Por Leonardo Antan
O que o fim de uma década pode dizer sobre os anos que passaram e os que estão por vir? Em 2019, a segunda década do século XIX chega ao fim e marca o aniversário de inúmeros desfiles importantes. Dos trinta anos do histórico embate entre “Liberdade! Liberdade!” e “Ratos e urubus” aos cinquenta anos de “Heróis da Liberdade”, dá pra recontar a história das nossas escolas de samba, em síntese, se passarmos por alguns dos desfiles mais importantes da festa.
Depois de uma década de 1960 com enormes e profundas transformações no universo das escolas de sambas, a mudança seguiu de modo crescente durantes os anos seguintes, com transformações dignas de plost-twist de final de série estadunidense. Se o Salgueiro havia surgido como grande potência, conquistando o público crescente dos desfiles com apresentações espetaculares e inovadores, o caminho trilhado iria ser aberto para que novas agremiações ascendessem na folia. Se até então existiam quatro grandes agremiações invictas e protagonistas absolutas, o cenário começaria a mudar.
As 4 grandes: as matriarcas da festa
A Portela sempre se afirmou como sua tradição e se consolidou com uma vitoriosa nata. A Mangueira seguia vencendo nas brechas, conquistando títulos com sua potência e força. Já o Império Serrano contou com o talento de Silas de Oliveira e seus grandes compositores para também se destacar. E, por último, o Salgueiro se juntou ao grupo através da visão de seus grandes artistas, como Nelson de Andrade, Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues. Assim, cada uma com a sua personalidade, pode-se fazer uma analogia entre as agremiações e uma espécie de Vingadores das escolas de sambas. O time ficou conhecido como “Quatro Grandes” e se revezavam nas primeiras posições durante bons anos. Uma das raras exceções foi em 1967, quando a Vila Isabel conquistou a quarta posição e jogou para sexto lugar ninguém menos que a Portela. Anos depois, em 1972, a Imperatriz Leopoldinense também abocanhou seu quarto lugar, dessa vez tirando o Salgueiro do grupo com um complicado desfile sobre a Mangueira. Dessa forma, a década de 70 consolidaria um “trio de penetras” para invadir essa festa.
Tudo começou dentro dos conformes, com as soberanas se revezando nas primeiras décadas de 1970, sem exceção. A Portela foi a primeira, em 1970, com Lendas e Mistérios da Amazônia. Depois, o Salgueiro, com Festa do Rei Negro. Em 1972, o Império Serrano lançou Fernando Pinto e se consagrou campeão com uma homenagem a Carmem Miranda. E em 1973, a Mangueira completou o time das campeãs. E foi então que em 1974 tudo começou a mudar. Após se consagrar graças a atuação de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, a dupla deixou o Salgueiro nas mãos de seus discípulos. Em 73, Maria Augusta e Joãosinho Trinta seguiram o legado de seus mestres com um tributo a escritora e jornalista Eneida de Moraes. Mas, para o ano seguinte, Arlindo Rodrigues aceitou o convite e se transferiu para a Mocidade Independente de Padre Miguel, e Joãosinho estrearia como artista solo na Academia vermelho e branco.
Em meio a isso, as escolas de samba se consolidavam como uma manifestação para lá de popular e comercial. Os sambas-enredos eram lançados em discos que logo se tornaram sucesso de venda, sendo regravados por grandes cantores e cantoras da época, como Elis Regina, Nara Leão e Clara Nunes. As transmissões da TV exibiam os cortejos para todo o país, enquanto as arquibancadas ficavam maiores e mais lotadas a cada ano.
A paradinha de outros carnavais, sei que ninguém pode esquecer jamais!
A estrela da zona oeste não era escola completamente desconhecida do público, apesar de nunca ter ultrapassado da barreira da quinta posição. Graças ao talento do lendário Mestre André, a alviverde se consolidou pelas graças de sua bateria, as paradinhas, e o talento de seu corpo de ritmistas. Tal feito fez o público batizar a Mocidade de modo maldoso como “a bateria como uma escola em volta”, fazendo com que a agremiação quisesse mudar essa percepção. Como investimento do bicheiro Castor de Andrade, a agremiação contratou Arlindo Rodrigues, consolidando uma espécie de profissionalização da festa.
O lendário Mestre André no desfile de 1979. |
Citando a profissão, os bicheiros foram personagens controversos e fundamentais para tantas mudanças. Os contraventores buscariam a festa como espaço de afirmação social, patrocinando pequenas escolas e as transformando em potência. O folclórico Castor de Andrade se aproximou da Mocidade Independente, a família Abrãao David, de Nilópolis, e Luizinho Drummond, da Imperatriz Leopoldinense. E assim, balizados pela força e pelo talento de grandes artistas da festa, o trio formado pela Estrela Guia de Padre Miguel, a Deusa da Passarela e a Rainha de Ramos colocou o fim definitivo na soberania das quatro matriarcas da folia.
As transformações da folia…
Em 1963, Arlindo Rodrigues definiu as bases do carnaval contemporâneo em Xica da Silva, seu formato de um desfile unificado e espetacular seria ressignificado por seu discípulo Joãosinho Trinta. O baixinho maranhense tomaria a narrativa pra si e deixaria a apresentação das agremiações ainda mais espetaculares e grandiosos. Alegorias gigantes, destaques luxuosos, materiais inovadores e narrativas oníricas marcariam o estilo inconfundível do artista. E depois de conquistar um bicampeonato no Salgueiro com desfiles arrebatadores, ele seguiu até a pouco expressiva Beija-Flor de Nilópolis. De pequena coadjuvante, a azul e branco virou protagonista da festa e não só se tornou campeã como conquistou um histórico tricampeonato. Em 1979, então, o terreno estava pronto para que outras agremiações também brilhassem.
O visual luxuoso e barroco da apresentação da Mocidade em 1979. |
Se Joãosinho conquistou cinco títulos seguidos, afirmando sua exuberância criativa, Arlindo Rodrigues não ficou atrás. Na Mocidade, permaneceu atento às transformações promovidas pelo artista que lançou e seguiu a pista rumo a espetáculos cada vez mais grandiosos que eram admirados pelas enormes arquibancadas e pela transmissão da TV. O desejo de Arlindo parecia a unificação do desfile, amarrando um espetáculo com uma verdadeira ópera bem concebida. Foi assim que substitui a entrega do “risco” de produção das roupas para um protótipo da fantasia a ser reproduzida por cada ala, tentando aumentar o controle sobre as fantasias que iriam pra avenida conversassem entre si. O modelo funciona até hoje. Apostou também em materiais brilhantes, introduzindo na folia os metaloides e acetatos.
Arlindo não se manteve obsoleto de modo algum; atento às narrativas mirabolantes de Joãosinho que conquistaram os jurados e o público, resolveu recriar um enredo que já havia feito com novos olhares. Em 1962, ele estreou sozinho no Salgueiro em “O descobrimento do Brasil”, inspirado na ópera de Heitor Villa-Lobos que encenou no Municipal. Dezessete anos atrás, revistou um tema com uma influência mágica. Saindo um pouco da rigidez histórica da narrativa, misturou as navegações portuguesas com o deus Netuno, afirmando que o soberano dos mares tinha dado uma ajudinha, soprando os navios para que desembarcassem em terras portuguesas.
Com as bençãos do divino aconteceu o Descobrimento do Brasil
A Mocidade estava mais pronta do que nunca. Já havia feito grandes carnavais aliando a potência de sua bateria e o apuro estético de seu carnavalesco. Desde “Festa do Divino” e “Mãe meninha do Gantois” havia feito desfiles lindíssimos e que ficaram no quase por uma nota de um julgado ou outro. Com esse retrospecto, pisou na Avenida em 1979 com um requinte de Arlindo visto logo na comissão de frente, que trazia belos figurinos de navegantes portugueses, seguindo à risca a representação de figurinos históricos.
A comissão de Frente da Mocidade. |
O desfile apontou primeiro no branco, apresentando um visual monocromático inovador. As fantasias usavam de materiais ricos e tinham sido feitas com muito esmero. As alegorias completavam o visual de uma narrativa bem alinhada e que dava continuidade ao que era mostrado nas alas. O verde apareceu mais ao final da apresentação, coroando um desfile com assinatura inconfundível de Arlindo Rodrigues. Mas nada parecia tão fácil. A Beija-Flor tinha feito uma boa apresentação no delirante enredo “Paraíso da Loucura” e a Portela afirmava mais do que nunca sua tradição e grandiosidade com “Incrível, fantástico e extraordinário”, assinado pelo brilhante Viriato Ferreira. Quem levaria a melhor?
A apuração reservou surpresas. E o pacote completo da Mocidade Independente foi quem conquistou jurados e público, fazendo a verde e branco finalmente conquistar seu primeiro título. E nas mãos do traço barroco de Arlindo Rodrigues, a escola da Zona Oeste se tornou definitivamente uma das grandes da história da folia. A Beija-Flor conquistou o segundo lugar e a Portela o terceiro.
Apesar do título, Arlindo não permaneceu na escola e pegou um trem com destino a Ramos. Mas a história de certa Imperatriz a gente volta a contar no próximo texto… Pois dez anos depois, a verde e branco da Leopoldina brilharia em duelo que marcou não só o carnaval, mas a história da cultura e da arte brasileira.
Referências bibliográficas:
Livro “As três irmãs – como um trio de penetras arrombou a festa”, de Alan Diniz, Alexandre Medeiros e Fábio Fabato.
Livro “Estrela que me faz sonhar: histórias da Mocidade”, de Bárbara Pereira.