Raízes da Garoa: no berço do batuque – os ritmos e baterias paulistanas

 

Texto: João Vitor Silveira
Revisão: Luise Campos
Chegamos no mês de outubro e iniciamos a nova série do Carnavalize, Raízes da Garoa. Todas as segundas-feiras, iremos destrinchar o carnaval de São Paulo, desde suas origens, até a sonoridade dos seus sambas-enredo e bateria, além de outros segmentos importantes: o visual e a dança. O objetivo desta série é explicar as peculiaridades e diferenças que envolvem a folia paulistana e a sua importância para a cidade. 
É impossível discutir o carnaval sem levar em consideração a sua sonoridade. A festa é repleta de conceitos importantes e bem trabalhados, que oferecem a conexão e a conversa com o público, presente de diversas maneiras. Seja dialogando com o público que preenche as fileiras da Avenida ou com a audiência fiel que, do conforto do seu sofá, acompanha os desfiles, o carnaval e as escolas de samba contam com diversas ferramentas para criar a identificação com a comunidade que assiste e respira a folia momesca. Por intermédio de uma comissão de frente cativante, uma fantasia deslumbrante ou uma alegoria impactante.
Mas todos esses quesitos se conectam através de uma constante: o som. Conforme as imagens passam à frente dos seus olhos – e você se sente maravilhado por elas -, existe uma constante sonora chegando aos seus ouvidos, que ajuda a gravar e perpetuar aquelas sensações. E, ao falar do carnaval de São Paulo, é necessário considerar todas as variáveis relacionadas à sua origem, que fazem com que o samba paulistano tenha influências particulares, que o tornam característico e único, com todo o mérito. 
Capa do CD do projeto sobre o Samba de Roda de Bom Jesus de Pirapora – Foto: Acervo das Tradições
Ao observar a maneira como o carnaval cresce ao longo do século XX, é necessário considerar-se a influência carioca na folia e as ligações que fazem com que ele tenha se tornado, na visão geral, o “padrão” de festejo carnavalesco do país. O papel do Rio de Janeiro enquanto capital federal nas primeiras décadas do último século influencia diretamente uma visão, que perdura até os dias de hoje, de que aquele seria o modelo a ser seguido e que, portanto, os outros carnavais seriam diferentes do carnaval carioca, com todo o juízo de valor que isso pode trazer.
É necessário ir de encontro a essa narrativa e considerar todas as particularidades que envolvem a formação, construção e consolidação de uma cultura popular. Quando colocamos o carnaval da capital paulistana sob a lupa, é possível observar que a sua origem se fundamenta sob influências e perspectivas diferentes. Como foi bem abordado no primeiro texto da série (colocar o link), a origem das escolas de samba de São Paulo nascem da conexão entre os cordões carnavalescos e a influência do samba rural do interior paulista. 
Dessa maneira, as características musicais presentes no samba rural paulista se conectam de forma profunda com as escolas de samba em seu berço, de forma que essas diferenças estejam presentes na forma que o samba e o carnaval paulista se forma, se constrói e se consolida, ainda que existam aproximações com o carnaval carioca ao longo de sua formação. Esse processo foi encabeçado pelo Seu Nenê que, por ter parentes no Rio de Janeiro e por fazer visitas recorrentes à cidade e às escolas cariocas, foi um dos pioneiros na inclusão de instrumentos cariocas nas baterias, na Nenê de Vila Matilde. 
Carnaval no Parque do Ibirapuera Arquivo Histórico de São Paulo.- Escola de Samba Nenê de Vila Matilde – Bateria, 1960
Ainda assim, alguns aspectos musicais vão estar carregados das festas religiosas do interior paulista para os cordões carnavalescos que, por sua vez, vão influenciar também a formação da sonoridade do carnaval paulista. Muitos dos primeiros líderes das agremiações dos festejos populares na terra da Garoa tinham uma influência muito grande dessas festas religiosas, como, por exemplo, a festa de Bom Jesus de Pirapora. A festa seria um dos pontos de aglutinação do samba de bumbo, um dos aspectos culturais do interior paulista fortemente ligado com a herança cultural negra, tendo principalmente origem bantu.
Enquanto o samba carioca, com a influência da Turma do Estácio e do samba de partido alto, se descola da rítmica do maxixe e se aproxima da marcha, o samba paulistano também vai se aproximar da marcha, a partir de sua marcha-sambada, mas com menos influência urbana nessa transformação. Assim, a influência do samba de bumbo se torna bastante presente e reconhecível no carnaval paulista. Dessa maneira, características ligadas de forma intrínseca àquele tipo de samba são observáveis primeiramente nos cordões e depois nas escolas de samba. O bumbo, instrumento característico que dá nome ao termo “guarda-chuva” que abrange diversas manifestações culturais do interior paulista, se faz presente nas baterias até o fim da década de 1960. 
Fotos do Samba Lenço de Mauá na Festa do Folclore de Olímpia, SP – Foto: Acervo Ayala
Essa cultura se faz tão forte e presente que, ainda que haja uma aproximação com o samba carioca ao longo das décadas de 1930 a 1960, os instrumentos de sopro, que eram parte essencial das festas populares paulistas, se fazem presente nas baterias também até o final da década de 1960. E vale destacar que eles já tinham sido barrado das baterias cariocas muito antes. Entretanto, as baterias das escolas de samba são, assim como o próprio carnaval, um organismo vivo que se reinventa e se transforma. Assim, as baterias paulistas passam por diversas transformações ao longo dos anos, como na afinação dos instrumentos e no seu andamento. Assim como, é claro, com a intensa troca entre o carnaval paulista e carioca, que nunca deixou de acontecer.
Nesse esforço para aprender mais sobre o carnaval e, principalmente, as baterias paulistas, nada melhor que falar com uma de suas referências para entender mais sobre as diferenças e semelhanças presentes nelas. Assim, conversei um pouco com Rodrigo Neves, mais conhecido como Mestre Moleza, comandante da bateria da Unidos de Vila Maria sobre essas conexões:
Mestre Moleza no comando da Cadência da Vila no desfile de 2020 – Foto: Felipe Araújo LIGASP
“Existem as influências dos cordões tradicionais e também do carnaval do interior, que era bem tradicional. Mas, ao longo do tempo, vão ocorrendo transformações. As baterias são muito de época, né? Houve épocas em que o andamento veio para trás, outras épocas em que o andamento veio para frente. Poucas escolas mantiveram aquelas influências lá da origem, porque vai ocorrendo o intercâmbio entre as escolas. A questão das terceiras desenhadas, que viraram tendência, vêm muito da influência do mestre Odilon, com as inovações na Grande Rio, e do finado mestre Marcone. Não é uma característica que nasceu em São Paulo, e sim veio de uma tendência do Rio, e que hoje já ganha uma retomada para um toque de mais levada, de padrão, sustentação.”
Além disso, o mestre Moleza também aponta o que, na sua visão, são as diferenças mais significativas entre as baterias do Rio e de São Paulo. Para além da questão sonora, em que ocorre muita troca e intercâmbio, de maneira que haja uma aproximação grande, uma das grandes diferenças está na estrutura: 
“Hoje eu vejo bastante semelhança entre as boas baterias de São Paulo e do Rio de Janeiro. Existem outras diferenças, como, por exemplo, as baterias do Rio de Janeiro que saem mais volumosas, em termos de quantidade. Existe uma questão cultural forte também. Muitos ritmistas no Rio herdam isso de um pai que já tocava, de um avô que já tocava, enquanto aqui em São Paulo a gente trabalha muito com a questão das escolinhas de bateria. Então é a construção com pessoas que talvez nunca tiveram contato com música e acabam desenvolvendo e aprendendo a tocar. Aqui a gente tem muito pouco a questão das escolas mirins, que ajuda no desenvolvimento desde cedo, então tudo passa bem mais pela visão das escolinhas de bateria.”
O mestre Moleza, junto com a sua diretoria de bateria, esteve à frente de um projeto inovador na Unidos de Vila Maria durante a pandemia do novo coronavírus. A escolinha de bateria da agremiação, que é um projeto bem fundamentado e conhecido – além de bastante concorrido – não parou durante esse ano. Eles adotaram uma estrutura diferente, partindo num primeiro momento das aulas remotas, com inovações bem interessantes para permitir aos alunos acompanharem as aulas e simularem os instrumentos em casa. Foi feita, por exemplo, a confecção de agogôs a partir de latas de achocolatado e foram utilizados cadernos para simular as caixas, tudo pensado para uma posterior transição. O processo culminou na formatura dos alunos no último domingo, 04 de outubro. 
A equipe da Unidos de Vila Maria que conduziu o projeto da Escolinha de Bateria, através da qual a bateria se renova para continuar seu trabalho de excelência: São 7 anos garantindo a nota 30 – Foto: Reprodução – Instagram Cadência da Vila
O exemplo do mestre Moleza e de sua equipe demonstram que, no final das contas, não há diferença entre as baterias de São Paulo ou Rio de Janeiro no que diz respeito ao cumprimento de sua função mais humana: formular mudança e agregar positivamente, por intermédio da cultura e da música, à sociedade. Precisamos todos desconstruir a noção do diferente e entender que cada bateria e cada escola vão ter suas próprias características e isso apenas engrandece a nossa festa. Seja em São Paulo, no Rio, Vitória ou Uruguaiana. 
Na semana que vem, a Raízes da Garoa volta para comentar sobre a construção visual do carnaval paulista. Não deixe de acompanhar e #CarnavalizeConosco!
Referências: 
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao40/materia06/ 
https://www.sambariocarnaval.com/index.php?sambando=paulista01 
https://globoplay.globo.com/v/8290718/ 
http://www.patrimonioimaterial.sp.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/enecult-samba-de-bumbo-2017.pdf 
A Batucada da Nenê de Vila Matilde – Bateria de Escola de Samba Paulistana – Documentário de Chico Santana.
Uma História do Samba: As Origens – Lira Neto

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