente preparando, em 1997, o carnaval de 1998, que era: “O mundo místico dos Caruanas nas águas do Patu-Anu”, uma história da pajelança cabocla, protagonizado pela dona Zeneida Lima, que é a pajé (…) e dona Zeneida já falou com a gente sobre a história da tataravó dela que era a rainha Agotime (…). E já ficamos encantados ali com a história e ficamos dois anos (1999 e 2000) amadurecendo essa ideia, essa pegada africana, uma homenagem aos voduns, aos ancestrais da Agotime e ao culto de Dahomé.”  
O enredo foi uma espécie de encantaria que envolveu a todos que assistiam o cortejo da azul e branca nilopolitana. Percorrendo a história da rainha Agotime de Abomey, antiga capital do Reino de Dahomé – atual Benin -, contou-se que a líder foi traída, escravizada e enviada ao Brasil. Ela, que era a segunda esposa do rei Agongolo, vivia no palácio Dãxome com seu enteado Adandozan (primogênito do rei) e seu filho Gezo. Próximo de sua morte, o monarca reuniu seu povo no mercado Adjahito para anunciar que seu segundo filho iria sucedê-lo no trono após sua morte. Entretanto, o ordenamento de Agongolo não foi cumprido, e Adandozan se apropriou de forma tirânica do governo de Dahomé. 
Agotime, conhecida por cultuar os voduns seus reis ancestrais mortos, foi acusada de feitiçaria pelo novo rei e vendida no grande porto de escravizados em Whidah. Lançada ao porão de um navio negreiro, cruzou o oceano, como havia sido previsto pelo seu Vodun como sua missão, e rumou para o Brasil. Ancorada em seu compromisso espiritual de renascer em outras terras o culto a Xelegbata, a rainha resistiu às dores, ao sofrimento e a humilhação, trazendo consigo os saberes ancestrais do povo de Dahomé e o culto aos voduns. 
O desembarque em solo tupiniquim foi em Itaparica, na Bahia, onde encontrou com muitos africanos escravizados, mas nenhum da mesma região ou religião que a sua. Foi através do contato com os povos Nagô que Agotime se aproximou dos orixás e por meio deles descobriu a localização de seu povo em São Luís do Maranhão. Sua gente foi denominada de Negros-Minas e estavam desamparados e sem local para cultuar sua religião. Diziam aguardar um sinal dos ancestrais para isso. Ou seja, mesmo sem saber, esperavam por Agotime. 
Entendendo que sua saga estava próxima do desfecho tão sonhado, a rainha chega ao Maranhão sentindo os espíritos de seus ancestrais africanos, ouvindo ecoar os tambores de Dahomé e, em um ritual de celebração, a escravizada retoma seu posto de rainha. Acolhendo seu povo e seguindo as orientações do Vodun, funda a “Casa das Minas” em São Luís do Maranhão. Sua missão enfim, estava concretizada. No terreiro em que resiste a tradição africana e o culto aos Voduns, a rainha passou a se chamar Maria Mineira Naê, cumprindo o seu destino. 
A história contemplada pela escola foi conduzida pelos relatos da pajé Zeneida Lima, então neta de Agotime. Ainda que muitas polêmicas envolvam a veracidade dos relatos, não há dúvidas sobre o fato de que a saga encantou a todos na Avenida, bem ao estilo místico da narrativa. O encontro entre a Deusa da Passarela e a Rainha Agotime foi repleto de feitiçaria, misticismo e deslumbramento, digno da grandeza de suas altezas. O enredo muito bem amarrado e repleto de minúcias não só embeveceu o público, mas também conquistou notas máximas dos jurados e levou o Estandarte de Ouro do quesito. 
E NA LUZ DE SEUS VODUNS/ EXISTIA UM RITUAL DE FÉ
Na comissão de frente comandada pela bailarina e coreógrafa Ghislaine Cavalcanti, viu-se a encenação do ritual da pantera negra: quatorze mulheres que dançavam ao ritmo do tambor  mina-jeje acompanhavam a personagem central que representava Agotime. Durante quase toda a apresentação, a rainha era representada em vestes douradas e com uma máscara sobre o rosto. Quando era “escondida” pelas suas guardiãs, retornava à cena como uma pantera, simbolizando o ritual inspirado na dança dos povos jeje e no culto aos voduns. 
Foto: Fernando Quevedo | O Globo
Do ponto de vista estético, a escola apresentou um dos desfiles mais opulentos e ricos que já tomou a Sapucaí. Rompendo a Avenida ao amanhecer do dia 26 de fevereiro de 2001, a Beija-Flor fascinou o público com sua exuberância e as tonalidades utilizadas em suas alegorias e fantasias; o contraste entre as cores da Deusa da Passarela e o céu clareando gerou imagens lindíssimas do desfile. 
O conjunto alegórico composto por 7 carros era imponente, gigantesco e muito bem trabalhado. A começar pelo abre-alas, que tomou grande parte do tapete branco com suas três estruturas acopladas, representando “O palácio de Dãxome – O clã real”, que, segundo a lenda, foi edificado sobre a barriga da serpente. Em sua decoração, a farta utilização de palhas, presas e peles de animais chamava muita atenção, juntamente com os adereços dos destaques e os totens típicos da região espalhados pela alegoria. 
Apesar de toda imponência do abre-alas, o carro que mais impactou a todos foi o terceiro: “A Feitiçaria”, e essa comoção não foi exclusividade dos foliões que estavam na Avenida. Fran Sérgio conta que os próprios funcionários do barracão sentiam a intensidade da alegoria: “Tínhamos figuras muito fortes nesse carnaval (…) tinha uma escultura de um bode, no carro da feitiçaria, que falava realmente do culto da rainha que vem para o Brasil com ela; e as pessoas, os funcionários do barracão, tinham um tipo de medo do bode porque era um bode preto, era uma escultura que você olhava e parecia que ela estava olhando para você. Então esse enredo tinha muito misticismo, muita força, essa magia africana que contagiava a gente no barracão. Nós sentíamos essa energia pulsando dentro do barracão.”. 
Além do famoso bode já citado que abre a alegoria, esta era composta por 700 velas dentro de recipientes com água; suas cores eram fortes e vibrantes, em tons vermelho e preto. Em seu ponto mais alto, estava a destaque central com um costeiro colossal. Para muitos, o carro era uma espécie de ebó que percorreu a Sapucaí, ostentando oferendas e sacrifícios. 
Foto: Cezar Loureiro | O Globo

Outra alegoria digna de ser evidenciada é a quinta. “A Bahia – Encontro com os Nagôs” conta a chegada da rainha em condições de escravizada no Brasil, que foi representada por uma belíssima construção artística em tonalidades claras entre branco e prata que contrastava com a luz do dia. Em tons coloridos e vívidos, os destaques de composições vestidos de orixás davam o toque pontual àquela concepção incrível, algo bem similar a estética desenvolvida pelos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora na Grande Rio em 2020. 
No todo, o conjunto alegórico apresentado pela escola de Nilópolis foi marcado pela sua robustez, sua riqueza de detalhes e por destaques volumosos que tiveram a capacidade de refletir muito bem a narrativa do enredo. Em determinados pontos, é possível observar o excesso de adereços e a falta de rigor estético, mas nada que comprometesse todo aquele feitiço que pairou sobre o Rio de Janeiro naquela manhã. E, falando nisso, a alegoria “A Feitiçaria”, por ironia do destino a mais bela do cortejo, como mencionamos acima, teve um pedaço danificado. A perda da peça, fato que, no conjunto do desfile, pareceu insignificante, custou caro à Beija-Flor na quarta-feira de cinzas.  
A riqueza das alegorias esteve presente também por entre as alas. Volumosas, com cores vibrantes e seguindo o embalo que tomava os componentes, as fantasias foram mais um quesito impecável da escola. O primeiro destaque vai para a “Ala das Pretas-Velhas”. Para além da indumentária, a passagem das senhoras negras integrantes da comunidade nilopolitana trouxe consigo um enorme valor simbólico. Não à toa, para muitos que assistiam o desfile, algumas delas – senão todas – estavam incorporadas. A ala já vinha gerando discussões muito antes do desfile, pois muitos duvidavam que as mulheres já idosas conseguiriam atravessar toda a Avenida seguindo a coreografia com a coluna curvada para frente. O Diretor de Carnaval, Laíla, conduziu incansáveis ensaios para que tudo saísse conforme o previsto… e foi o que aconteceu! Lá estavam elas à frente do abre-alas, com cachimbo, bengala e guia no pescoço, abrindo os caminhos para aquele grandioso cortejo. 
Foto: Wigder Frota

Além disso, em todo o corpo de desfilantes da escola notou-se alas muito volumosas e ricamente trabalhadas em materiais e, principalmente, em cores, as principais aliadas da escola naquele desfile sob a luz do sol. Impressionou pela quantidade de componentes e criatividade a ala das baianinhas, intitulada “As sinhazinhas do bumba-meu-boi”. Com uma quantidade considerável de alas coreografadas, a escola mostrou excelente desempenho de harmonia e evolução e, mesmo sendo obrigada a apertar o passo nos minutos finais por conta de sua extensão, ninguém deixou de vibrar com o samba, muito menos de realizar os passos delimitados. 
O RUMO DE SEU POVO ENCONTROU
De luvas douradas nas mãos, coisa que já não se vê mais nos dias de hoje, Selminha Sorriso empunhou o pavilhão azul e branco ao lado de Claudinho, já companheiro de muitos carnavais, sem deixar escapar o mastro que ostentava a identidade e garra nilopolitanas. As luvas, a título de curiosidade, foram pouco tempo depois escanteadas após um “comum acordo” entre as porta-bandeiras, tendo em vista que o suor fazia as mãos escorregarem. A dupla estava lindamente trajada com indumentárias dignas da realeza daometana, com a riqueza das estampas que reproduziam as peles de zebras. O garbo inconfundível do casal abrilhantou ainda mais a presença das cores e símbolos da escola para mostrar que o percurso Daomé-Bahia-Maranhão desembarcou em Nilópolis para saudar a sacerdotisa Agotime. Como de costume, Selminha e Claudinho conduziram o beija-flor de sua bandeira como um amuleto por toda a Avenida, em uma linda apresentação para as cabines de jurados. 
Foto: Wigder Frota.

SOU BEIJA-FLOR E O MEU TAMBOR/ TEM ENERGIA E VIBRAÇÃO
Histórico. É uma boa palavra para definir o samba-enredo que a Beija-Flor levou para a Avenida no carnaval de 2001. A composição de Déo, Caruso, Cleber e Osmar foi completamente arrebatadora, conquistando o público desde o pré-carnaval e coroando a sua grandeza com uma performance incrível na Sapucaí. A obra contou com a interpretação magistral de Neguinho da Beija-Flor, que ia para o seu vigésimo sexto ano seguido à frente do carro de som nilopolitano, junto com seu fiel escudeiro Gilson Bacana. Considerado por muitos o melhor samba do carnaval de 2001 e um dos grandes sambas da década, ele conseguiu concatenar com perfeição os trechos e as passagens do enredo, sendo uma belíssima representação da totalidade do desfile.
O grande desempenho do samba foi, ainda, propiciado pelo excelente trabalho da bateria Soberana de mestre Paulinho Botelho e de mestre Plínio – o hoje mais longevo mestre em atividade pela mesma escola, com 24 anos na escola de Nilópolis. Diferente do que acabou se tornando a tendência daquela década, em que belas obras acabaram sendo atrapalhadas pelo andamento acelerado das baterias, a orquestra da Beija-Flor conseguiu manter uma bela cadência num andamento favorável ao samba poético que tinham em mãos, de forma que o hino da escola pôde brilhar em todo o seu esplendor no desfile. 
Para além do reconhecimento do andamento ideal para o samba que possuíam, os mestres Plínio e Paulinho Botelho conseguiram levar para a Avenida uma bateria bem condizente com o enredo que a escola trabalhava, contando com alguns ritmistas com instrumentos totalmente conectados com a temática africana, como o atabaque e o xequerê. Além disso, um dos grandes destaques da bateria foi a bossa realizada após sair do refrão de meio do samba, entrando na segunda do samba e executando um ritmo afro no qual os surdos e os tamborins puderam brilhar. 

A Beija-Flor foi a última escola do domingo de Carnaval e deixou a Marquês de Sapucaí como a franca favorita ao título após desfilar com o dia já amanhecendo. A escola arrebatou o público e encerrou o desfile aos gritos de “É Campeã!”. Mas, para a tristeza e frustração da comunidade nilopolitana, a Quarta Feira de Cinzas reservava uma ingrata surpresa. Mesmo com um desfile arrebatador, que empilhou notas 10 em todos os quesitos, um 9.5 em Alegorias e Adereços foi determinante para que a Imperatriz, com um perfeito 300, chegasse ao título do carnaval de 2001, repetindo as posições anteriores e fazendo com que a Beija-Flor de Nilópolis amargasse o terceiro vice-campeonato seguido para a escola de Ramos.  
Mesmo sem a vitória, Agotime é um daqueles desfiles que ganhou, acima de tudo, as páginas da história carnavalesca. Até hoje lembrado como uma das melhores apresentações – e mais injustas derrotas para muitos – da Deusa da Passarela, o desfile mobilizou uma estética rica, criativa, excelente samba e um enredo indiscutivelmente abraçado pela comunidade nilopolitana. A saga milenar da escola, mais do que buscar uma história antiga para contar, invocou uma personagem não ensinada nas salas de aula, cumprindo, assim, o papel cultural e educacional das escolas de samba que se interessam a colocar nas devidas molduras os nomes que combinaram de não nos contar algum dia. Ressoou no Maranhão, na Sapucaí e no país inteiro. 
Confira o depoimento do carnavalesco Fran Sérgio sobre esse desfile inesquecível:

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