Imperatriz Leopoldinense: “Xingu, o clamor que vem da floresta”

“O índio estacionou no tempo e no espaço. O mesmo arco que faz hoje, seus antepassados faziam há mil anos. Se pararam nesse sentido, evoluíram quanto ao comportamento do homem dentro da sociedade. O índio em sua comunidade tem um lugar estável e tranquilo. É totalmente livre, sem precisar dar satisfações de seus atos a quem quer que seja. Toda a estabilidade social, toda a coesão, está assentada num mundo mítico. Que diferença enorme entre as duas humanidades! Uma tranquila, onde o homem é dono de todos os seus atos. Outra, uma sociedade em convulsão, onde é preciso um aparato, um sistema repressivo para poder manter a ordem e a paz”.

(Orlando Villas-Bôas, sertanista)

Introdução

– Hoje, não vamos falar apenas de lendas, nem alimentar mistérios que dependem de nossa imaginação. Você cresceu, guerreiro menino, não é mais um curumim. Teve coragem para enfrentar as tucandeiras, traz no rosto as marcas do gavião e já consegue enxergar além das curvas do caminho. Hoje, vamos falar da verdade. É preciso entender o passado para saber o que nos aguardar no futuro.

Quando seus pés tocarem o chão, pise com a certeza de quem ninguém ama tanto esta terra como a nossa gente. Somos o povo da floresta. Os espíritos de nossos ancestrais dormem nos troncos das árvores. O amanhã resiste em cada semente carregada pela força do destino, conduzida pelos pássaros que enfeitam nossos cocares, orientam nossas flechas e repovoam essa gigantesca floresta. Nós somos a floresta e deixaremos que o vento leve este canto aos homens de boa vontade. Eles precisam nos ouvir.

Sim, guerreiro menino, porque quando não existir mais floresta, nossa gente será apenas lembrança e o que eles chamam de país, já não terá nenhuma esperança…

Celebração Tribal

– Nosso irmãos vêm de canoa, dos lugares mais distantes da floresta. Fazem uma roda no centro da aldeia. Corpos pintados, iluminados pela lua cheia. É noite de festa. Vamos dançar ao redor da fogueira. Mavutsinim, o Criador, nos chamou para celebrar a paz e o amor. Tambores, flautas e maracás tocarão a noite inteira. E quando o dia clarear, nossa alma despertará: formosa, cabocla, guerreira… Verdadeiramente brasileira!

Devemos encarar a vida com simplicidade. A terra aquecida pelo Sol é a mesma que a Lua protege com o véu da noite, guardando as surpresas para o novo dia. Sonhos existem, mas o destino somos nós que traçamos: colhemos o que plantamos. A morte faz parte da vida. Ela é o resultado de nossas experiências. É a colheita de nossa existência. Ao guardar os espíritos de nossos antepassados em troncos sagrados, criamos uma ponte para a eternidade. No Kuarup, o que era mito, vira realidade. Celebramos essa derradeira viagem com muita alegria, festejando a certeza de que ratos são os que partem com tamanha serenidade – servindo de exemplo para os seus e a comunidade. Cantamos e dançamos, orgulhosos do nosso jeito de fazer parte da Humanidade.

O Paraíso Era Aqui

– Amamos esta terra muito antes de ela se chamar Brasil. Desde o tempo em que não havia fronteiras. Era céu e chão, até onde os olhos pudessem alcançar, percorrendo serras, florestas, rios, cachoeiras… Sobre o ventre da Natureza, Tupã estendia o seu manto. Como por um encanto, do lago surgia um pássaro sagrado, protegendo a nação Kamayurá, fazendo a vida brotar… intensa, pujante, vibrante, com um infinidade de cores. Nuvens de borboletas enfeitava as flores. Pirarucus, tambaquis, tucunarés povoavam os igarapés. Aranhas tecelãs bordavam suas teias, pirilampos faiscavam na aldeia. Na mata, roncava o javali. Do alto dos buritis, ecoava uma sinfonia. Cigarra cantava, acompanhando um coral de aves. O som grave dos bugios e o esturro da suçurana alertava para um risco permanente à nossa frente. Quem vem lá? Kayapó ou Kalapalo? Tatu ou tamanduá? Assim era a nossa floresta, casa de nossa gente. Não foi acaso que, quando a caraíba aqui chegou, imaginou estar no Paraíso – um Jardim Sagrado, de onde o próprio Deus dele o expulsou.

O “Abraço” da Sucuri

– Se perderam o seu Paraíso, os caraíbas partiram para conquistar o nosso, pequeno guerreiro – talvez, por vingança de Anhangá, o feiticeiro. Impulsionadas pelos ventos da cobiça, as naus aportaram em nossas prais, trazendo ensinamentos que os invasores nunca ousaram praticar. Nada mais seria como antes. Em vez de nos tratar como semelhantes, nos chamaram de selvagens e tentaram nos escravizar. Vinham do Velho Mundo e representavam a civilização. Chegaram arrogantes, se apoderando de nossas terras e riquezas. Levaram ouro, prata e diamantes, e uma madeira que tingia com sangue, lembranças de tantas belezas. Em trocam, traziam espelhos, doenças e destruição. Sua missão era usar a cruz de um Deus que morava no céu, fincando marcos aqui e ali; usando palavras sagradas, deixaram nossa gente esmagada, como no abraço lento e mortal da sucuri.

Belos Monstros

– Caraíba não mede consequências. Acredita na sua ciência, buscando o que chama de progresso. Derruba floresta, espalha veneno e acha o mundo pequeno para semear tanta arrogância. Invade nossas terras, liga a motosserra e no lugar dos troncos sagrados, planta a ganância. Caraíba precisa de mais energia para alimentar os seus interesses. Cria verdadeiros monstros. Belos monstros… usinas que devoram rios, matam peixes, secam nascentes, inundam na lama o futuro de nossa gente. Não podemos deixar, guerreiro menino, que afoguem o nosso destino. Nossa casa é aqui! E não devemos nos curvar. Precisamos honrar cada dente do colar, cada palavra do irmão Raoni!

Caciques Brancos

– Também é justo lembrar de caraíbas que foram amigos. Eles se embrenharam pelo sertão para fazer do Brasil uma grande nação, criando picadas, abrindo estradas e campos de pouso para a aviação. Foram os primeiros a escrever nessas terrras a palavra integração. Eles ficaram encantados com o nosso jeito de ser. Não conseguiam entender que para respeitar e ser respeitado, nenhum de nós precisa vigiar ou ser vigiado. Responsabilidade sempre foi um princípio honrado com a família e a comunidade. Fizemos um kuarup para saudar esses caciques brancos em nossos rituais. Eu ainda era rapaz, pequeno guerreiro, quando os vi no Roçador. Acompanhei suas expedições. Vinham em batelões, trazendo respeito e amor. Ficarão para sempre em nossos corações, protegidos por Tupã. Louvados sejam os irmãos Villas Boas, que nos ajudaram a encontrar a passagem para o Amanhã!

O Clamor da Floresta

– As nações xinguanas se reúnem para celebrar o orgulho de ser índio e pedem licença para falar: Enquanto o caraíba não recuperar o seu equilíbrio, a Natureza agonizará. E sem ela, sem a proteção da Mãe de todos nós, estaremos ameaçados – seja na terra dos civilizados, ou nos confins dos povos isolados. Já é tempo de o caraíba cultivar a humildade e aprender com o índio o que chama de sustentabilidade. Precisa esquecer os lucros, o progresso, o consumo e o desenvolvimento; zelar pelos sentimentos e os compromissos com a Humanidade, retirando da Natureza apenas o que basta para o seu sustento.

Jovem guerreiro, voe nas asas do vento e espalhe estas palabras de Norte e Sul. Os povos não-índios precisam entender que é chegado o momento de ouvir o clamor do Xingu!

Pesquisa, desenvolvimento e texto: Cahe Rodrigues, Marta Queiroz e Cláudio Vieira

Glossário

Anhangá – Segundo o índio, espírito que vagava após a morte, atormentando os viventes.

Batelões – Embarcações de fundo chato, usadas para navegar em rios rasos.

Bugio – Espécie de macaco também conhecido como guariba ou barbado.

Buriti – Palmeira que dá um fruto do mesmo nome, rico em vitamina C e largo uso na cosmética.

Caraíba – Segundo o índio, o branco.

Kalapalo – Uma das 16 etnias do Parque Indígena do Xingu.

Kamayurá – Uma das etnias do Brasil Central

Kuarup – Ritual xinguano em homenagem aos mortos.

Mavutsinim – Segunda a etnia Kamayurá, o primeiro homem, o Criador.

Pirarucus, tambaquis, tucunarés – Peixes dos rios da Amazônia e do Brasil Central.

Raoni – líder indígena da etnia Kayapó.

Roncador – Serra do Roncador, o ponto mais central do Brasil, situado entre os rios das Mortes e Araguaia, entre os rios Kuluene e o Xingu, no Mato Grosso.

Suçuarama – Onça parda.

Tucandeira – Formiga cuja picada é capaz de matar um homem. No ritual da iniciação, quando da passagem do menino índio para a adolescência, os jovens guerreiros provam a sua coragem colocando a mão em luvas de palha com várias dessas formidas, suportando as ferroadas durante 15 minutos.

Tupá – o deus supremo dos indígenas.

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