#QuilombodoSamba: Coletivismo e comunitarismo africano na tradição dos quilombos do samba

O Quilombo do Samba é um coletivo negro de pesquisadores do carnaval brasileiro propondo uma discussão afrocentrada sobre a festa. Quinzenalmente aos sábados, suas reflexões vão ar aqui no Carnavalize.
Texto: Osmar Filho e Guilherme Niegro
Para o nosso ancestre Abdias do Nascimento em O Quilombismo: “O capitalismo está em contradição direta com o comunalismo tradicional de nossas culturas africanas”, o que corrobora com os princípios do Quilombo do Samba: compreender toda espoliação que nossa cultura vem sofrendo pelo capitalismo neocolonial. Segundo o Mestre Quilombola Nego Bispo, ainda vivemos sob a colonização do capital euro-cristão e seus descendentes e, com isso, espaços como as Escolas de Samba têm o dever, por sua origem negro-africana, de serem contra-colonialistas. 
Candeia e Isnard de Araújo, no livro ESCOLA DE SAMBA: Árvore que se esqueceu a raiz, dizem: “As rodas de sambas realizadas com a finalidade de divertimento ou recreação[…] Essas reuniões constantes e periódicas contribuíram de forma eficiente para o fortalecimento das bases para a criação de uma escola de samba”. Não só as rodas de samba, como também a proteção dos terreiros, o jongo, entre outros modos e significados culturais negros, expõem sempre a nossa coletividade em prol de uma unidade buscando sempre o fortalecimento coletivo.
Abdias Nascimento nos diz também que “Devemos, por isso mesmo, considerar inimigos a todos aqueles que, mesmos inconscientes, clamam por uma modernidade”. Assim, trago uma frase dos nossos poetas do samba, o Mestre Paulinho da Viola, que diz: “Tá Legal, eu aceito o argumento, mas não altere o samba tanto assim”. Mestre Candeia, por meio da canção de outros dois mestres Nei Lopes e Wilson Moreira,  com suas críticas importantes, já pressentia toda a expropriação que sofreriam os Quilombos do Samba, tal qual os Quilombos do período colonial foram invadidos, dominados, violados, roubados e apagados e/ou invisibilizados: “Há mais de quarenta mil anos atrás a arte negra já resplandecia/E hoje são lembranças de um passado/Que a força da ambição exterminou”.
“Ogã”. Osmar Filho
A partir disso, o que era feito e organizado em coletivo vem cada vez mais sendo construído de forma individualizada. Reflexos de uma estrutura capitalista/colonialista, que busca sempre individualizar ações, “separar para conquistar”, o que se reflete nas tomadas de decisões acerca da cultura negro-africana, com a entrada do capital que passa a individualizar o que era coletivizado foi deixado para trás, como apontava Beatriz do Nascimento, em ensaio de 1977: “A perda da identidade racial é trágica para nós.  Hoje, neste momento, eu estou infeliz. Porque uma ala de 20 cuiqueiros da minha escola (…) não desfilou no último carnaval e não pode desfilar mais. Longe das favelas, estão sem dinheiro para pagar as fantasias que o desfile exige (…) É triste saber que eles são os artistas mas que na verdade quem anda gravando a música dele é o branco. Que vai gravar de uma forma feia, de uma forma que não é dele, mas que vai lhe dar o dinheiro para ter a casa na Barra da Tijuca”.
 
Av. Pres. Vargas. Autor: Osmar Filho
Abdias Nascimento definiu a essência da arte negra: “Nosso ser histórico é de origem mítica. Esta é uma lição da nossa arte, ao contrário da arte do chamado Ocidente, tem para nós o sentido de uma vivência natural e criativa. Alimento e expressões de nossas crenças e valores igualitários, assumimos esse poder do talento e da imaginação como mais poderoso instrumento e no diálogo com as nossas mais profundas raízes no espírito e na história”. 
Um dos pilares básicos do Comunalismo é o papel das mulheres negras e sua capacidade criativa e de luta, desde as matriarcas rainhas e chefes de Estados nos Reinos Africanos, a organizadores de vários sistemas de ganho para libertar seu povo da escravização europeia, as Ialorixás nos terreiros e se tornando as tias Baianas das Escolas de Samba. N’’Zinga M’bandi, Luíza Mahin, As Ganhadeiras, Ciata, Esther, Vicentina, Neuma, Suluca, Ivone, Nilda, Dodô, Mocinha, Maria do Jongo e tantas e tantas outras mais que contribuíram e contribuem para estabelecer as bases dos Quilombos do Samba nesta sociedade fincada no anti-negrismo. 
 
“Iemanjá enriquecendo o visual”. Autor: Osmar Filho
‘Reverenciamos a memória 
Desses bravos que fizeram nossa história.’
 Wilson Moreira e Nei Lopes (Granes Quilombo)
Os Quilombos do Samba exercem forças contestadoras contra os neocolonialistas, mas, a partir da “modernização capitalista” destes espaços contracoloniais, passam a entrar em contradição com seu propósito. Fica a pergunta no ar: se as escolas de samba são de origem negra e, por consequência, faz parte de sua cultura o protagonismo negro, os enredos que se realizavam antes da década de 1960 são considerados o quê? Senão afros, negros? Trazendo novamente o mestre quilombola Nego Bispo, a branquitude sempre molda seus modos e significados para se apropriar do legado do Outro, surgindo daí denominações redundantes (e ao mesmo tempo contraditoriamente excludentes) como “enredo afro” e “afrossamba”. 
Tal expropriação faz parte de todo sistema capitalista. Ao se transformarem em empresas, “Super Escolas de Samba S/A, super alegorias, escondendo gente bamba que covardia”, como cantou o Império Serrano (1982), os comandantes destas instituições passaram a podar a criatividade natural da coletividade e do comunalismo negro-africano em detrimento daquilo que dá dinheiro, um panorama de conflito e dominação também sinalizado por Mestre Cadeia: “Mais tarde a Etiópia milenar / Sua cultura até o Egito estendia / Daí o legendário mundo grego / A todo negro de etíope chamou”. Esses versos sintetizam a simplificação grega da complexidade africana. Chamando a todo negro de etíope, o homem grego apagou a diversidade da coletividade africana, transmitindo aos seus descendentes essa mesma postura redutora do passado. 
Torrente ancestral. Autor: Osmar Filho 
Apesar desse embate, nas palavras de Mestre Abdias Nascimento, “Existe outra condição da vida africana que nunca se modificou durante a história do meu povo, nossa resistência contra a opressão e nossa vitalidade e força criativas. Trouxemos conosco, desde África, a força do espírito, das nossas instituições socioeconômicas e políticas, de nossa religião, arte e cultura. É essa essência do nosso conceito de Quilombo”. 
REFERÊNCIAS ANCESTRAIS
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: Documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019
NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição.  Diaspora Africana: Editora Filhos da África,  2018.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015.
DISCOGRAFIA
LOPES, Nei & MOREIRA, Wilson. AO POVO EM FORMA DE ARTE. In: A arte negra de Wilson Moreira e Neto Lopes, EMI-Odeon, 1980.
VIOLA, Paulinho. ARGUMENTO. In: Album Paulinho da Viola. Odeon. 1975. 
MACHADO, Aluísio & Beto Sem Braço. Bumbum Paticumbum Prugurundum, Gres Império Serrano, 1982. 

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