#Efemérides | 1959 – O Debret do Salgueiro: a gênese de uma revolução

Por Leonardo Antan

O que o fim de uma década pode dizer sobre os anos que passaram e os que estão por vir? Em 2019, a segunda década do século XIX chega ao fim e marca o aniversário de inúmeros desfiles importantes. Dos trinta anos do histórico embate entre “Liberdade! Liberdade!” e “Ratos e urubus” aos cinquenta anos de “Heróis da Liberdade”, dá pra recontar a história das nossas escolas de samba, em síntese, se passarmos por alguns dos desfiles mais importantes da festa. Tentaremos dar conta dessa missão por aqui no mês de novembro. Vem com a gente!

60 anos do “Debret” do Salgueiro!

Se muitos dizem que a chamada “revolução salgueirense” começou em 1960, com a chegada de Fernando Pamplona à vermelho e branco da Tijuca, há uma perspectiva mais adequada para tratar dessa história. (Saiba mais sobre a Revolução Salgueirense aqui) A verdadeira gênese das transformações discursivas e estéticas que fariam o GRES Acadêmicos do Salgueiro se consagrar com uma das maiores agremiações do país já começaria a estar presente em seus desfiles em 1959. E antes de falar do carnavalesco com voz de trovão, professor da Escola de Belas Artes e cenógrafo do Municipal, precisamos lembrar de outra figura com o pensamento à frente de seu tempo: Nelson de Andrade. 
Comerciante da Tijuca, ele tinha ajudado o Salgueiro algumas vezes com contribuições para seu livro de ouro. Mas logo se enturmando com nomes da escola como Jô Calça Larga e Djalma Sabiá, Nelson foi convidado a ser presidente da agremiação por sua competência de liderança. Determinado, tinha o sonho de não só fazer a escola fundada em 1953 romper a barreira da quarta posição, como também conquistar o título de campeã do carnaval. E como fazer isso? A resposta só podia estar em um lugar: inovação! 
Já em seus primeiros anos como presidente, entre 1957 e 1958, Nelson tentou trazer algumas novidades para o desfile do Salgueiro. Naquela época, as escolas de samba ainda refletiam os ecos da vitória da Portela em 1939, que consolidou um carnaval tradicional, clássico e nacionalista – como você pode ler no primeiro texto da série #Efemérides. Com o fim da Praça Onze para as obras da avenida Presidente Vargas, as escolas passaram a desfilar no novo endereço, mas foi em 1957 que conquistaram o inimaginável prestígio de se apresentar no principal logradouro da cidade: a Avenida Rio Branco. A partir daí, as agremiações começariam a assumir, finalmente, o posto de principal manifestação cultural do período carnavalesco, desbancando as sociedades e os ranchos na predileção da população do Rio de Janeiro. 

 

“E quando foi julgador, o desfile atrasou seu coração salgueirou…”

Já passava das oito da noite quando o corpo de jurados daquele carnaval de 1959 chegou ao palanque construído na altura da Biblioteca Nacional. O espetacular desfile das escolas de samba estava marcado para começar às sete horas, só que desde sempre o atraso foi uma das maiores características da cultura carioca. O time de julgadores era formado por Fernando Pamplona, responsável pelo quesito “Escultura e Riqueza”, o grande folclorista e pesquisador Edison Carneiro, julgando “Enredo”, a escritora e jornalista Eneida de Morais, julgando “Letra do Samba”. Completariam o júri Belá Paes Leme (fantasia); Lúcio Rangel (bateria) e Brasil Easton (mestre-sala e porta-bandeira). 
Para aquele ano, Nelson decidiu que precisava arriscar mais do que nunca. Até então, os carnavais da escola já eram liderados artisticamente por Hildebrando Moura, funcionário da Casa da Moeda, que assinou enredos como “Romaria à Bahia”, “Brasil, fonte das artes” e “Navio negreiro”, entre 1954 e 1958. Para 1959, o presidente tinha feito um gesto ambicioso, indo atrás de dois grandes nomes da cultura brasileira, um casal “excêntrico” da Zona Sul carioca que colecionava itens do folclore brasileiro, chamados Dirceu e Marie Louise Nery. Quando encontrou o pernambucano e a suíça, a afinidade foi imediata e, depois de um papo ou outro, os dois estudiosos, que já tinham trabalhado no Museu de Etnografia da Suíça, concordaram em assinar o desfile do Salgueiro. Assim surgiu a homenagem ao artista Jean Baptiste Debret, famoso pintor por integrar a Missão Artística Francesa.
No domingo de carnaval de 1959, na Rio Branco, já passava das dez da noite e nenhum surdo ainda fazia marcação, somando horas de atrasos. A pista dos desfiles permanecia repleta de foliões e as cordas que deveriam separar plateia e palco estavam para lá de indefinidas. Com sua truculência histórica, os policiais montados tentavam retirar as pessoas da pista a cacetadas. A reportagem do Correio da Manhã (22/01/1959) comenta o uso descontrolado da Polícia Especial e da Polícia Militar, “que como sempre, voltaram a praticar violências contra o povo que se aglomerava ao longo da Av. Rio Branco para assistir o que há de mais belo no carnaval carioca”. 
Para complicar ainda mais, a Unidos de Bangu, a primeira escola que devia se apresentar, quebrou o eixo de um dos seus carros, recusando-se a iniciar os cortejos. Tentaram então passar para a segunda agremiação da ordem, a Aprendizes de Lucas, que não quis desfilar até a primeira se apresentar. Sem solução no horizonte, formou-se um quiproquó entre as quatro primeiras agremiações a se apresentar, o secretário do Turismo e a polícia. Em meio à discussão, o presidente salgueirense resolveu se manifestar. Ele decidiu que o Salgueiro poderia começar, mas desde que sua passagem fosse livre das cordas, para que o público e os desfilantes pudessem interagir de forma mais livre. 
A polícia se manifestou contrariamente a ideia do presidente, alegando que a medida aumentaria a desorganização. Com o atraso se arrastando há horas e o público inquieto, no entanto, o júri autorizou a entrada do Salgueiro – que seria apenas a quinta a se apresentar pela ordem original estipulada. Após tanta confusão, a solução parecia ter dado a graça. Eram pouco mais de 22 horas e 45 minutos quando a multidão alvirrubra finalmente iniciou os cortejos daquele histórico ano de 1959. 

“Viajei com Debret pelo Brasil…”

Dois grandes negros de um metro e noventa encabeçavam o corpo de componentes. Trajados de escravos, traziam o estandarte com o título “Viagem pitoresca através do Brasil”. Os figurinos reproduziam as famosas gravuras de Debret. Cestarias, vendedores de frutas e galinhas e a corte brasileira surgiram em encarnado e branco. O desfile tentava levar os foliões de volta ao Brasil do século XIX, tanto que os figurinos eram rigorosamente históricos como os mostrados pelo artista em suas gravuras. Nada de peruca tipo Luís XV ou fantasias de nobre pouco ligadas ao enredo. O tema tinha início, meio e fim, contando uma história ligada integralmente com o que era visto na pista. Além de grande presidente, Nelson de Andrade foi também um excelente “enredista”, mostrando sua preocupação em desenvolver uma história bem amarrada na Avenida.
Os grandes e cenográficos adereços de mão serviram para ladear a apresentação, substituindo as criticadas alegorias de então, já que desde 1954, como sinalizou uma reportagem do jornal O Globo, as alegorias eram consideradas “fracas e toscas”, um crime ao “singelo” espetáculo das escolas. Grandes lampiões a gás carregados pelos desfilantes iluminavam a Avenida e formavam um cortejo, mais do que nunca, teatralizado. Paula do Salgueiro surgiu levantando a plateia, dando um show na pista. Paula da Silva Campos se tornaria uma espécie de celebridade dos universos das escolas de sambas do período e intimamente ligada à identidade da vermelho e branco, desfilando na agremiação desde sua fundação. Virou uma atração à parte com seu gingado e carisma, mesmo sem nunca ter propriamente sambado, costumando usar fantasias de baianas estilizadas em composição popularizada por Carmen Miranda. 
Assim como ela, era comum um componente famoso ou identificado com a escola ser considerado uma “atração” dentro do desfile, uma pessoa geralmente animada que se comunicava com o público, famosa ou não. Este processo, possivelmente, originou o termo “passista”. Paula do Salgueiro seria um dos melhores exemplos dessa noção: ela era descrita como grande atração da vermelho e branco nos períodos da época, consolidando-se como uma “celebridade” do samba. Este desfile de 1959 marcou também a estreia das “irmãs Marinho” no Salgueiro, três dançarinas trazidas por Nelson do universo da Zona Sul carioca que se tornariam celebridades carnavalescas.
Desse jeito, com um desfile animado, bonito e que construía verdadeiras cenas aos olhos dos espectadores, o Salgueiro saiu da pista com uma das grandes favoritas, enquanto as escolas de samba começavam a se transformar nas queridinhas do público, da imprensa e do turismo, como um espetáculo vibrante, belo e típico da cultura carioca. Outro marco que ajuda a entender a “massificação” das escolas são os desfiles patrocinados pela Coca-Cola. Semanas antes do carnaval, as agremiações se apresentavam com sambas e fantasias inspiradas na marca de refrigerantes como forma de propaganda. Lá era dado um troféu para a principal agremiação, e naquele ano a grande campeã do Tamborim de Ouro foi exatamente o Salgueiro. 
Na cabine dos jurados, depois das apresentações, Fernando Pamplona tinha ficado dividido com as suas avaliações. Nos riscos a lápis, deu uma nota maior para o Salgueiro, mas mesmo com um tema sem empatia, a Portela havia feito uma excelente apresentação, apesar da pouca inovação, comparada ao desfile da vermelho e branco. Com “Brasil, pantheon de heróis”, a azul e branco de Oswaldo Cruz e Madureira foi campeã mais uma vez, já com o status de a maior agremiação da época. A escola seguia apostando em um estilo patriótico e clássico, como fez em 1939. De qualquer forma, se naquele ano ainda não havia conquistado o título, o Salgueiro começou a incomodar as coirmãs com um inédito vice-campeonato. 
Depois do desfile, Nelson de Andrade foi procurar o jurado que tinha dado uma nota maior para o Salgueiro do que para a campeão do carnaval. Da afinidade imediata com Fernando Pamplona nasceria uma parceria que mudaria para sempre o carnaval e seus destinos. Seguindo as inovações do presidente para transformar os desfiles em algo mais dinâmico e teatral, Pamplona chamaria o reforço de seu parceiro de Municipal Arlindo Rodrigues para dar sequência a ideia de desfiles com enredos bem amarrados, com figurinos fieis ao seu tempo histórico, trazendo elementos que ajudariam a compor cenas dentro da apresentação além de apostar em passistas e celebridades para conquistar o público. 
Assim, nasceria uma revolução em vermelho e branco que modificaria para sempre o carnaval das escolas de samba e que ainda encontraria ecos dez anos depois, em 1969, quando o Salgueiro já era mais a escola azarada e conquistaria seu terceiro título – história para outro texto. 
Não perca a série #Efemérides! Texto toda segunda e quinta.

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