“Enquanto há a possibilidade de democracia e fascismo, a Mangueira fez sua escolha” por Felipe Tinoco

A Estação Primeira de Mangueira é tão grande que nem cabe explicação. O portelense Paulinho da Viola sintetizou bem a dimensão que a instituição cultural verde e rosa tem para si, diante de sua relevância para o carnaval e para o Rio de Janeiro. Cabe abrir, porém, exceções e tentar compreender e explicar as envergaduras da escola e da escolha de seu hino para o carnaval de 2019, definido sob quadra lotada na madrugada do último domingo, já dia 14 de outubro.
(Crédito: arte do logo oficial da escola adaptado para a capa desta matéria)
“História para ninar gente grande” é o tema autoral do carnavalesco Leandro Vieira para o desfile do ano que vem, propondo-se a exaltar outra faceta do país senão aquelas contadas nos livros de educação convencional, senão uma história que é majoritariamente branca, europeia, caucasiana, masculina, machista e normativa. Assim, uma história que demonstra a possibilidade de se conhecer Dandara e Luísa Mahin, mulheres negras fundamentais à luta abolicionista e contra a escravidão. História que revela os Malês, escravos negros de ascendência islâmica que proporcionaram uma revolta decisiva para o Brasil. Que exalta os índios Tamoios. Uma parte do país que enaltece os Cablocos de julho, símbolos da guerra tramada pela independência do país à nação lusitana, e os que resistiram aos anos de ferro como chumbos de tão fortes. E Marielle Franco, a personificação da luta pelos Direitos Humanos e por uma sociedade igualitária e emancipatória, vereadora negra, da favela, executada em 14 de março, com uma investigação que até hoje não achou quem mandou matá-la, nem quem matou Anderson e a vereadora.

Luiz Antônio Simas é historiador e escritor sobre o país, o Rio, o cotidiano, o samba, as macumbas e a folia – e tudo isso junto. Por isso, compartilha da visão e do discurso do Brasil que a Mangueira se dispõe a conceber e realizar. Para ele, a escolha da agremiação foi acertada:

“A vitória desse samba é uma prova que escola de samba é uma instituição que, ao mesmo tempo que negocia, resiste. Foi um samba que fugiu ao controle da própria Mangueira porque ele ultrapassou o limite da escola, ganhou as redes sociais, ganhou os fãs de samba-enredo e os fãs de MPB”, comenta.

Simas explana a ideia de que a excelência da obra não passa apenas por sua perspectiva social e política, mas também por sua riqueza como samba de enredo, denominando-o como brilhante. Lembra, também, das questões da torcida:

“Foi uma torcida espontânea. Nesse sentido, ele era um samba tão melhor que acabou se impondo à própria lógica das disputas. Tomara que ele seja uma referência. Nós temos hoje um grande samba, e esse samba é o pulo de virada para o carnaval 2019”, observa.

Perguntado sobre sua influência na temática da escola, Simas comenta que é amigo do Leandro e que dialogam, mas que o enredo e a perspectiva são do carnavalesco, descrito por Simas como um “intelectual do Rio de Janeiro e do Brasil da maior relevância”.

Leandro, à frente da Mangueira nos três últimos carnavais, é o responsável pela criação da sinopse e de toda estética da agremiação. Para o carnavalesco, o enredo tem muito a dizer, também, sobre a conjuntura do país:

“Se houver Brasil depois das eleições do segundo turno, o enredo da Mangueira é um enredo que dialoga com esse cenário. Ele seria o contrário do que chega ao poder”. E acrescenta: “Um país que não conhece sua história, ou ele repetirá a história ou ele não encontrará representatividade nunca na história que é contada. O enredo da Mangueira é um enredo de representatividade, um enredo que quer eleger pessoas, que quer eleger heróis populares, quer dar representatividade a alguma lutas, principalmente a lutas individuais”.

Leandro também exalta que o tom de tristeza não está presente no seu enredo, embora boa parte dos heróis homenageados tenham sido assassinados:

“É um olhar apaixonado para isso, é um protesto com alegria, não é um protesto triste”, diz. O artista conclui falando que o enredo “quer mostrar que a luta vale a pena, quer mostrar um Brasil que vale a pena, um Brasil que se orgulhe do Brasil. E um Brasil que possa lutar, um Brasil que possa resistir. A importância do enredo da Mangueira para esse cenário é mostrar que lutou, independente se a luta tenha dado certo ou não. Mas que houve alguém que tenha lutado”.

Enquanto o discurso de Luiz Antônio Simas é comprometido em exaltar outra faceta do país e enquanto Leandro Vieira criou “História para ninar gente grande”, Deivid Domênico é um dos autores da obra que tanto chamou atenção à verde e rosa. O compositor também observa a importância do posicionamento da Mangueira no olhar histórico:

“Em 1988, a Mangueira já falava sobre a realidade ou a ilusão sobre a escravidão. O Leandro propôs um enredo muito pertinente pro momento do país, que vive um momento muito odioso. E a gente sabia que a gente precisava ter muito cuidado para fazer esse samba porque a gente precisava falar de coisas sérias, de verdades que não foram ditas. Alertar que a História se repete, e que se a gente não tomar cuidado ela se repetirá, mas de uma maneira delicada, fraterna”, revela.

Além disso, acerca da necessidade de disseminar consciência de classes entre a sociedade, Domênico diz que “o samba, como instituição, é resistência, e precisa alertar isso; é a função dos artistas, é a função dos sambistas, é a função do carnavalesco Leandro Vieira, que é, pra mim, o maior inspirador disso tudo que está acontecendo”.

Mais do que a narrativa adotada nos discursos de Simas, mais do que a criação do enredo e do samba por Leandro e Domênico, o maior recado da noite de ontem está na escolha do samba pela Mangueira. Movida por apoio de formiga, de torcedor a torcedor, pelo reconhecimento de identidade por parte dos corpos que estavam ali presentes e dos avatares que disseminaram a mensagem e a qualidade do samba pelas redes sociais – em tempos que avatares propagam fakenews, correntes e boatos para tentar favorecer candidatos e mudar os rumos das eleições. Os corpos e os avatares fizeram a Mangueira escolher o samba que cita nominalmente as figuras que serão exaltadas, o samba de uma parceria não-hegemônica, o samba que pode ser fortemente adaptado à situação em que se colocam o país e o estado do Rio de Janeiro. O povo de lá clama, assim, que os corpos e os avatares escolham o ziringuidum da democracia no segundo turno. Sabem o retrato que quer ver no Brasil e nas urnas. 

E a agremiação faz ecoar, também, Marielle. Presente. Eternizada na história verde e rosa e na história da verde e rosa, no enredo da Mangueira. Hoje e sempre.
Ouça a gravação da parceria vencedora:

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