Dossiê Carnavalize: “Sou da negritude o fruto e a raiz”


A Nenê do Seu Nenê

Fundada em janeiro de 1949, a Nenê ganhou o apelido de seu fundador, o sambista Alberto Alves. A escola desfilaria em seus primeiros anos pelas ruas do bairro, só integrando o campeonato oficial no ano de 1953. Conquistando seu primeiro título já em 1956, tornar-se-ia, junto com outras escolas, a responsável pela quebra da hegemonia da Lavapés, segunda escola de samba paulistana da história, em atividade até os dias de hoje.
Batuque à Carioca
A importância histórica da escola se deve, não unicamente, mas, por grande parte, ao intercâmbio com o carnaval do Rio de Janeiro que seu Nenê estabeleceu, importando o modelo carioca às terras paulistanas, com uso de novos instrumentos, fazendo as escolas perderem, um pouco, sua similaridade com os ranchos.
Viagem ao Rio
Foto do carnaval de 1949
Com parentes morando
no Rio de Janeiro, incluindo seu pai, que era carioca, Seu Nenê visitaria a
Estação Primeira de Mangueira. O contato com a realidade carnavalesca da cidade maravilhosa era exclusividade do sambista – numa época onde os dirigentes carnavalescos
paulistanos buscavam se espelhar na organização das escolas da Guanabara. A
partir de então, a bateria matildense passaria a desenvolver um estilo mais
próximo da maneira carioca de tocar. 

Instrumentos novos

Foto do carnaval de 1953
A principal
inovação foi o “culungundum”, mistura de maracatu com percussão, que
revolucionaria o carnaval paulistano. O baluarte ouviu o instrumento em um
jongo numa igreja da Penha e também nas rodas da Lapa. Dizia ter-se apaixonado
pela batida da Mangueira, chamando atenção à batida de caixa e o estilo do
surdo. Junto com o Paulistinha, um dos seus maiores baluartes, fizeram as transformações na bateria, acrescentando
ainda o chocalho.
Um carnavalesco à moda antiga


Foto para o carnaval de 1956, “Casa Grande e Senzala”


Popó era o
apelido de Mário Protestato dos Santos, jornalista do jornal “O Dia”. O
intelectual foi um dos fundadores da agremiação e foi quem sugeriu o seu nome, uma das sugestões anteriores foi “Escola de Samba do Nenê”. Então, o jornalista deu
a ideia de ligar o nome de Nenê ao seu bairro de origem. Anos depois, foi dele
também a iniciativa de fazer “Casa Grande e Senzala” com um enredo que gerasse
um samba, com uma unidade musical e visual no desfile da escola,
assemelhando-se, cada vez mais, com o que se tornaria os desfiles nos dias de hoje.
O Samba sem enredo


Foto do carnaval de 1950


Uma unidade visual? É, assim como nos
primeiros anos dos desfiles cariocas, em Sampa, as apresentações não tinham uma
unidade entre o que era cantado e o que era exposto visualmente. Em entrevista,
seu Nenê diz que usava letras de músicas que faziam sucesso nas rádios para os
desfiles de 1950 a
1953, como: Normalista de Nelson Gonçalves (1950), Amor de Madalena de Linda Batista (1951),  Lata
d´água de Marlene (1952) e Joga a Chave do eterno Adoniran Barbosa (1953).

Valeu Zumbi

Era assim ainda
em 1954, apesar do enredo ser “Zumbi dos Palmares”, não foi composto um
samba-enredo exaltando o herói quilombola. Vale ressaltar, entretanto, que no
contexto da década de 1950, Zumbi não era personagem histórico conhecido e
exaltado como hoje, tão pouco seu nome contava nos livros de História. A
exaltação do líder, todavia, é de importante caráter político e de valorização
da cultura negra. No Rio, o primeiro enredo a citar Zumbi só seria realizado em
1960, através da lendária figura de Fernando Pamplona, eterno carnavalesco
salgueirense.

Zumbi no quarto centenário


Foto do carnaval de 1954


Além disso, o ano
de 1954 marcava o carnaval de comemoração dos 400 anos da cidade de São Paulo.
Entretanto, as comemorações políticas excluíram a importância do negro. Mais do
que nunca, a exaltação a Zumbi, nesse âmbito, valorizava a importância negra na
construção da cidade quatrocentenária.
Casa Grande e Senzala

O primeiro samba-enredo paulista surgiria finalmente em 1956, cantado pela Nenê. Popó sugere como tema o livro “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre, importante manifesto contra as desigualdades brasileiras. O samba foi composto pelo próprio em parceria com Paulistinha. A letra narra a visão de um negro triste e subserviente, separado por infortúnio do seu continente natal. O desfile da escola traria enfim uma unidade narrativa, o samba cantada era visto nas fantasias.
A Chica que manda

Além do protagonismo negro, a escola paulistana também incluiu em seus desfiles o protagonismo feminino, louvando em suas apresentações personagens históricas mulheres. Como em 1959 com a lendária Chica da Silva, que só chegaria ao Rio quatro anos depois e nas telas do cinemas em 76, por Cacá Diegues. O samba narra o amor entre a mulata que era escrava e se casou com o contratador João Fernandes. A parte mais curiosa da canção é a que relata o rico negociante atendendo todas as vontades de seu amor, até mesmo desviar o curso de um rio para ela navegar de navio.
Brasil gigante

Foto da alegoria de 1960


Em 1960, a agremiação mudaria sua linha de enredos, largando a temática africana e fazendo uma homenagem ufanista o Brasil de sua época, como a maioria das escolas de samba, paulistanas e cariocas, faziam. O enredo “Despertar de um Gigante” trazia um carro alegórico com uma “torre de Petróleo”, onde se via escrito “Brasília”, indicando a fundação da nova capital naquele ano.


Temáticas nacionais

Além de 1960, a agremiação da Vila Matilde cantaria enredos nacionalistas em outras ocasiões. Primeiro em 1958, com o “Grito do Ipiranga”. Os dois seriam o primeiro e o último títulos do tricampeonato conquistado entre 58 e 60, que marcaria a tentativa de traçar uma trajetória do país desde o ato fundador (O grito do Ipiranga) à contemporaneidade, o Despertar de um Gigante. Foi depois do tricampeonato que a águia virou o símbolo oficial da escola.

A preferida do Imperador


Foto do desfile de 1961

O luxo da escola impressionaria em 1961, no enredo que tinha outra figura feminina em destaque: A Marquesa de Santos, famosa amante de D. Pedro I. A foto que registrou os dois desfilantes, que personificaram o casal principal do enredo, mostra figurinos requintados para a época.
Escrava Isaura

Foto do desfile de 1962


No ano seguinte, em 1962, outra mulher voltaria a brilhar na voz da Nenê, era a Escava Isaura, do livro homônimo. O desfile chamou atenção pelos figurinos luxuosos que retratavam o século XIX, onde a história se passava. A escola ficaria apenas no segundo lugar com a apresentação
A Potência do samba


Ala de damas do carnaval de 1967


Durante a década de 1960, a azul e branco seria uma das maiores potências paulistanas. Durante 1960 e 1970 foram seis títulos e cinco vice campeonatos, uma marca impressionante. Nesses desfiles chamam a atenção, a volta da temática negra em 63, com “Enaltecendo Uma Raça”. Em 65, o título com “Mundo encantado de Monteiro Lobato”, apresentado no Rio pela Mangueira dois anos depois com um samba que se tornaria clássico. Em 1967, veio também a homenagem ao abolicionista José do Patrocínio. E em 70, o enredo sobre o modernismo com o título de “Pauliceia desvairada”, livro de Mário de Andrade, mesmo tema que daria ao título da Estácio de Sá em 1992.

A Força do negro

A Nenê firma-se, então, por sua importância histórica, com umas das principais escolas do carnaval paulistano. Por seu caráter inovador, importando novos
elementos pro samba da Terra da Garoa. Destacando-se pelos enredos de temática
africana; de certo modo, um pioneirismo negro, valorizando a figura da raça
negra numa época em que os enredos ainda tinham amplamente certo caráter
nacionalista. Uma verdadeira revolução, de levar para a avenida a voz negra que ecoou nas décadas de 1950 no cenário cultural, que teve como um dos seus ícones o Teatro Experimental do Negro e Associação Cultural do Negro.

A Nenê continua exaltando a África em seus enredos, como em 2015, quando homenageou Moçambique

O dossiê Carnavalize é um trabalho coletivo de Leonardo Antan, Vitor Melo e Rodriguerrimo (Rodrigo Cardoso). 



Referências:  O artigo “Batucadas, enredos e carnavalização. Os passos da Escola de Samba Nenê da Vila Matilde”, de autoria de Zelia Lopes Silva e a dissertação “A batucada da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de samba paulistana”, de Chico Santana.

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