#Efemérides | 1969 – A explosão da Bahia salgueirense x O grito revolucionário imperiano

Por Leonardo Antan

O que o fim de uma década pode dizer sobre os anos que passaram e os que estão por vir? Em 2019, a segunda década do século XIX chega ao fim e marca o aniversário de inúmeros desfiles importantes. Dos trinta anos do histórico embate entre “Liberdade! Liberdade!” e “Ratos e urubus” aos cinquenta anos de “Heróis da Liberdade”, dá pra recontar a história das nossas escolas de samba, em síntese, se passarmos por alguns dos desfiles mais importantes da festa. Tentaremos dar conta dessa missão por aqui no mês de novembro. Vem com a gente!

Há cinquenta anos: o fim de uma década marcante

A década de 1960 foi uma das mais importantes da história das escolas de samba, representando um marco do momento em que as agremiações se tornaram grandes expoentes do carnaval carioca para o mundo inteiro. Os desfiles começaram a lotar a Presidente Vargas com arquibancadas montadas especialmente para eles. Os jornais e revistas dedicavam grandes páginas para falar dos enredos, sambas e celebridades que participavam do cortejos. 
Há cinquenta anos, em 1969, duas escolas protagonizaram momentos importantes. O Salgueiro se consolidava como a grande agremiação da década, conquistando seu quarto título em apenas dezessete anos de fundação. Do outro, o Império Serrano cantou os “Heróis da Liberdade” num gesto corajoso que marcou a história do carnaval. Mas antes de chegar lá, vamos relembrar o que aconteceu antes de tudo…

“Exaltando o negro pro mundo inteiro cantar”

Em 1959, o Salgueiro tinha começado a revolucionar os desfiles da escolas de samba ao passar na Avenida com “Debret”. O enredo assinado por Nelson de Andrade e com identidade visual dos artistas Marie Louise e Dirceu Nery começou a implantar uma dinâmica espetacular em meio a transformação das escolas de samba como o principal produto do carnaval carioca. Em 1960, Fernando Pamplona desembarcou na escola vermelha e branca para desenvolver “Quilombo dos Palmares” e a história mudou de vez: uma escola de samba cantava um enredo que trazia o negro como herói, com uma estética afirmativa e cheia de elementos surpreendentes. 
Em 1963, o desfile “Xica da Silva” foi um marco na transformação das escolas de samba.
Já em 1963, a história mudou definitivamente. Com o enredo Xica da Silva, assinado por Arlindo Rodrigues, a vermelho e branco brilhou no primeiro desfile realizado com a montagem arquibancadas na altura da Candelária, na Presidente Vargas. A personagem-título foi encarnada por Isabel Valença e uma ala coreografada por Mercedes Baptista trazia doze casais dançando o minueto, tornando-se uma das grandes imagens daquela apresentação. Era um tema negro, engajado e também com elementos espetaculares, que dialogavam com o teatro e ópera, conquistando o público que se interessava cada dia mais pelas escolas de samba. (Saiba mais sobre esse desfile aqui)
O Salgueiro se tornou a escola-símbolo daquela época, dialogando tanto com a intelectualidade que se preocupava com os rumos das escolas quanto com o público que lotava as apresentações. Assim, desfilou tanto temas negros e politizados, como fez desfiles cheios de elementos visuais requintados, fantasias luxuosas e muito samba no pé. 
Outra escola que correu atrás também de conquistar os jurados mais uma vez foi a Portela. A azul e branco trouxe da Academia o presidente Nelson de Andrade, em 1962, que depois das transformações no Salgueiro, seguiu fazendo inovações na Majestade. Ainda assim, não teve para ninguém. O Salgueiro foi campeão com Xica da Silva, em 1963, e depois, em 1965, com História do Carnaval Carioca. 

“Bahia, meus olhos ainda estão brilhando…”

Desde do título em 1965, o Salgueiro seguiu sem vencer. Para aquele ano de 1969, a escolha do tema não foi fácil. Diziam que cantar a Bahia não dava sorte, nenhuma escola havia ganhado um carnaval cantando um enredo sobre o estado. Para piorar, a Academia não enfrentava uma boa fase financeira. Foi assim que surgiu a icônica frase de Fernando Pamplona, “tem que se tirar da cabeça o que não tem no bolso”. Para driblar a crise, o carnavalesco, ao lado de Arlindo Rodrigues, resolveu usar uma reciclagem para lá de bem bolada. Responsáveis pela decoração do baile de carnaval do Copacabana Palace, os dois desenharam várias peças em vermelho e branco que saíram direito da festa luxuosa do hotel no sábado de carnaval para o desfile na Presidente Vargas, no dia seguinte. 
A destaque Isabel Valença com uma fantasia de baiana luxuosa.

Muitos fatos marcantes se eternizaram naquela apresentação. Vários desfilantes incorporaram orixás, comandados pela bailarina Mercedes Baptista. O professor Júlio Machado veio de Xangô, o que lhe originou o apelido que o eternizaria: o Xangô do Salgueiro. Isabel Valença foi uma luxuosa baiana, mas quem roubou a cena foi a jovem Narcisa. A passista fez a plateia delirar, e se acabou tanto que até perdeu o sapato e não parou de desfilar mesmo sem o calçado e com o asfalto quente. O samba-enredo tinha uma letra animada e empolgante, quebrando com a tradição dos chamadas sambas-lençóis. O hino foi cantado por ninguém menos do que Elza Soares. 

“Yemanjá enriquecendo o visual”

Um dos marcos dos desfiles foi a primeira grande alegoria a ficar gravada na memória dos sambistas: nada mais, nada menos que a representação de Iemanjá, a orixá das águas salgadas. A escultura de pouco mais de três metros era formada por uma cascata de espelhos, material usado até então nunca utilizado nos desfiles. A idealização foi do mestre Arlindo Rodrigues, enquanto Joãosinho Trinta, na época Joãosinho das Alegorias, realizou. Outra figura que participou da produção do desfile foi da então futura carnavalesca Maria Augusta, que até hoje relata o encantamento que a alegoria causou na concentração daquele desfile. O relato dela sobre a presença da escultura de papel machê é impressionante. 
Uma dos raros registros da alegoria. 
“Já era dia claro quando os componentes esperavam cansados o início do desfile, sob um calor de rachar. Até que o Fernando Pamplona resolveu mudar a armação da escola. A alegoria da Iemanjá, que viria lá atrás do desfile, foi parar na frente. À medida que ela passava, a escola ia literalmente levantando. Foi uma emoção indescritível ver aquela imagem tão linda passeando pela concentração. Dali pra frente o astral da escola mudou e entramos com tudo”, conta a artista. 
Formada de espelhos redondos recortados e presos por fios de náilon, que formavam cascatas de luz refletindo os raios de sol, o efeito foi tão grande que a tecnologia da época não deu conta. As fotografias da alegorias não retratam com fidelidade a beleza da alegoria, já que a forte luz estourava as fotografias. 

Ao longe, soldados e tambores…

Se foi o Salgueiro quem se consagrou campeão, outra escola ficaria na história também aquele ano. Trata-se de um dos poucos casos de censura da história do samba-enredo. Fundada por estivadores e sindicalistas, o Império Serrano tem nas suas entranhas as lutas sociais. E em meio a ditadura civil-militar e o anúncio do AI-5, os “anos de chumbo” marcavam o período mais difícil do regime. Se em 1967, o Salgueiro já havia contado “A história da liberdade no Brasil”, o desfile do Império era ainda mais claro na crítica. 
O samba-enredo Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira clamava pela Liberdade e recrutava todo o povo para lutar contra a “chama que o ódio não apaga”. A letra não agradou os censores da época e os compositores foram chamados pelo secretário de Segurança da Guanabara, general França. A palavra “revolução” teve que ser trocada por “evolução”. 
Uma alegoria do desfile trazia Tiradentes.
E não só isso, dizem vários integrantes da escola que uma série de fatos estranhos que aconteceram durante o desfile, como voos rasantes de aeronaves da FAB, que acabariam por prejudicar a apresentação da verde e branco. Apesar da incerteza, o Império apresentou um desfile de plástica simples e conquistou um quarto lugar. A força revolucionário do Império permaneceu na memória popular e o samba-enredo se tornou um dos grandes clássicos do gênero, sendo até apontado por alguns especialistas como um dos maiores da história. 


E assim acabava mais uma década…

O final da década de 1960 marcava o fim de um período transformador das escolas de sambas que havia se iniciado exatamente dez anos antes. As escolas de samba se transformaram na principal atração turística e popular do carnaval, lançados como símbolo cultural da cidade. Com a aproximação dos artistas do Teatro Municipal e da Escola de Belas Artes, novos padrões nos quesitos narrativos e visuais foram estabelecidos, aumentando o lado artístico da festa. A vitória do Salgueiro de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues em 1969 reafirmava a soberania e liderança da vermelho e branco no período, transformando-se numa das mais tradicionais agremiações do carnaval carioca.

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