Já parou pra pensar no quanto se lutou para acordar num simples domingo como esse e, em poucos segundos, exercer o maior direito que a democracia nos concede? Não!? E parar pra pensar na voz e participação que o carnaval teve nisso tudo? Ditadura, democracia… Corrupção. Ahn! Também não? Nessa final de semana especial, a “Carnavápolis”, do Léo Antan, e a “Sambalizando”, do Vitor Melo, se uniram para contar um pouco dessa história.
Até hoje você não sabe o porquê da proibição de qualquer instrumento de sopro nas baterias ou o motivo da obrigatoriedade das divinas baianas das escolas? Simples. Herança. – Mas herança? Como assim? Desde de seu começo, o samba, em si, tinha como principal objetivo o cultivo às suas origens, sua raiz. Ressaltar a cultura negra, valorizar seu batuque, suas influências. E era necessário, afinal o samba era tido como um ritmo negro marginalizado.
Como o sambista não é bobo nem nada, para conseguir se manter no cenário nacional e, de fato, sobreviver; cada vez mais, as escolas assumem seu lado negociador, que as mantém vivas até hoje. As agremiações foram se adequando nos mais diferentes períodos e assim sobrevivendo. Na Era Vargas, por exemplo, os enredos patrióticos serviam para construir e fortalecer a ideia nacionalista tão forte no governo vigente – todo aquela concepção ufanista. A Majestade do Samba, nossa tão querida Portela – diversas vezes campeã nessa época – era a escola que melhor sintetizava essa fase histórica, sempre exaltando a tão querida pátria. Cantavam-se heróis brancos, as roupas eram de nobres, mas o ritmo e a força do tambor não escondiam a negritude da festa.
E numa reviravolta da cor, o divisor de águas dessa tentativa de “enbraquecimento” só veio com o Quilombo dos Palmares salgueirense e mestre de todos nós, Fernando Pamplona. Professor universitário, de esquerda, participante dos centros de culturas populares, o também cenógrafo trouxe sua ideologia através de figuras não tão conhecidas da história brasileira à época como Zumbi, Xica da Silva, Chico Rei. O canto do negro ecoava na essência e na aparência. Numa voz só.
Com o golpe de 1964, as escolas se dividiram, como toda a sociedade. De um lado, a força e a coragem do Império Serrano em 1969 ao cantar os “Heróis da Liberdade” clamando em seu samba “A revolução em sua legítima razão”. A censura torceu o nariz e a palavra revolução deve que ser trocada por evolução, mas que não escondeu o caráter político do samba. Coincidentemente, durante o desfile, aviões da força aérea sobrevoaram todo o cortejo da Serrinha numa tentativa de calar a escola.
Enquanto do outro lado, assim como nas primeiras décadas da folia, exaltar o opressor se tornou uma possibilidade em busca da afirmação. Foi cantando o regime, que a Beija-Flor em 1973 conseguiu a ascensão ao grupo principal da folia, onde está hoje. Nos anos seguintes, com o “Grande decênio” e “Brasil anos 2000”, a apologia continuou nos versos; “Quem viver verá/Nossa terra diferente/A ordem do progresso/Empurra o Brasil pra frente”, “Sim, chegou a hora/Da passarela conhecer/A ideia do artista/Imaginando o que vai acontecer/No Brasil no ano 2000″.
Nem tudo eram flores, mas em 1980 a ditadura estava mais aberta ao diálogo e surgiam os prenúncios de um anseio político: ANISTIA! O grito das ruas foi para a avenida através do gênio Fernando Pinto no enredo “Tropicália Maravilha”, pela Mocidade Independente de Padre Miguel, que além de todo o movimento tropicalista também tocava na volta dos presos políticos exilados. Ai de mim que mal sonhava…
Sonhei que estava sonhando um sonho sonhado, o sonho de um sonho magnetizado. As mentes abertas, sem bicos calados, juventude alerta. Os seres alados. Sonho meu… Eu sonhava que sonhava, sonhei… Ainda que não diretamente e com certo receio, a Vila, em 1980, também já falava sobre o regime ditocrático e por todo anseio à liberdade. Todos queriam sonhar esse sonho de um país democrático.
A década de 1980 seguiu e com ela veio o grito: “Diretas já”! Com a redemocratização, a política entrou em cena mais do que nunca nos desfiles. Já consolidadas como grande espetáculo e sem a necessidade de se firmar, as escolas deixaram de lado a postura subserviente e colocaram a boca no trombone. O pioneiro não podia ser diferente, considerado o mestre da crítica carnavalesca, Luiz Fernando Reis, foi o primeiro a tratar da ditadura explictamente numa alegoria em 1984. Aliás, ficou conhecida por essa vertente crítica juntamente com a São Clemente, conquanto, essa bem menos debochada e mais “sisuda” do que a primeira era. “
E por falar em Saudade…, a saudade do tempo em que se diretamente escolhia o presidente, foi um desfile divisor de águas, consagrado por público e crítica, foi o verdadeiro lançador de tendências para o ano seguinte. Com um novo sol a brilhar, como cantava a irreverente Caprichosos em seu enredo contra o imperialismo americano, 1986 foi o ano de gozar a liberdade com o fim da opressão. Quase todas escolas cantaram diretamente o novo cenário, ou faziam alguma citação em sua letra. A liberdade era tanta que numa antípoda ideológica, usufruindo de toda sua liberdade de expressão veio a Unidos da Tijuca com “Cama, mesa e banho de gato“. Quando se imaginaria um enredo desses durante o regime? Incogitável.
Para brindar a década mais política e contestadora do carnaval, onde as escolas nunca estiveram tão em ressonância com a vontade popular, 1989 foi marcado por uma disputa que de certa maneira sintetizava o passado e presente do carnaval. De um lado, a história didática e polida de “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, que sintetizava todo o lado oficial que a festa sempre teve. Do outro, numa atitude revolucionária, toda a podridão das estranhas do Brasil em “Ratos e urubus larguem minha fantasia”, nas mãos de Joãosinho Trinta e da Beija-Flor que antes havia louvado a ditadura, mostrando com o jogo tinha virado. Infelizmente, a oficialidade venceu, mas ainda ecoava naquele o ano o grito pelos direitos na Vila Isabel, fechando com chave de ouro um período histórico da nossa folia. “Direito é direito, está na declaração. A humanidade é quem tem razão...”
“Gip, gip, nheco, nheco… Por favor não apague a luz! Goze desta liberdade nos braços da Santa Cruz”. Em 1990, a Santa Cruz também cantou (ou contou) “Os Heróis da Resistência” em um de seus sambas mais conhecidos, a escola relembrava o Pasquim, jornal alternativo que fazia oposição ao duro regime. Nas últimas duas décadas, política e carnaval pareceram se distanciar. O grito forte se perdeu e mesmo com novos cenários e escândalos, as agremiações voltaram a mostrar seu lado mais negociador. Embora já vivermos em um regime totalmente democrático e liberto, não se vê tantos enredos com esses ofícios. Alguns, esporadicamente, pipocam por aí, mas nada com tanta força.
Não estamos aqui para fazer um relato que abranja todo o contexto histórico-político que o carnaval vivenciou, cantou ou passou. A política no carnaval não se manifesta apenas em enredos que falem abertamente dos nossos governantes e seus anseios. Todos os desfiles são políticos e falam de seu contexto. Tudo em nossa vida é política. Por isso, a importância de valorizar nas urnas toda a luta pela democracia, pela liberdade que foi acarretada durante tantos anos. Se a festa que nós amamos tomava seu partido e se mostrava consciente, nós também devemos. Independente de ideologia, lado ou candidato, não temos o direito, mas sim o dever de votar consciente. Pensar sempre no melhor que possa ser para nossa cidade, estado e sociedade. Consciência é a palavra fundamental. CONFIRMA.