Texto por Beatriz Freire e Juliana Yamamoto
Revisão de Luise Campos
A série “Giro Ancestral” está na sua segunda temporada, na qual toda segunda-feira do mês de novembro mergulhamos no universo dos nossos mestres-salas e porta-bandeiras, compreendendo sobre a magia que envolve sua arte. Iniciamos conhecendo algumas porta-bandeiras e mestre-salas históricos do Carnaval carioca e paulistano e, no texto passado, esmiuçamos sobre um instrumento de trabalho essencial para as damas: o mastro, responsável por deixar o pavilhão a uma altura que possa ser visualizado por todos e desfraldado com garbo e elegância. Agora, iremos desvendar os caminhos que levam um casal a alcançar a tão sonhada nota máxima na apuração.
Todos os primeiros casais de mestre-sala e porta-bandeira almejam a nota 10 para, assim, ajudar suas respectivas agremiações. O trabalho para atingir essa nota é longo e inicia-se logo após o término de um Carnaval. Muito além de realizar os movimentos obrigatórios e cumprir sua função de apresentar o pavilhão da escola que defende, a dupla necessita se preparar fisicamente e psicologicamente para o grande dia. Ao longo dos últimos anos, essa arte vem se profissionalizando cada vez mais, tornando-se mais competitiva, exigente e se firmando como um quesito crucial, contribuindo diretamente para a disputa do título ou pela briga contra o rebaixamento.
Como já abordamos na primeira temporada da série, os casais precisam realizar movimentos “padrões” durante suas apresentações, que vão desde apresentar o pavilhão até executar giros no sentido horário e anti-horário. Para realizá-los com perfeição durante o desfile, é necessário preparo físico e muita resistência, já que, além da coreografia, os dançarinos utilizam fantasias pesadas e podem sofrer com contratempos como o vento e a chuva. Em razão disso, muitos casais possuem seus preparadores, que trabalham o condicionamento físico para que consigam executar seu bailado com o mesmo vigor a contar do momento que pisam na faixa amarela do início do desfile até chegarem à dispersão. Tanto o mestre-sala como a porta-bandeira são atletas, pois as apresentações são de alto nível de intensidade, há muito peso sob o corpo devido à indumentária e ainda carregam uma grande responsabilidade, assim como os atletas profissionais de vários esportes.
Um dos preparadores físicos mais conhecidos do Carnaval é Bruno Germano, que cuida de vários casais cariocas do Grupo Especial e da Série A. Em 2020, o profissional trabalhou com os primeiros casais de Acadêmicos do Salgueiro (Sidclei e Marcella), Grande Rio (Daniel e Taciana), Unidos de Padre Miguel (Vinicius e Jéssica) e Viradouro (apenas a Rute). Para Bruno, essa preparação é crucial para um bom desempenho na Avenida e, consequentemente, alcançar um bom resultado. O personal trainer, ao analisar os pontos que precisam ser melhorados, cria um repertório de treinos e exercícios específicos para cada dupla. A preparação inicia-se em outubro e é trabalhada a resistência, a agilidade e a coordenação motora, além do treino dos movimentos que fazem parte da coreografia oficial (princípio da especificidade). Todos os casais que o profissional ajudou diretamente no último Carnaval alcançaram a nota máxima, evidenciando assim seu papel e importância para os dançarinos. Em uma entrevista realizada para o Carnavalize, Bruno Germano enfatiza: “Eu ainda sonho em ver um casal envolvido em todos os aspectos que envolvem um atleta. Fisioterapia, nutricionistas pra cuidar dessa parte de alimentação e psicologia do esporte, porque ajuda trabalhar com a pressão e a responsabilidade. Sonho com uma equipe multidisciplinar envolvida com um mestre-sala e uma porta-bandeira, porque eles têm a responsabilidade como um atleta, têm peso de atleta e intensidade física de atleta. Então eles têm que se cercar de tudo que cerca um atleta, em todas as áreas de atuação […]”
Jeff Gomes, primeiro mestre-sala da Mocidade Unida da Mooca em treino e preparação física para o Carnaval 2020. (Foto: Arquivo Pessoal – Jeff Gomes) |
Em São Paulo, também está cada vez mais comum o trabalho de preparação física envolvendo casais. Dany Romani, que é personal trainer e musa da Mocidade Alegre, além de se preparar para sua apresentação para o carnaval de 2020, ajudou dois grandes nomes do quesito: Jefferson Gomes, primeiro mestre-sala da Mocidade Unida da Mooca, e Adriana Gomes, primeira porta-bandeira da Mancha Verde. Em um trabalho intenso e de poucos meses, Dany montou um repertório voltado para potencializar o desempenho e resistência dos artistas no desfile e prevenir lesões. Com o suporte da profissional, os dois conseguiram a nota máxima pelas suas escolas paulistanas.
Essa preparação foi crucial para o sucesso de Jeff Gomes, já que o mesmo fez uma “dobradinha” no Carnaval ao desfilar na sexta-feira na Série A pela Vigário Geral no Rio e domingo pela Mocidade Unida da Mooca em São Paulo. O mestre-sala explicou a importância da preparação física de um casal para o desfile: “O trabalho de preparação física em alto nível para desfile leva o corpo de dança para uma outra realidade enquanto executor de movimentos em alta performance. Por que usar essas palavras para falar sobre um estilo de dança tão instintivo? Foi-se o tempo em que nós, casais, tínhamos que nos preocupar somente com a travessia da Avenida executando um bailado que agradece os olhares dos jurados. Hoje temos diversas regras de execução de movimento que devemos seguir como a cartilha (literalmente) manda e com o ritmo de bateria acelerado se comparado com décadas passadas. A execução dos movimentos da maneira como é pedida tem que ocorrer em sua perfeição, exigindo muito mais do físico para sustentar os movimentos do que qualquer outra coisa, já que ensaios de coreografias e apresentações são realizados quase que exaustivamente. Esse tipo de preparação específica, que visa a fortalecer o corpo na sua totalidade, mas também busca ter um cuidado a mais com aquilo que você vai executar de movimento na Avenida, faz toda a diferença. Eu tive meu contato com esse tipo de preparação no Rio de Janeiro com o preparador físico Bruno Germano, que junto com a Marcella Alves desenvolveu essa metodologia, que atinge diretamente as áreas que são mais exigidas do seu corpo durante o desfile. Após esse contato, vim para São Paulo, onde junto com a Dany Romani, também profissional da área, montamos um preparo voltado para as necessidades do meu corpo e também das características do desfile de São Paulo, que é diferente do Rio de Janeiro: aqui precisamos muito mais de resistência e lá precisamos de explosão de força. Tive que me preparar para os dois e, sem a preparação, eu com certeza não teria feito dois desfiles com a qualidade física que consegui. Para que as pessoas nos vejam como profissionais, temos que agregar novas formas de trabalho para extrair o máximo do nosso corpo e isso ficar visível na nossa dança.”
Para além do condicionamento físico, outro fator muito importante para a busca pela nota 10 é a criação da coreografia. O entendimento da coreografia por parte dos preparadores físicos e a integração deles com os coreógrafos é fundamental para o sucesso completo em seus trabalhos.
Por falar neles, muito tem a agregar o trabalho dos famosos coreógrafos que hoje marcam presença quase unânime no quesito. Também chamados de diretores coreográficos, eles e elas são ex-mestre-salas e porta-bandeiras ou profissionais do mundo da dança, todos dispostos a somar ao trabalho desenvolvido pelo casal nos ensaios que conduzem ao grande dia. Antes de apresentá-los, é importante ressaltar que a missão do coreógrafo jamais será ensinar o riscado ao mestre-sala ou o giro à porta-bandeira do jeito que lhe convém, já que sempre há a preocupação em respeitar as particularidades e a identidade corporal e de movimentos de cada um dos integrantes de um casal. Assim, seu papel será, tomando alguns exemplos, auxiliá-los no uso do espaço físico, desenhos coreográficos (círculos, diagonais etc.), na prática de exercícios que possam contribuir com um melhor desempenho dos passos que mestre-salas e porta-bandeiras executam tradicionalmente e, ainda, na postura dos defensores dos pavilhões.
O trabalho de Viviane Martins é mais do que conhecido no “mercado dos coreógrafos”. Formada em Educação Física, ela conhece bem as nuances do trabalho de um casal, principalmente pela rápida – mas importantíssima – trajetória que teve como defensora de pavilhões, além de ter sido jurada em São Paulo. Mais do que saber os passos básicos e ajudar a harmonizar a dança do casal, ela conta com um aliado que conhece como a palma da mão: o regulamento. É treinando movimentos e lendo as justificativas que ela atua auxiliando os casais em cima das dificuldades e qualidades de cada um e do que a apresentação precisa ter para ser caracterizada como a dança do mestre-sala e da porta-bandeira, somando-se aos gostos e critérios dos jurados. Não por acaso, já acompanhou dezenas de casais Rio de Janeiro afora, impulsionando e trabalhando o que há de melhor nesses bailarinos do samba.
Beth Bejani também é outro consagrado nome no meio. Bailarina, ela se tornou expert da preparação de casais de mestre-sala e porta-bandeira. A assessoria de Beth, antes de adentrar a coreografia, passa por exercícios, movimentos de força, equilíbrio e postura. Tudo que possa dar uma ajudinha fundamental para que os dois cheguem à Avenida do jeito que devem: aparentando executar seus movimentos com o menor esforço possível, no melhor estilo “parece mas não é” da facilidade. O trabalho com Marcella Alves e Sidclei durante os anos em que trabalharam juntos no Salgueiro disse muito sobre o talento da porta-bandeira, mas também sobre o trabalho fundamental da coreógrafa. Tanto é assim que bastou um intenso ano de trabalho com Taciana Couto e Daniel Werneck, mais tarde, na Grande Rio, para que o casal saísse de uma apresentação insegura para um desfile que arrebatou arquibancadas e garantiu aos dois a nota máxima. O segredo especial parece ser sempre – além das aulas de ballet e toda atividade que possa ser proveitosa – a relação de confiança estabelecida entre ela e o casal, caminho perfeito, dentro de todas as imprevisibilidades, para o sucesso.
Daniel, Beth e Taciana estabelecem, juntos, uma relação de confiança e troca para que, a partir de muito trabalho, a nota máxima chegue. Foto: Reprodução/Instagram |
A verdade é que muitas são as possibilidades e requisitos para conduzir um casal a uma nota 10, mas não há receita pronta. Fosse assim, já teríamos atingido um patamar em que pouca coisa emocionaria e não haveria possibilidade de crescimentos desses homens e mulheres que ostentam o símbolo maior de uma agremiação. Ainda assim, se não fosse a preparação física e coreográfica, além do acompanhamento emocional do casal, o caminho certamente se tornaria mais árduo. Comparando-os a atletas de alta performance, é essencial para que conquistem a nota que lhes é cobrada que tenham um suporte nutricional, de ensaios e psicológico, ou seja, perfeitas condições para que possam exercer o ofício. Parece ter sido uma dose bem servida desses elementos que garantiu a Marcella e Sidclei, Rute e Julinho e Taciana e Daniel as notas máximas do Carnaval passado. Os 50 pontos não se somam por um simples rolar de dados que são lançados à própria sorte no momento da apresentação, mas pelo trabalho de um ano todo.