#SérieBatuques: Do Estácio à Grande Tijuca, as batidas de partido alto

Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira
Revisão: Felipe Tinoco
Durante o último mês, na Série Padroeiros, o Carnavalize abordou a relação das escolas de samba com os santos e os orixás de casa. Como refletir as identidades religiosas das suas comunidades sem se relacionar com a maneira com a qual elas regem seus batuques para colocar o cortejo na avenida? Para falar sobre isso, durante as quartas-feiras do mês de agosto, o Carnavalize vai se debruçar sobre as baterias cariocas com a Série #Batuques.
Investigar esses ritmos é perceber as ligações de um universo quase à parte, no qual as conversas se dão por sinais e pela batuta aguda dos apitos, os quais se manifestam a todo momento ditando o andamento do som. Assim, os símbolos visuais e auditivos das direções de bateria chamam a atenção dos ritmistas e se misturam na complexa melodia da orquestra que conduz a escola em sua caminhada. É dessa orquestra a missão de ser a primeira ala a começar o desfile e a última a encontrar a linha final.
Tão essencial quanto a precisão de seus movimentos e a manutenção do andamento, entretanto, é o respeito e a preservação do seu fundamento. É necessário compreender as características que possibilitam reconhecer não somente as relações de determinada bateria com sua comunidade e sua escola, como também os signos que se camuflam na totalidade do ritmo. Com isso, consegue-se encontrar as particularidades que moram no seio de cada couro de surdo e no bordão de cada caixa de guerra – não por acaso, os motivos pelos quais é possível reconhecê-las ao longe. 
Primeiramente, a sustentação rítmica de cada grupo de ritmistas encontra a sua morada nas caixas. Não à toa, é o naipe mais numeroso de uma bateria, propiciando experiências únicas. O toque de caixa mais tradicional é derivado do samba, como iremos abordar muito em breve. Ele também é, porém, alvo da influência dos ritmos percussivos existentes antes da criação das escolas e de suas baterias, desde o final do século XIX e o início do século XX. Esses ritmos são vistos em festejos como as batucadas, o jongo, o caxambu e os ranchos carnavalescos, além dos ritmos tocados nos atabaques das casas de macumba, garantindo às baterias seus próprios padroeiros. Por vezes, trazendo os toques para essas entidades codificados nas suas batidas.
Ouvir as caixas da Medalha de Ouro é a certeza de se maravilhar com o partido alto estaciano. Encontrar com os seus derivados nos taróis da Swingueira de Noel, da Pura Cadência Tijuca ou da Furiosa é garantir também o encanto com o ritmo. Neste primeiro texto da série, iremos nos aprofundar essa forma de batucar e entender seus códigos, em um passeio pela Zona Norte carioca com as quatro donas dessas baterias: Estácio de Sá, Salgueiro, Vila Isabel e Unidos da Tijuca!
“Bate no peito e desce o São Carlos!”
E não poderia ser diferente. Como começar a falar dos ritmos e saberes tocados pelas escolas sem começar pelo Berço do Samba? Não há a possibilidade de falar sobre o samba como conhecemos hoje sem puxar a cadeira para a Turma do Estácio sentar-se à mesa, e derramar o conhecimento apurado que corre em suas veias. Com o perdão do trocadilho, que deixem falar, pois é uma fonte inesgotável de informação imprescindível para a perpetuação da nossa cultura, da nossa essência e da nossa tradição. 
Dessa forma, a primeira parada é no Morro do São Carlos, para ter contato com a Estácio de Sá e o ritmo inconfundível que nasceu nesse berço.  O nome atual da vermelho e branco só foi adotado nos meados da década de 1980 para homenagear não apenas o morro na qual foi originada, como também todo o bairro fundamental para a história da música. A escola é descendente de Unidos do São Carlos, com origem no morro homônimo, e bebedora da fonte da lendária Deixa Falar – a suposta primeira escola de samba que jamais desfilou como tal. Justamente por beber da fonte da Deixa Falar, a Estácio é uma das maiores representantes da caixa tocada no ritmo do partido alto. 
Ritmista de caixa da Estácio de Sá no desfile de 2020. Foto: Gabriel Nascimento|Riotur.
Derivando-se no ritmo do samba de improviso do partido alto, a sua é a levada de caixa mais diversificada e difundida no carnaval. Original, portanto, também das mãos da Turma do Estácio. Juntando Bide, Marçal (não se esqueça desse nome!), Ismael Silva, Brancura e todo o grupo que fez parte da criação da Deixa Falar, deixou-se um legado importantíssimo para todo o carnaval. Além da próprio Estácio, há diversos exemplos de escolas que utilizam a batida do partido alto, como Viradouro, Grande Rio, Beija-Flor, Salgueiro, Unidos da Tijuca, São Clemente, Paraíso do Tuiuti, Imperatriz Leopoldinense, Unidos de Padre Miguel, Porto da Pedra, Inocentes de Belford Roxo, Império da Tijuca. Acadêmicos de Santa Cruz, Acadêmicos do Sossego, Unidos de Bangu, Unidos da Ponte, Acadêmicos de Vigário Geral, Lins Imperial, Em Cima da Hora e Cubango. 
Pela tradição da caixa de guerra, originada nas bandas militares, e também tomando como referência os ritmos que eram tocados no Brasil antes da criação das escolas de samba, muito se discute sobre como a caixa foi parar em cima do ombro dos ritmistas. Especula-se que, na época de origem do samba e das agremiações, os malandros do Estácio posicionavam a caixa na altura do ombro como uma forma de esconder o rosto dos policiais. A estratégia não auxiliou somente o acobertar de suas identidades durante os cortejos, mas também gerou melhor sonorização melhor e uma maior precisão de toque, além da mobilidade.
Por seu histórico, a Medalha de Ouro estaciana só poderia ter sua maior identificação rítmica conhecida justamente no partido alto bem executado pelos seus ritmistas. Por lá, é a caixa de guerra quem dita as ordens, com a divisão característica do ritmo com alguns desenhos dentro do compasso do samba, dando um swing mais solto para a bateria, fortificando sua marca. O que abrilhanta mais esse swing da alvirrubra é o encontro entre tal característica e o conhecido partido alto com o toque de repique único e peculiar das bandas da região. 
Conhecido como pé de boi, a levada de repique da agremiação é única, utilizada apenas pela bateria Medalha de Ouro. Diferente da levada tradicional de repinique, que consiste na divisão do toque entre o meio do instrumento, a batida mais perto do aro e o rimshot, a levada da Estácio se concentra em tirar o som do meio do instrumento, dando uma característica ímpar e um balanço sem igual. Sua identidade, então, é o sarapatel formado por essa característica dos repiques com o partido alto das caixas.
E a Estácio de Sá não é conhecida como berço do samba à toa. Sendo uma árvore de raiz forte, evidente que viria a dar frutos que seriam proveitosos para além da bateria. O principal deles é Serrinha Raiz, músico percussionista cria da comunidade. Desde cedo se espelhou no próprio irmão, que sempre foi conhecido por ter um swing diferenciado. Serrinha seguiu os passos familiares, tornando-se também um grande ritmista, conhecido pelo seu “sotaque diferenciado no partido”, como ele mesmo gosta de dizer.
Tendo chegado ao cargo de diretor da Estácio de Sá no ano de 2000, Serrinha Raiz rodou o meio do carnaval carioca, já que também foi diretor na Unidos da Tijuca e na Unidos de Padre Miguel, ajudando na criação da identidade do partido alto bem tocado e executado. Também rodou o mundo com o ritmo por meio de workshops de bateria realizados fora do país enquanto era membro da escola do Borel. A a gratidão se estende diretamente para o seu instrumento e para seu ritmo preferidos: “Nunca pensei que pisaria em lugares que eu só conhecia por filmes, e fui capaz de conhecer por intermédio da caixa de guerra. Sou extremamente grato a esse instrumento”, comenta. Fica a nossa semelhante gratidão a um dos nomes que ajuda perpetuar as nossas tradições mundo afora!
“Um velho ditado é quem diz… 
Salgueiro é uma raiz, que nasce forte em qualquer lugar”
Após dividir a história sendo feita em chão estaciano, é hora de versar sobre os caminhos percussivos que se cruzam no Oió tijucano, com o direito à livre citação do texto da Série Padroeiros sobre a relação do Salgueiro com Xangô (leia aqui). 
Criadora de raízes fortes, uma das maiores baterias da história do nosso carnaval. Talvez seja impossível comentar as orquestrar carnavalescas sem passar pela Furiosa, em todos os aspectos. Desde o seu ritmo inconfundível até a figura majestosa de sua rainha, ela assume lugar de referência e destaque em qualquer âmbito em que o assunto seja o batuque. Até porque não é toda bateria que tem para si um título de carnaval enquanto é homenageada (Tambor, 2009). 
O Acadêmicos do Salgueiro foi fundado em 05 de março de 1953 pela união de outras três organizações da região do morro outrora conhecido como Morro dos Trapicheiros. É justamente na diferença de sua origem que nasce uma das coisas mais belas quando se pensa no ritmo salgueirense, e trataremos disso um pouco mais à frente. Tal ritmo se sagrou vencedor do Estandarte de Ouro de melhor bateria 9 vezes, empatado com o Império Serrano como maior ganhadora do quesito. Possui, também, alguns dos mestres mais lembrados da história dos batuques: Mestre Louro – quem já dividiu a batuta com seu irmão Almir Guineto e maior vencedor do Estandarte de Ouro do segmento – e Mestre Marcão. O último samba campeão da encarnada e branca transmite o sentimento: “Salve o Mestre do Salgueiro!” 
Ritmista de tarol do Salgueiro no desfile de 2020. Foto: Raphael David/Riotur.

 

Qual é o segredo de tanta qualidade? É possível dizer que ela mora em todos os naipes, mas é impossível falar do Salgueiro sem citar três de suas características mais marcantes: o surdo de primeira de 29 polegadas, também conhecido como surdo bola; o centrador, que oferece uma dinâmica única com o resto da bateria; e os taróis, que oferecem um som único para as batidas da Furiosa – como os próprios ritmistas e diretores dizem, uma “sujeirinha” inconfundível. Esses instrumentos são tão característicos e marcantes na bateria da Academia que há uma subida de bateria chamada “Corre chave”, conhecida também como terceira e tarol, na qual os taroleiros iniciam sua levada acompanhados dos centradores até a bateria toda subir e iniciar a batucada de vez.
A vermelho e branca é uma das primeiras escolas a beber na fonte da Turma do Estácio, fazendo com que o toque do partido alto esteja presente pelas bandas do Morro do Salgueiro ainda no tempo em que a região era dividida entre os três blocos mais proeminentes. Além disso, baseado na levada de partido alto das caixas estacianas, surgiu também o tarol, instrumento com a mesma polegada das caixas, porém mais fino, oferecendo uma afinação mais aguda e trazendo um timbre inconfundível. 
Ultrapassando o timbre diferente, o toque de tarol do Salgueiro traz consigo mais um tempero especial: um rufo que entra na mão responsável por fazer o contra-tempo da batida, de forma que haja a divisão rítmica potente e acentuada na “mão forte”, enquanto que a mão fraca irá marcar o tempo da levada, intercalando essa marcação de tempo com a rufada, que dá ao tarol a “sujeirinha” comentada, levando para a sua bateria um elemento primoroso e inconfundível. Talvez seja esse o grande segredo por trás dessa bateria tão reconhecida e tarimbada. 
É importante pontuar que o toque de tarol do Salgueiro não é padronizado – ou seja, não existe um molde para que todos os ritmistas do instrumento toquem exatamente a mesma levada ao longo de todo o desfile. A rufada da “mão fraca” é livre, o que dá ainda mais swing para a batida, de forma que não seja mecânica. Inclusive, diz-se que a batida de tarol é tão particular que ainda existem aqueles que trazem como herança da época em que o morro era dividido em diversas agremiações. Essas pessoas constroem maneiras de introduzir o rufo à levada, de forma que existam batidas diferentes advindas de partes diferentes da região, o que acrescenta mais um ingrediente para esse molho fantástico. Há também uma certa compreensão de que a batida seja um código ao alujá de Xangô, padroeiro da escola, com uma relação muito íntima de devoção por parte de seus componentes, mas não há confirmação dessa inspiração. 
Para além de conhecer e compreender as características da bateria do Salgueiro, é também preciso dedicar tempo para preservá-las, e fazer o melhor trabalho possível para mesclar o que há de tradicional com as novidades. Pesando-se em frescor, não dá para não citar os mestres da Furiosa e deixá-los de fora dessa equação. Guilherme e Gustavo, que assumiram a bateria diante de uma turbulenta situação política vivida pela agremiação, são a representação mais eficiente do cuidado com a tradição aliado à inovação. Nascidos e criados na rua Silva Teles, são filhos de membros assíduos da escola e acompanham desde pequenos a agremiação. 
Os irmãos Guilherme e Gustavo dos Santos. Na mão de Gustavo, à direita, o famoso tarol do Salgueiro, instrumento que tocou em seu primeiro ano de bateria, aos 13 anos. Foto: Alex Nunes/Divulgação.
Ambos são estudantes dos mais variados estilos musicais. A partir desses extensos estudos, foram capazes de auxiliar na criação de diversas paradinhas, ou bossas, da bateria enquanto trabalhavam como diretores sob a batuta do Mestre Marcão. Do xaxado introduzido no samba de 2012 (Cordel Branco e Encarnado) ao pagode baiano no samba de 2017 (A Divina Comédia do Carnaval), confirmam a associação da tradição e da inovação. Uma das primeiras medidas da dupla foi o desejo de voltar com a afinação característica dos tempos do Mestre Louro, relembrando a época na qual cresceram e aprenderam a tocar. 
Eles também promovem encontros entre os ritmistas do tarol no espaço que hoje é lar do Bloco Raízes da Tijuca, antiga quadra do Salgueiro, no morro. Fazem daquele território lugar de encontros para buscar o toque de tarol, a compreensão do ritmo. O corte único dos antigos com a juventude que compõe o naipe. Ambos tiveram origem na Aprendizes do Salgueiro e têm participação ampla em oficinas de percussão. 
“Sou da Vila não tem jeito, comigo eu quero respeito que meu negócio é sambar”
Após nossa viagem pelo Morro do São Carlos, com uma escala no Morro do Salgueiro, aterrisamos em um dos lares da boêmia carioca para dialogar com os saberes e os batuques do Morro dos Macacos e da terra de Noel. Assim como é impossível falar de samba e de carnaval sem guardar o lugar à mesa para a Turma do Estácio, também é necessário guardar a cadeira para os bambas do bairro que dá nome à azul e branca. De Noel Rosa até Martinho da Vila, passando por Braguinha, Luiz Carlos da Vila, Almirante, Mestre Mug e a própria árvore da raiz de Martinho, Mart’Nália e Tunico da Vila. Todos são nomes tarimbados no mundo do samba e do carnaval que comprovam sem ressalvas o um dos versos do campeonato de 2013: “É a Vila, chão da poesia, celeiro de bambas”. 
Ritmista de Tarol da Vila Isabel no desfile de 2020. Foto: Raphael David/Riotur.
Mas a escola fundada por Antônio Fernandes da Silveira, o “Seu China”, em 4 de Abril de 1946 não tem apenas esse grande elenco de personalidades para falar por si. Os saberes em Vila Isabel se vinculam com a comunidade do Morro dos Macacos também por palavras ritmadas, mas que não são ditas. E a conexão de cada palavra pronunciada pelos naipes da Swingueira de Noel dá origem a uma produção textual única e tão rica quanto a mais rebuscada poesia já escrita em solo tupiniquim. Se estivermos falando sobre palavras belas produzidas pelos toques da terra da Vila, é inviável não se aprofundar, e sem vergonha se deleitar, nas palavras do seu taroll.
Bebendo também na fonte do partido alto  estaciano, o toque de tarol da Vila isabel introduz nessa já bela amálgama de toques um rufo que deixa a sua batida única e com um swing característico. O que o deixa ainda mais especial é a impossibilidade de precisar em que momento da execução da levada a rufada vai entrar, pois é algo que é definido pelo feeling, pela sensibilidade e percepção do ritmista. Cada um, então, tem a sua própria pegada e a sua própria compreensão de onde introduzir a rufada, de forma que ofereça para o som geral da bateria um molho especial, que só pode ser encontrado em Vila Isabel. 
Nas palavras de Cassiano da Vila, um dos atuais diretores de tarol da Vila Isabel, é exatamente aí que mora a magia: “Nunca houve um padrão do toque de tarol da Vila. O padrão entra na base do toque, na base do partido alto, mas cada um sempre teve o seu próprio tempo de rufada”. Filho de Áurea Lima, uma das primeiras passistas da Unidos de Vila Isabel, e Amadeu Amaral, o lendário mestre Mug que comandou a Swingueira por 31 anos, Cassiano acompanha e conduz com orgulho o trabalho de resgate do toque fundamental de tarol da Vila Isabel. Nos últimos períodos, a escola tem recebido reconhecimento por isso: “O tarol é um instrumento em extinção, então o resgate que a gente vem fazendo junto com o Mestre Macaco Branco, eu e o Mariozinho (outro diretor de tarol da bateria), tá dando certo. A bateria da Vila Isabel esse ano lembrou os tempos dos anos 80, 90, misturando a juventude com os cascudos”, completa.
Cassiano, talvez por um acaso do destino, passou muito perto de traçar carreira como mestre-sala. Desde jovem, dividiu-se entre a bateria mirim da Vila Isabel e a arte do protetor do pavilhão. Em certo momento, decidiu abandonar a bateria e se dedicar à dança, inscrevendo-se em uma competição de mestre-sala e porta bandeira em que seria escolhido o casal mirim da escola mãe – o jovem e a jovem que fossem os primeiros colocados do concurso – e o primeiro casal da Herdeiros da Vila – os que alcançassem o segundo lugar.
Capa do CD dos sambas-enredos das escolas mirins de 1990. À direita, o casal da Vila isabel, com direito ao mestre-sala Cassiano de braço quebrado. Foto: Acervo pessoal.
Entre 30 casais, Cassiano garantiu o vice e foi consagrado o mestre-sala da Herdeiros da Vila. Os fios que foram tecidos para a vida de cada um, no entanto, muitas vezes se manifestam da maneira mais curiosa possível. Foi durante a final dessa competição que ocorreu uma apresentação da bateria da escola mãe. A paixão pelo segmento musical se reacendeu, motivada muito pelo show protagonizado pelo falecido Vermelho – para Cassiano, o melhor tarol que ele já viu passar pela Swingueira de Noel, dentre tantos bambas do instrumento como Godô, Mauro, o próprio Mestre Mug, e Gilson, pai do atual mestre da Vila, Macaco Branco. Cassiano nem chegou a desfilar, voltando-se em definitivo para a bateria. 
Para ele, a atual qualidade da bateria da escola está atrelada a um fator importantíssimo: a divisão em igual proporção dos taróis e das caixas de guerra. A Vila Isabel sempre contou com as caixas de guerra, tocadas embaixo na levada reta. Essa levada reta, que alguns dizem ter sua origem no toque avamunha, é bastante utilizado pelas escolas de samba, blocos de carnaval e também oficinas de percussão. Podem ser vistas em Beija-Flor de Nilópolis, São Clemente, Unidos de Padre Miguel, Inocentes de Belford Roxo, Acadêmicos do Cubango, Império da Tijuca, Acadêmicos do Sossego, Unidos de Bangu, Acadêmicos de Vigário Geral, e Lins Imperial.
Inclusive, para a própria magia do toque de tarol acontecer, as caixas de guerra desempenham um papel essencial. Segundo Paulo Vinícius, o PV, diretor de caixa da Unidos de Vila Isabel desde que a gestão do Macaco Branco começou, a sustentação que as caixas oferecem para o tarol são essenciais para dar o molho característico que a bateria da escola tem. Com a afinação mais alta dos taróis, com a afinação mais baixa das caixas (hoje misturadas entre as de 14 polegadas e 12 polegadas, em um processo de transição para que todas sejam de 14 polegadas), encontra-se o timbre médio, que sustenta a escola. Apesar dos taróis serem a cereja do bolo, porém, não dá para negligenciar a outro instrumento: “É um casamento perfeito entre as caixas e taróis, mas tem que ser aquela caixa bem tocada, com a acentuação correta”, finaliza. 

“Couro manchado em vermelho, na raça tijucana o amor mais puro e verdadeiro”
Após uma volta por alguns dos morros da Grande Tijuca – São Carlos, morro do Salgueiro e morro dos Macacos – chegamos finalmente ao nosso destino final para o primeiro texto da Batuques: o Borel. É fundamental dialogar com a maneira como a bateria da Unidos da Tijuca encara, com extrema seriedade, a perpetuação do ritmo do partido alto em sua bateria. A escola, lar de uma das maiores revoluções estéticas e precursora de uma ruptura da forma como se enxerga o carnaval durante a década de 2010, é parada obrigatória. 
Fundada no limite do ano de 1931, no dia 31 de dezembro, a Tijuca é com certeza dona de uma enorme tradição na competição carnavalesca no Rio de Janeiro, sendo uma das primeiras campeãs do carnaval ainda no ano de 1936. Ainda que tenha amargado a maior seca de títulos entre uma campeonato e outro (74 anos entre os 1936 e 2010), a escola não perdeu sua força ao longo dos anos, sendo ainda lar de belíssimos sambas que passaram pela Sapucaí. Aqui, vale reverência ao gigante David do Pandeiro que faleceu no último dia 21 de julho, quem puxou o grandioso O Dono da Terra (1999) – talvez o mais belo samba da história da agremiação..
Ritmista de caixa da Unidos da Tijuca no desfile de 2020. Foto: Raphael David/Riotur.
Ao se pensar na bateria da Unidos da Tijuca, logo ganha muito destaque o partido alto tão bem executado das suas caixas de guerra. Diferente da Estácio de Sá, que ainda conta com algumas variações e desenhos dentro do compasso da batida, a Pura Cadência é conhecida pela execução precisa da divisão padrão do partido alto. A divisão de notas perfeitas, aliadas com a acentuação impecável e com a afinação primorosa das caixas da Tijuca, dão para bateria da escola um balanço inconfundível, sendo referência do partido alto para todo o mundo do samba. 
Além disso, uma das grandes características da bateria da Tijuca é sua esplendorosa ala de tamborins, que também é referência. No último carnaval, ao lado da bateria comandada por mestre Ricardinho, no Paraíso do Tuiuti, a ala de tamborins da Tijuca foi a maior do carnaval, com 42 ritmistas. Comandada pelo diretor Coringa, a Tamborim 42 fez e faz história na Sapucaí, com desenhos do instrumento apurados e de alto grau de dificuldade. É um espelho para novos ritmistas do instrumento.
Sob a batuta do mestre Casagrande desde 2008, a Pura Cadência coleciona notas 10 tal qual fossem figurinhas. É uma das baterias mais competentes e precisas do nosso carnaval. Nos últimos cinco anos de desfiles na Sapucaí, perdeu apenas 0,3 décimos e é a bateria que menos sofreu decréscimos nesse período, a mais regular do grupo. O estilo de trabalho do Casão é tão referência que rendeu diversos frutos, como os diversos mestres que foram coordenados por ele: Demétrius, Léo Capoeira, Lolo, Chuvisco, Magrão, Maurão, Ricardinho, Junior Sampaio. Todos trabalharam com o mestre Casagrande, dando dimensão da referência que ele é para o nosso carnaval. 
Mestre Casagrande, que comanda a Pura Cadência há 12 anos. Foto: Gabriel Santos/Riotur.
Como o carnaval é feito sempre de renovações, é importante citar que, para Casagrande, que hoje é referência de ética de trabalho para tantos mestres, a grande referência foi o trabalho com o mestre Marçal, lendário mestre da Portela que também trabalhou na Unidos da Tijuca, responsável por alçar Casagrande ao posto de diretor de bateria. Mestre Marçal também foi um dos grandes responsáveis por revolucionar a maneira como a Tijuca toca o seu partido alto, promovendo o apuro e a precisão do toque. O legado, como sabemos, foi continuado por mestre Casagrande. 
Aliás, o nome de Marçal não é estranho, né? Como dissemos para não esquecê-lo… O lendário Armando Marçal, parceiro de composição de Bide e um dos fundadores da Deixa Falar… Não à toa seu filho foi um dos responsáveis por dar continuidade à transmissão do partido alto, originado com o pai e a tanto exaltada Turma do Estácio!
E assim encerramos nosso passeio pela batida que saiu lá da turma da Estácio de Sá e se espalhou pela Grande Tijuca, influenciando gerações de ritmistas! 
Além da Série #Batuques, você conferir também a #SérieMulheres.

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