#Padroeiros: batuques ao caçador, o agueré independente

Depois de passear pelos carnavais da última década e também pelos baluartes da história das quatro matriarcas do carnaval carioca, além do Giro Ancestral dos defensores de um pavilhão, chegamos ao sincrético ápice de uma escola de samba quando o assunto é louvação – seu padroeiro. Poucos são os elementos aos quais são ofertados tanta devoção e respeito como os santos e orixás que regem e protegem uma agremiação. Por isso, lançaremos quatro textos que passearão pelas histórias desses seres divinos e por alguns pontos dessa relação litúrgica, sintetizando perfeitamente o binômio sacro-profano que é o carnaval.
Seja pela levada do ponto de chamada do orixá que influencia a batida da bateria, seja pela emoção que toma conta ao cantar o samba-exaltação à agremiação e ao padroeiro no esquenta, a série está no ar. É nossa missão sempre relembrar que existe algo muito além daquilo que circula entre o céu, a terra e o sagrado solo da quadra de uma escola de samba, ou a Marquês de Sapucaí. Vamos conhecer mais dos #Padroeirostodas as quartas-feiras de julho, aqui no Carnavalize.
Depois de abordarmos a relação de devoção entre São Sebastião e, indiretamente, Oxóssi com a comunidade do Paraíso do Tuiuti no primeiro texto (leia aqui), prosaremos hoje sobre a influência do toque para o orixá das coisas belas na Não Existe Mais Quente. Antes de tudo, contextualizaremos como a levada dos atabaques, responsável por evocar as divindades em um terreiro, influenciou a construção identitária dessas escolas e também como essa influência foi sendo perdida ao longo dos anos. Por fim, passearemos brevemente pelo enredo da Mocidade Independente para o próximo carnaval, seja lá quando ele for. O tema apresentando pela agremiação, até então, não tem sinopse divulgada, mas versa com uma narrativa que busca retomar essa identidade tão forte em outrora, mas substancialmente asfixiada pelas mudanças que o carnaval tem sofrido.
Foto: Dhavid Normando/Riotur | Arte: Vítor Melo/Carnavalize

Por Vítor Melo, com colaboração de Eryck Quirino
Revisão por Beatriz Freire e Leonardo Antan
A base oral, que embala a história do samba e, de certa forma, comporta-se como fonte de onde bebemos a inspiração para escrever textos como esse, é fundamental. Portanto, reza a lenda, confirmada pela prosa dos mais antigos bambas da Vila Vintém, que ninguém, nos idos que sucediam o ano de fundação da Mocidade Independente de Padre Miguel, rumava aos ensaios sem passar antes pelo terreiro de Tia Chica. A mãe de santo, líder religiosa do bairro, garantia aos ritmistas boas energias e um ótimo ensaio com seus passes sinérgicos, decretando, mesmo que involuntariamente, o aval para que os surdos de terceira (salve Tião Ziquimba), os chocalhos de platinela e a inconfundível afinação da bateria mais quente do carnaval começassem a tocar.
Nesse ponto, entra um dos principais protagonistas de nosso papo: Mestre André! O Maestro do Povo, como ficou conhecido, era filho de santo e ogã do terreiro de Tia Chica. Pra quem não é do babado, entende-se pelo responsável pela sonoridade dos atabaques durante um ritual afro-brasileiro. A Mocidade é devota de São Sebastião, cruzada como Oxóssi nas macumbas cariocas (leia aqui o texto sobre a relação entre o Paraíso do Tuiti e o santo-rei). Partindo dessa premissa e desse contexto histórico, dá-se o quê de genialidade do inventor das paradinhas. Novamente norteados pelo o que contam os baluartes da verde e branco, a construção identitária da bateria se deu pela associação dos sons dos tambores, que evocam toda a ancestralidade africana do sincretismo religioso, à sincope das escolas de samba.
Mestre André no carnaval de 1979 frente a seus ritmistas. Foto: Reprodução Facebook/Mocidade

Dessa forma, criou-se a relação entre o toque de orixá e bateria da Mocidade, que, aos poucos, foi se consolidando como uma das principais baterias do nosso carnaval. O destaque dos tambores independentes era tanto, que veículos jornalísticos da época difundiam a ideia de que a escola da Vila Vintém e de Padre Miguel era apenas uma “bateria com pessoas ao redor”, dando total protagonismo à cadência impregnada pelos ritmistas, relegando, de certa forma, todo o restante. Essa ideia, porém, foi dissipada logo em 1958, segundo desfile da agremiação, quando se sagrou campeã e provou que não era “só bateria”, mas também aquilo. A importância da batida de uma escola ligada epistemologicamente às suas raízes africanas é perfeitamente destrinchada e explicada por Luiz Antonio Simas em seu livro “O Corpo Encantado das Ruas”. “Há uma sofisticada pedagogia do tambor, feita dos silêncios das falas e da resposta do corpo, fundamentada nas maneiras de ler o mundo sugeridas pelos mitos primordiais” (2019, p. 29), segundo ele, prega-se que as escolas de samba, durante boa parte de sua trajetória, contaram a história oficial, porque nos atentamos estritamente ao espetáculo visual e à narrativa proposta pelo enredo.
Se assistíssemos aos cortejos carnavalescos com os ouvidos, veríamos que a história é outra. As baterias, detentoras da ancestralidade que as caixas de guerra possuem por exemplo, contam histórias completamente diferentes para os conhecedores dos mitos que o couro do tambor carrega. Limitar a interpretação de um enredo pelo viés puramente temático é podar a relação de pertencimento entre aquele momento de transe e o ritmista dotado da habilidade de se comunicar e entender as entrelinhas ditas pelo ritmo. Para exemplificar, voltemos à Mocidade. A alviverde se apropria do toque para o orixá das coisas belas, o agueré, para sustentar a levada do naipe de suas caixas e, por conseguinte, harmonizar os instrumentos restantes. Por tese, a batida para Oxóssi emula a ida do caçador à floresta em busca de sua presa (vídeo abaixo de Simas explicando cirurgicamente toda a simbologia envolvida no toque). Oriundo de todo esse fértil campo simbólico das religiões de vertentes africanas, sustenta-se a ideia da importância de uma aproximação de ícones das escolas que os liguem às suas raízes e sirvam como mecanismos de manutenção da preservação de identidade, ritos e fundamentos que nos encantam e engradecem esse espetáculo.

Por outro lado, não é exclusividade da Não Existe Mais Quente a batida com influência “afro”. Escolas, como Portela, Mangueira e Salgueiro também sustentam ritmos que versam com a ancestralidade de seus padroeiros e muitas outras já mantiveram, mas perderam, em certo ponto, a identificação com a origem da identidade sonora de seus criadores, ritmistas e principais baluartes. Esse acontecimento se dá principalmente pela aceleração constante das levadas impregnadas carnaval afora (o famoso “BPM”), assemelhando-se inclusive ao ritmo de frevo em alguns casos específicos. Aliado a esse fator, a volatilidade entre alguns ritmistas, diretores e mestres de bateria, que chegam a novas escolas, sem o conhecimento necessário para codificar a mensagem que os tambores daquele lugar propagam. Mudando assim totalmente a identidade do toque, contribuindo para a desconfiguração entre a relação da bateria com a própria história da comunidade e da escola.
Na contramão dessa tendência, a Estrela-Guia da Zona Oeste anunciou seu enredo para o próximo carnaval, que conforme plenária realizada na LIESA, no dia 15/06/2020, segue sem data definida por conta da pandemia do Novo Coronavírus. O tema “Batuque ao Caçador” é em alusão ao orixá da fartura e da caça, padroeiro da escola, e versará com a história de criação da identidade da bateria independente, retomando, em um espectro geral, a valorização das raízes da escola e de todas as referências que corroboram para construir a Mocidade que todos nós conhecemos hoje. O enredo e a sinopse foram idealizados e concebidos pelo totêmico Fábio Fabato, jornalista, escritor e torcedor apaixonado da Mocidade e já a parte visual ficará pela batuta do carnavalesco Fábio Ricardo. O texto base da história que a escola contará na avenida ainda não foi divulgado, mas já nos deixa bastante ansiosos para conhecê-lo somente pela premissa divulgada. Além da ansiedade, emano o sincero desejo por mais escolas que busquem retomar suas identidades, cultivem a imaginação percussiva¹ e valorizem, sobretudo, seus fundamentos, assim como a Mocidade, de Mestre André, de Sebastião Miquimba, de Toco, de Quirino da Cuíca e de tantos outros baluartes incontestáveis, faz com maestria. Okê, arô!
¹Imaginação percussiva” é um termo utilizado por Tião Maquimba, inventor do surdo de terceira junto ao Mestre André, em diversas entrevistas. Esse conceito é a genial narrativa responsável pela criação do instrumento, que intercala batidas inesperadas no silêncio entre as síncopes características do samba.
Referências bibliográficas: artigo “Cinqüenta primaveras especiais”, de Fábio Fabato, presente no portal Academia do Samba (clique aqui para ler) e o livro “O Corpo Encantado das Ruas”, de Luiz Antonio Simas, lançado pela Civilização Brasileira em 2019

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