Por Leonardo Antan, com colaboração de Any Cometti
Revisão: Felipe Tinoco
Artes: Vítor Melo
Salve a Estação Primeira! Depois dos sambas de Oswaldo Cruz e dos ilustres do Morro do Salgueiro,nossa parada de hoje na #SérieBaluartes é no mais famoso dos morros cariocas, aqueles com os típicos barracões de zinco. De uma Mangueira que dá fruta em verde e rosa, preparamos um verdadeiro dossiê sobre as principais figuras que construíram a história da “escola mais famosa do planeta”.
No que se trata de baluartes, a Velha Manga conhece muito bem a importância dessas personalidades que fazem parte da história das escolas e empregaram seu amor e dedicação a esses pavilhões. A Mangueira criou, inclusive, uma espécie de Academia Mangueirense. Inspirado no modelo da Academia Brasileira de Letras, com cadeiras a serem ocupadas por esses sambistas, a lista completa dessas personalidades está
disponível no site da escola e alguns deles terão suas histórias contadas nos próximos tópicos. Então, afine seu Surdo Um, respeite os tamborins, porque chegou… A Mangueira chegou, ô! A gente vai tentar dar conta da história daquela que é tão grande que não cabe explicação.
A fundação da escola de samba que se tornaria a mais querida do planeta remonta a outros grupos carnavalescos que já existiam nas várias localidades do bairro. Mas o embrião definitivo foi o Bloco dos Arengueiros, fundado após Cartola e Zé Espinguela serem expulsos de outros grupos por serem galanteadores demais e não seguirem à risca a moral e os bons costumes estabelecidos. Foram tantas as rivalidades que Cartola tentou colocar um fim na competição entre os conjuntos locais com “Chega de Demanda”, fazendo enfim surgir a Estação Primeira de Mangueira. Foi assim batizada por ser a primeira estação ferroviária após a saída da Central do Brasil – na época, ainda D. Pedro II.
O já citado duas vezes é um dos maiores ícones da história mangueirense, se não for o maior. Agenor de Oliveira, o
Cartola, não nasceu no lendário morro, mas sim distante dali, por Laranjeiras. Era no bairro da zona sul, inclusive, que se sediava o Rancho do Arrepiado de onde o sambista se inspirou nas cores que eternizaram o pavilhão da escola. Uma outra versão da história diz ainda que o verde e rosa eram inspirados no time Fluminense, que tem sede no mesmo bairro. A vida do compositor foi produtiva e extensa, mas marcado por muitos amores, sobretudo Deolinda e Zica, inspirações românticas que o ajudaram a lhe tornar um dos maiores poetas da língua portuguesa, com clássicos como “As rosas não falam” e “O mundo é um moinho”.
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Cartola em seu último desfile pela Estação Primeira, carnaval de 1978. Foto: Anibal Philot |
Na semente dessa árvore frondosa da cultura brasileira está ainda outro sambista fundamental: Zé Espinguela. Não só um patriarca da escola, mas um pai-de-santo respeitoso. Negro, magricelo, macumbeiro, jongueiro e sambista, foi ele o idealizador do bloco que acolheu os sambistas rejeitados pelos grupos de “família”. Líder por natureza, organizou o que são consideradas as primeiras disputas não oficiais entre escolas de samba, realizadas pelo jornal A Nação, reunindo ainda um grupo de Oswaldo Cruz e Estácio. Outra grande contribuição sua foi a mediação cultural que realizou entre os sambistas e o maestro modernista Heitor Villa-Lobos, quem ajudou, por sua vez, a valorizar o samba nos salões nobres do país.
Um outro grande compositor da santíssima trindade de fundadores da Estação Primeira é
Carlos Cachaça. Ao lado de Cartola, foi um dos mais importantes poetas a ajudar na construção do imaginário da comunidade mangueirense. São deles clássicos como “
Alvorada”, “
Tempos idos” e “
Quem me vê sorrindo”. Nos primeiros anos da agremiação, assumiu a função de orador oficial e redator dos comunicados enviados à imprensa, enquanto conciliava o trabalho na ferroviária e o casamento com Clotilde, a Menininha, irmã de Dona Zica. Permaneceu em atividade na escola até sua morte, em 1999, tornando-se o primeiro presidente de honra da verde e rosa, em 1995.
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Autor de sambas-enredos no final dos anos 20 e nas décadas seguintes, Carlos Cachaça foi o principal parceiro de Cartola. Foto: J.A Fonseca/Folha Imagem |
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Primeiro líder da Mangueira e fundador da escola, Saturnino Gonçalves viveu entre o seu bairro de origem, o Estácio, e a Mangueira. Foi marceneiro hábil e presidiu a verde e rosa desde sua fundação até falecer precocemente em 1935, vítima de tuberculose. Fechando o time de ilustres fundadores da escola estão ainda Babaú da Mangueira, Arthur Gonçalves, Antonico, Fiúca, Chico Porrão, Homem Bom, Gradim, Manoel Joaquim, Maçu da Mangueira, Pimenta e Rubens.
Antes da Estação Primeira ser a maior representante do morro, uma outra agremiação também existiu por ali: a Unidos de Mangueira, que tinha como cores o azul e o rosa, e ficava no Santo Antônio, uma localidade histórica do bairro. Havia uma rivalidade entre essa região e o famoso Buraco Quente, no qual ficava a sede da escola fundada por Cartola. Sendo absorvida pela Estação Primeira rapidamente, vieram desta organização rival nomes que se tornaram fundamentais para todo a comunidade, como o maior baluarte vivo da verde e rosa: Nelson Sargento.
Atual presidente de honra da escola, Nelson Sargento nasceu em um outro morro famoso, o do Salgueiro, mas se mudou para o que lhe deu fama aos dez anos. O sobrenome foi conquistado pela alta patente que conseguiu no tempo em que serviu ao exército brasileiro. A alcunha militar se tornou famosa ao integrar o time do musical Rosa de Ouro, na década de 1960. Anos antes, ele foi um dos autores de “Cântico da Natureza”, seu primeiro sucesso, samba-enredo mangueirense de 1955. O autor do antológico “Agoniza mas não morre” ainda tem uma carreira como artista plástico, já tendo exposta suas pinturas pelo mundo afora.
Outro grande baluarte da Velha Manga e que também veio da localidade de Santo Antônio foi
Tantinho da Mangueira, falecido recentemente, e que desde pequeno frequentava rodas de partido-alto pela comunidade. Aos 13 anos, entrou para a Ala dos Compositores após passar em um teste feito por Cartola. Foi autor do samba-enredo para o carnaval de 1977, ao lado de Jajá. Gravou ao menos três álbuns sobre ou dedicados a nomes famosos do morro. O artista participou também do grupo Originais do Samba, de
Mussum, mas decidiu sair quando projeto começou a fazer sucesso e viajar pelo país. Integrou durante anos a Velha Guarda Show da escola, grupo musical de baluartes nos moldes do que a Portela instaurou em 1970. Em 2017, protagonizou o documentário “Memória em verde e rosa”, de Pedro Von Krüger, que registrou depoimentos de grandes nomes das rodas de samba da Estação Primeira, como
Broto, Neném Macaco, Raymundo de Castro, Carlinhos do Pandeiro, Jorge Catacumba, Amauri Raposo, Seu Nêgo, Waldir Marcelino e Jaguara.
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Nelson Sargento é sempre uma das figuras mais aguardadas do desfile de Mangueira. Foto: Brenno Carvalho/O Globo |
Um dos grandes poetas da primeira geração da escola foi Padeirinho, também nascido em Laranjeiras como Cartola. Chegou na verde e rosa em 1947, na Ala de Compositores. Venceu os concursos de 1956 (Grande presidente) e de 1972 (Rio, carnaval dos carnavais). Dividindo-se entre o trabalho de estivador, deixou como legado uma discografia de mais de trezentas composições que abordam o cotidiano da comunidade, uma das mais famosas e emblemáticas nesse sentido é “Linguagem do Morro”. Foi ainda percussionista de mão cheia, exímio partideiro e mestre do samba sincopado.
Hélio Turco é o honroso possuidor do título de compositor que mais assinou sambas na Mangueira. Nascido no agradável bairro zona nortista do Grajaú, mudou-se para outro ícone de região – a Mangueira – aos seis meses de idade. Seu nome artístico foi adquirido em função de um tio, dono de um armarinho, o qual ele acabou herdando junto ao nome. Integrou a Ala de Compositores em 1957 ao lado de outro grande poeta da escola, Jurandir. Em 59, assinou pela primeira vez um samba enredo e daí não parou mais. Foram mais de quatorze composições desse poeta que se tornaram verdadeiros clássicos do repertório mangueirense, como Memórias de um preto velho (1954), Braguinha (1984), Cem anos de liberdade (1988) e Sinhá Olímpia (1990). Seguindo atuante na escola, ele encabeçou uma das parcerias finalistas em 2020. A última composição assinada pelo sambista é de 1992, em homenagem a Tom Jobim.
O principal parceiro de Hélio é outro recordista da verde e rosa.
Jurandir ganhou onze vezes o concurso de sambas de enredo da agremiação – oito dessas vezes ao lado de Hélio. A primeira obra de avenida sua a vencer a disputa foi a homenagem ao maestro Villa-Lobos, em 1966. Além de compositor, Jurandir foi uma das grandes vozes da agremiação na pista. Na época em que o disco oficial dos sambas-enredo saía pela gravadora Top Tape, Jurandir sempre gravava os sambas de sua autoria, já que o titular Jamelão era impedido de colocar sua voz por motivos contratuais. Foi assim que ele assumiu uma responsabilidade enorme em 1985, único ano em que Jamelão não interpretou o samba da Mangueira durante mais de cinquenta e seis anos. Jurandir foi ainda a principal voz da Velha Guarda Show da Mangueira.
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Tantinho foi um dos maiores compositores da história mangueirense. Foto: Keiny Andrade/Folhapress |
Com a virada do século XXI, um novo recordista surgiu: Lequinho. Já estreando com o pé-direito, o primeiro samba composto por ele para ir à avenida foi o clássico “Vou invadir o nordeste”, de 2002, em parceria com Amendoim. Desde então, foi campeão em mais oito ocasiões. Na lista de grandes compositores da verde-e-rosa estão ainda nomes como Batista da Mangueira, Darci da Mangueira, Alvinho, Bizuca, Rubem da Mangueira, Jajá, Alemão do Cavaco e muitos outros.
Não tem como falar da Mangueira sem citar o maior intérprete e um dos maiores cantores da nossa música, José Bispo Clementino dos Santos. Ou melhor, Jamelão. Seu timbre potente e grave era a característica fundamental para a personalidade do cantor. Não só sua voz, mas seu profissionalismo, sua dedicação e seu amor genuínos e profundos à Estação Primeira de Mangueira também. Além do famoso mau-humor e a maneira como se colocava ao rejeitar o título de puxador, toda a sua composição é marcante e repletas de memória. O cantor emprestou sua voz para a verde e rosa por incríveis 57 carnavais, recorde absoluto entre as escolas de samba. Sua última passagem pela Sapucaí foi no carnaval de 2006, prestes a completar 93 anos de vida. É um dos recordistas de Estandarte de Ouro, com seis prêmios. Em 2013, ano do centenário de Jamelão, a Unidos do Jacarezinho o homenageou com o enredo “Puxador, não. Intérprete!”, e relembrou a vida e os elementos do artista, como a superstição do uso de vários elásticos em sua mão e sua carreira fora da avenida, quando se entregou à gravação de sambas-canções, as ditas músicas de dor de cotovelo.
Achar alguém para substituir a voz potente de Jamelão parecia impossível, né? Se substituir, então, não era o caso, fazer história de outra forma foi a solução. Assim, em 2007, a responsabilidade foi dada a um gogó de ouro! Luizito iniciou sua carreira na Caprichosos de Pilares, quando foi o cantor da escola entre 1994 e 96, e chegou à Mangueira dois anos depois. Tornou-se o principal “apoio” de José Bispo no carro de som da verde e rosa. Como cantor oficial, permaneceu na agremiação por 9 carnavais, até 2015, quando ganhou o Estandarte de Ouro por sua atuação, falecendo precocemente no decorrer da preparação do carnaval para o ano seguinte. No imaginário folião, além de seu talento, está eternizado seu grito de guerra, que você com certeza lerá agora com a voz dele na cabeça: “Chegou a garra, chegou a emoção, chegou a escola de samba mais querida do Planeta. Chegou a Estação Primeira de Mangueira!”.
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O maior de todos em um de seus rompantes de extremo bom-humor, se é que vocês nos entendem. Foto: Divulgação O Globo |
Para acompanhar vozes tão potentes e históricas, não poderia haver nesta escola de samba uma bateria tão histórica como a Tem que respeitar meu tamborim. Além do seu Surdo Um tão famoso, que é o símbolo que estampa o pavilhão verde e rosa, o segmento de ritmistas da agremiação tem personalidades fundamentais. Foi no dia 3 de março de 1959 que Seu Tinguinha, Mestre Waldomiro, Raymundo de Castro e outros abnegados fundaram a Ala da Bateria da Mangueira para que os ritmistas se organizassem para os desfiles. A iniciativa pioneira veio de Tinguinha, tocador de tamborim e responsável por reunir os ritmistas que se apresentavam em festas e eventos sociais fora da quadra. O sambista tratou de ajudar os parceiros de bateria a melhorarem a beca para fazerem feio entre as rivais. Tinguinha foi responsável ainda pela inclusão do tairol na bateria, instrumento que vinha dos famosos festejos da Folia de Reis, que até hoje existem no morro. A presença de outras manifestações culturais é uma das maiores características da Derradeira Estação, uma mistura de calango, folia de reis e macumba.
Quem liderou essa bateria por impressionantes cinquenta anos foi o Mestre Waldomiro. Descoberto por Cartola e levado para o ainda Bloco dos Arengueiros, o instrumentista havia despertado para seu talento musical na escola militar na qual estudou. Por meio de um concurso, foi escolhido para liderar os ritmistas da escola na década de 1930. A partir daí foram cinco décadas em que ele tratou o couro dos tambores mangueirenses com uma receita cheia de ervas e saberes afro-brasileiros só dele. Aposentou-se após uma trajetória histórica em 1983, o último carnaval antes do Sambódromo.
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Mestre Waldomiro e Delegado no desfile de 1978. Foto: Autor Desconhecido |
Para alinhar a harmonia entre os intérpretes e as batidas do surdo um, outro mangueirense fez história na agremiação, figura tão forte que tinha como apelido o nome do orixá da justiça: Xangô da Mangueira. Discípulo Paulo da Portela, Olivério Ferreira passou pela União de Rocha Miranda, a própria azul e branco de Paulo e a poética Lira do Amor antes de chegar até a verde e rosa. Começou como intérprete da escola para, em 1952, assumir a função do que hoje entendemos como “diretor de harmonia”. No cargo seguiu por mais de cinquenta anos, encerrando sua atuação em 2008. Na década de 1970, gravou quatro LPs e seguiu carreira fora do carnaval, tendo composições gravadas por cantores como Clara Nunes e Roberto Ribeiro. Sua herança e seu legado ainda bailam na Sapucaí ano a ano, já que sua neta Squel Jorgea e seu filho Matheus Olivério formam há quatro anos o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira – um cargo de tamanha responsabilidade visando o histórico da baluartes do quesito… Bora falar deles?
Se a arte do samba não se restringe só ao aspecto sonoro, também contempla os grandes artistas do gingado. A Estação Primeira tem uma galeria de sambistas de fazer inveja nesse aspecto. Esse seleto time começa com uma tradição de grandes porta-bandeiras e mestre-salas, que fizeram história nos desfiles da agremiação.
Essa história se inicia com seu Maçu, um dos fundadores da Velha Manga e o primeiro grande mestres-sala da primeira década de desfiles. Foi o seu bailado que praticamente definiu o que entendemos hoje como característico dessa função ao cortejar e proteger a porta-bandeira com elegância e gingado. Filho de escravos e nascido em uma família pobre na zona oeste, logo ele encontrou no Morro da Mangueira o local onde construiria sua independência e onde escreveria sua história. Ao longo dos anos, ganhou o respeito da comunidade de tal forma que acabou como o presidente da Mangueira que ocupou o cargo por mais tempo: 17 anos. No fim da vida, virou zelador dos banheiros do Palácio do Samba – função que exercia com orgulho.
A primeira grande baluarte na arte do bailado e pioneira de uma verdadeira linhagem foi a porta-bandeira Neide. Ela estreou em 1954 e, rapidamente, destacou-se por sua força e por sua elegância. Sempre impecável, desenvolveu uma maneira própria de bailar, com muitos rodopios inesperados, que a faziam girar e girar de um lado para o outro com o mastro sempre apontando para o alto. Na década de 60, rivalizou com Vilma Nascimento o posto de maior da avenida. Sua despedida foi tão linda quanto triste: sofrendo de um câncer no útero, a bailarina escondeu a doença por quatro anos, desfilando cada vez mais magra. Chegou ao ponto de ter de pedir para reduzirem o peso de sua fantasia pois já não aguentava os quilos do traje. Em uma daquelas ironias que o destino nos prega, em 1980, último ano dela na avenida, o quesito mais nobre da festa havia sido eliminado do julgamento.
Quem bailou ao lado de Neide por mais vinte e um carnavais formando uma dupla antológica foi ninguém menos que
Delegado, carinhosamente chamado de “mestre dos mestre-salas”, que ganhou o apelido por “prender” as cabrochas na sua conversa. Filho de um dançarino de valsa e de uma doceira, ele teve um irmão ritmista, responsável pelo surdo e uma irmã, Suluca, da ala das baianas. Com impressionantes 1,90 de altura, foi dono de um estilo cortês e galanteador que formam o fundamental modelo do que se espera de um mestre-sala. Cruzou a avenida como defensor do pavilhão mangueirense por nada menos do que 36 carnavais e em nenhum deles tirou uma nota diferente da máxima. Além disso, também assumiu cargos como diretor de bateria, harmonia e de ritmista na escola.
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Delegado e Mocinha se apresentavam em um de seus históricos carnavais. Foto: Agência O Globo |
Com a trágica partida de Neide, o mestre da dança não ficou muito tempo até achar uma substituta. Mocinha era filha de Angenor de Castro, um dos fundadores da Mangueira, e aprendeu a dançar com sua tia Raimunda, que foi a primeira porta-bandeira da história da escola. Estreou em 1939, ao treze anos, como segunda porta-bandeira. O destino a afastou da agremiação, só fazendo com que retornasse anos depoi, em 1960 como QUARTA porta-bandeira (sim, existiam quatro casais). Com seu talento, logo alcançou o posto de segunda defensora do pavilhão e foi como segunda que fez história enquanto Neide bailava como a estrela maior. Em 67, ao assumir o posto de porta-bandeira principal, não se bicou com o lendário Delegado, voltando ao segundo lugar no ano seguinte, e permaneceu por lá por mais de uma década. Em 1980, aos 54 anos, fez história ao ganhar a premiação maior do Estandarte de Ouro de melhor porta-bandeira mesmo não sendo a defensora titular do pavilhão. No ano seguinte, com o falecimento de Neide, ela assumiu o protagonismo absoluto. Participou dos lendários campeonatos de 1984 (Braguinha), 1986 (Caymmi) e 1987 (Carlos Drummond de Andrade). Despediu-se da avenida em 1988, com 62 anos.
Na década de 1990, viu-se despontar um casal herdeiro dessa dinastia tão nobre e respeitada de bailarinos mangueirenses. Marquinhos e Giovanna começam sua história na versão mirim da Mangueira, em que deram seus primeiros passos juntos. Em 1995, estrearam como defensores de uma das mais tradicionais agremiações cariocas, com a mesma responsabilidade que tiveram Neide e Delegado. Eles não decepcionaram. Por vinte e dois carnavais ostentaram com maestria a linda bandeira de cetim em verde e rosa, faturando pela escola dois dos quatro títulos que conquistaram juntos, em 1998 e 2002. Giovanna ficou conhecida por sua dança forte e aguerrida, assim como um mastro alto para levar a bandeira que defende a um ponto elevado.
Mas e grandes passistas? A verde e rosa também tem! E algumas vindas não só do lendário morro, mas apaixonados por essa agremiação que surgiram dos mais diversos cantos da cidade. Foi o caso, por exemplo, de
Gigi da Mangueira, moradora de Ipanema e menina dos olhos verdes e da pele branca; o típico retrato da zona sul carioca. Mas Gigi trocava Ipanema pela Estação Primeira de Mangueira em ensaios e desfiles. Ganhava outro formato com o fervoroso requebro de seus quadris e, assim, estreiou na escola aos 16 anos incompletos em 1961. Sua dedicação e seu amor à Mangueira fizeram com que ela não desfilasse apenas no ano de 1968, pelo nascimento de seu segundo filho. Em 1983, Gigi despediu-se dos desfiles antes mesmo de pisar na Sapucaí, que seria construída no ano seguinte, mas eternizou seu nome no chão sagrado da verde-e-rosa e seguiu a vida para cuidar de uma linha de confecções. Fora da Avenida, fez carreira como atriz e dançarina no teatro e na TV.
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Rosemary e Gargalhada, dupla com uma samba no pé inconfundível. Foto: Agência O Globo |
Outra dona do gingado mangueirense foi Nãnãna da Mangueira, que iniciou como dançarina da agremiação em 1958. Em 1973, reinou à frente da bateria da Mocidade Alegre, em São Paulo, lançando moda ao desfilar sambando e tocando tamborim ao mesmo tempo. Nãnãna mostrou e ainda mostra, felizmente, as várias faces de uma mulher de sucesso e que faz jus ao carinhoso apelido de “Dama do Samba”, seja cantando, compondo, ou dizendo no pé com seu gingado. Seguiu uma carreira nos microfones das rodas de samba e shows, ainda deixando como herança seus filhos também apaixonados pela escola: Vânia, Rose e Ivo Meirelles.
Além das grandes passistas femininas, o riscado dos malandros mangueirenses também se eternizam na Avenida. Estão nesta lista nomes como César Augusto da Graça Moutinho, conhecido como Índio da Mangueira, que mostra seu samba no pé há mais de cinquenta carnavais desfilando na agremiação. Além do eterno Gargalhada, famoso ao formar uma dupla histórica com a cantora Rosemary. Ele começou sua carreira ao lado de ninguém menos que Martinho da Vila na Aprendizes da Boca do Mato, na década de 1950. Fechando o time dessa ala, não tem como não citar Serginho Pandeiro, dono de mais de 30 anos de avenida. O seu gingado nos pés se alinha aos manejos das mãos e o codinome não é à toa: ele é dono de uma impressionante habilidade motora no comando do pandeiro, seu leal aliado.
Foi em um domingo de carnaval que Eusébia da Silva de Oliveira, a Dona Zica, mudou-se com a família de Piedade para o Buraco Quente. Ainda criança, aos seis anos, conheceu um rapazote de onze chamado Agenor de Oliveira, mas foi somente quase trinta anos mais tarde, em 1951, que o rumo desses dois se cruzou de maneira definitiva, dando origem ao primeiro shipp que se tem notícia da cultura brasileira: o Zicartola. A junção deu nome ao lendário bar e restaurante que dona Zica tocou com o marido. Além dos ótimos quitutes preparados por ela, lá se reuniam sambistas, intelectuais, poetas e agentes culturais cariocas das mais diferentes esferas sociais. Após o falecimento de Cartola, em 1980, seguiu atuante na Estação Primeira, desfilando como baluarte e eterna primeira-dama da agremiação. Sua última passagem foi no título de 2002, quando desfilou desrespeitando ordens médicas e acabou agravando sua já frágil saúde.
Filho do fundador da escola Saturnino Gonçalves, Dona Neuma foi uma das importantes do cotidiano de Mangueira. Sua casa na rua Visconde de Niterói, em que fica a sede da escola, tornou-se espécie de ante-sala da quadra de ensaios, por onde passaram as figuras mais ilustres da cultura nacional, e que serviu como um ponto social fundamental do bairro, onde ela alfabetizou muitas crianças. Desfilando na escola desde seus primeiros anos de vida, Neuma já foi baiana e depois a responsável por fundar o Departamento Feminino, inspirando-se no formato que a pioneira Em Cima da Hora havia feito em 1962. A ala do departamento passou a confeccionar suas próprias roupas para que as damas pudessem desfilar, reunindo mais de 200 nomes em alguns cortejos. Na década de 90, foi ainda responsável por renovar a ala de baianas das escolas, percebendo que as senhoras estavam deixando de se apresentar, seja pelas fantasias pesadas ou pelo avanço das igrejas neopentecostais. Assim, atraiu jovens moças para rodarem na avenida.
Outro legado fundamental de Neuma foram suas filhas
Guesinha e Chininha. A segunda se tornou presidente em um momento conturbado da escola, entre 2008 e 2009. Pode-se citar também uma grande baluarte mangueirense que integrou a ala do Departamento Feminino de Dona Neuma por muitos carnavais:
Tia Suluca, já citada como irmã do mestre-sala Delegado. Ela desfila pela verde e rosa desde os sete anos de idade.
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Dona Zica e Dona Neuma exibindo o sinérgico pavilhão verde e rosa. Foto: Divulgação O Globo |
A força feminina de Mangueira está não só nas mulheres que cruzam os becos e as vielas da comunidades, mas em artistas tão apaixonadas pela agremiação, que dedicaram sua vida e sua obra para exaltar a Estação Primeira. Uma dessas figuras é Leci Brandão, primeira mulher a integrar a Ala de Compositores da Verde e Rosa, na década de 1970. Apesar de nunca ter vencido uma disputa de samba-enredo, consolidou-se como uma importante compositora da música brasileira, além de ter atuado como comentarista dos desfiles, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo.
Criada na zona sul no auge da Bossa Nova, Beth Carvalho foi outra personalidade do samba muito ligada à Mangueira. A estrela foi vencedora do III Festival da canção e verdadeira madrinha de uma geração de sambistas surgidos no Cacique de Ramos. Apaixonou-se pela escola ainda criança e viveu uma história de amor pela verde e rosa que durou toda a sua vida. Seu último desfile pela escola foi em 2018, no Sábado das Campeãs daquele ano, já debilitada por problemas na coluna.
Surgida no auge do sucesso fonográfico do samba na década de 1970, a jovem Alcione veio do Maranhão para o Rio para se tornar uma das maiores intérpretes do ritmo, com mais de cinquenta álbuns lançados e oito milhões de cópias vendidas. A primeira vez que a Marrom visitou a quadra da Estação Primeira de Mangueira foi em 1974, logo sendo convidada a desfilar. Na concentração, a ausência de um destaque levou a bela estreante ao alto de um carro alegórico. Em 1987, participou da fundação da escola de samba mirim Mangueira do Amanhã, e hoje é presidente de honra do grupo.
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Alcione e Leci Brandão em encontro de titãs na quadra de Mangueira. Foto: Divulgação Escola |
Uma outra cantora muito ligada à escola mas que não veio do samba é a Rosemary, ícone da Jovem Guarda. Ela começou sua carreira na televisão por meios de de programas na TV Tupi e apresentou o programa Menina Moça. Desfila ininterruptamente na verde e rosa desde os anos 70, quase sempre como “Destaque de Chão” da escola. Em muitos dessas ocasiões teve como parceiro o grande passista Gargalhada.
Em uma escola marcada por uma força tão dionisíaca, engana-se quem acha que por trás do toque da bateria e do bailar de grandes dançarinos não existiu um grande mestre do visual. Fora do saber acadêmico que tomou conta das agremiações com a chegada de Fernando Pamplona, Júlio Mattos foi um dos maiores carnavalescos da história da festa com sua formação forjada nos barracões da vida.
Morador de uma favela próxima ao morro dos barracões de zinco, Júlio dividiu sua trajetória entre a Estação Primeira e o Paraíso do Tuiuti, agremiação que ajudou a fundar. O artista do povo chegou na velha Manga em 1963, já causando polêmica ao escolher o enredo “Exaltação à Bahia”, em uma época em que temas nordestinos e, principalmente, ligados ao estado mais negro do Brasil eram vistos com desconfiança e considerados azarados. Permaneceu por lá por dez anos, até 1974, com três títulos (67, 68 e 73) e quatro vices (63, 66, 69, 72). Uma segunda passagem aconteceu de 1977 a 1979, com um vice em 78. O último e vitorioso período foi entre 1986 a 1989, sendo responsável por mais um bi com os inesquecíveis desfiles sobre Dorival Caymmi e Carlos Drummond de Andrade. Em 88, concebeu o inesquecível (e atual) “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?”, protagonista do eterno e polêmico duelo com a imortal Kizomba da Vila. Por fim, veio o fatídico “Trinca dos Reis”, em 1989, que terminou em um desastroso décimo primeiro lugar, dando fim a um dos mais bem sucedidos casamentos do carnaval.
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Júlio Mattos em um dos pré-carnavais que assinou frente à batuta criativa mangueirense. Foto: Tantos Carnavais |
Se faz parte da identidade da Mangueira homenagear grandes nomes da música e da cultura brasileira, Júlio foi um dos responsáveis por imprimir tal marca à escola. Sua estética simples mas ao mesmo tempo bela e sofisticada trazia a leveza necessária para as componentes “dizerem no pé”. Ficou famoso também por sua capacidade de reutilizar e reciclar materiais de anos anteriores e transformá-los em novas peças. Foi, sem dúvida, um artista completo e dos mais brilhantes que o carnaval já teve. Saiu de cena de maneira discreta na década de 1990, mais especificamente em 94, após sofrer de um câncer.
Por falar em homenagens a grandes artistas da nossa cultura popular, outro criador que soube explorar essa vertente foi Max Lopes. Supercampeão da escola em 1984, com o enredo sobre Braguinha, havia começado sua ligação com o carnaval no Salgueiro dos anos 1960, quando foi chefe da ala da vermelho e branco e ajudou o grupo criativo liderado por Pamplona e Arlindo Rodrigues. Nos anos 2000, Max retornou para a escola com seu estilo luxuoso e barroco estabelecendo uma parceira de grandes desfile e que teve como seu ápice o título de 2002.
Uma das agremiações com um dos imaginários mais fortes e bem construídos da cultura brasileira, a Velha Manga não poderia deixar de ter um time de torcedores que se dedicam a espalhar a arte dos artistas da verde e rosa em suas obras. Estão nessa lista um seleto grupo de intérprete, cantores ou compositores que se tornaram o enredo da escola durante sua trajetória, como Braguinha, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque e Maria Bethânia, nomes pra lá de fundamentais da história da música brasileira em diversos períodos.
Nesta lista de personalidades está também Nelson Cavaquinho, um dos grandes letristas da nossa história, compositor de clássicos como “Folhas Secas”, “Juízo Final” e “A Flor e o Espinho”. Apesar do seu talento, o reconhecimento da sua trajetória foi tardio. Por falta de dinheiro, Nelson eventualmente “vendia” parcerias de sambas que compunha sozinho. Foi apenas na década de 1970 que seu repertório foi resgatado por figuras como Beth Carvalho e Elis Regina, no período em que também gravou seu primeiro álbum solo. No ano do seu centenário, em 2011, sua trajetória foi cantada no enredo “O Filho Fiel, sempre Mangueira”, garantido o terceiro lugar pra Estação Primeira.
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Maria e Chico, homenageados campeões durante o Show de Verão Mangueira no Vivo Rio em 2017. Foto: Agência O Globo |
Desse time, destacam-se dois artistas que compuseram um repertório de clássico da agremiação. Chico compôs o belíssimo “Estação Derradeira” dedicado a escola, além de ter gravado o disco “Chico Buarque da Mangueira”, homônimo ao enredo campeão de 1998 feito pela verde e rosa. Também homenageada em um carnaval vitorioso, a baiana Maria Bethânia se inspirou no título do enredo em sua homenagem para batizar o álbum “Mangueira, a menina dos meus olhos”, que resgatou algumas parceiras não-vitoriosas da disputa de 2016 e outros clássicos do repertório da escola. Irmão da cantora, Caetano Veloso foi um dos homenageados no carnaval de 1994 no inesquecível “Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu”. Também mangueirense de coração, o tropicalista compôs “Onde o rio é mais baiano” para louvar a agremiação.
Um dos grandes sambistas da história e dono das mais belas vozes da nossa música, Emílio Santiago foi outro grande torcedor da Estação Primeira, que não só cruzou a avenida com as cores da verde e rosa, como também regravou vários hinos da escola no seu histórico projeto Aquarela Brasileira. Nessa lista está ainda o humorista Mussum. Antes de ganhar fama nos Trapalhões e no conjunto Originais do Samba, ele já desfilava pela agremiação desde a década de 1960. Foi na mesma década que o artista plástico Hélio Oiticica também se tornou passista da instituição cultural, após viver um período entre os barracos da comunidade mais famosa do país. Foi dessa experiência que ele criou uma de suas obras mais importantes, como os parangolés e os penetráveis. Mais recentemente, o pagodeiro Alexandre Pires é outro ilustre nome da nossa música a também defender o pavilhão dessa gigante da nossa cultura, assim como Péricles, que também já defendeu o samba da Mangueira na avenida, em 2018.
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maravilhoso!